Do Iraque a São Tomé: Preparando uma longa resistência

1. A crise energética mundial

Temo-me que este texto poderia ter sido escrito há anos (talvez décadas), ou poderá ser ré-escrito no futuro por vir. O projecto de controlo dos recursos energéticos mundiais polas oligarquias ocidentais -sobretudo as que só tangencialmente se podem chamar “dos Estados Unidos”, pois as principais Raças que dividem o mundo são a classe e o género, não a nação– é logicamente longo, detalhado, cuidadoso, consciente, sério e evidentemente responsável. Ao longo da história, nenhum grupo dominante deixou de preservar por todos os meios possíveis os seus interesses já não para eles próprios, mas para os seus descendentes e herdeiros sociais. A iminente escassez dos recursos energéticos pesados é uma evidência tão clara que só uma cegueira colectiva pode levar a subsumir os motivos de muitas “guerras” actuais sob escusas ideológicas. Diversas fontes indicam que, ao ritmo actual de produção petrolífera, e para as reservas que se conhecem, ao planeta lhe restam uns 50 anos de petróleo. As reservas dos EUA durarão 10 anos; as do Reino Unido, 5. As de Arábia Saudita, mais de 100. Mas, em toda lógica, uma vez acabadas as reservas num lugar, e com o crescimento económico exponencial, a produção dos jacimentos restantes deverá aumentar, e esses 100 anos da Arábia Saudita ficarão em menos. Mesmo se se acharem novos jacimentos e se melhorarem as técnicas de extracção (na altura aproximadamente a metade do petróleo é desaproveitado no processo), estamos a falar só de décadas (não séculos) de reservas. Nas páginas excelentemente documentadas de Planetforlife (http://planetforlife.com/OilPeak.htm ) mostra-se como a curva de reservas mundiais de petróleo e gás descerá a partir de 2010, e em 2050 as reservas estarão à altura, aproximadamente, das de 1965:

petroleo.jpg (45503 bytes)

Mas, reparemos, as necessidades energéticas mundiais em 2050 serão muitíssimo maiores do que em 1965! Estes são arrepiantes factos, não uma alucinação dos ideólogos da conspiração. O horizonte da “segurança energética”, como o discurso económico conservador o denomina, está muito próximo: a escassez de petróleo atingirá, se não os meninhos de agora, sim os seus filhos. Planetforlife situa este horizonte em 100 anos: “Um mundo sem petróleo não é o futuro que imaginam a maioria dos americanos, mas é um facto. Precisa-se uma visão de longo prazo: sobre 100 anos”. “Longo prazo”, cem anos? 100, 70, 50 anos, pouco importa: isso não é nada na história duma classe. Quantos séculos durou a nobreza feudal? E quantos poucos levamos de capitalismo industrial?

No massacre de Cosova e Jugoslávia não transparentaram tão claramente os interesses económicos, também conectados dalguma maneira ao acesso ao petróleo de Ásia Central. Mas, no rosário de simulacros cada vez mais sofisticados em que consiste o imperialismo militar ocidental, o capital chegou ao seu mais alto grau de transparente cinismo. O necessário consenso popular constrói-se agora polo reconhecimento explícito das causas das invasões militares. Enquanto na segunda guerra do Golfo, perpetrada polo pai de Bush simplesmente como representante da óleo-garquia americana, o motivo explícito era a “libertação” dum país (Kuwait) patentemente invadido polo exército doutro tirano, nesta terceira “guerra” de Iraque que continua, as conexões com os interesses económicos saem à luz da maneira mais evidente.

Ignoram-se ainda as intenções exactas da atrocidade das Torres Gémeas de Nova Iorque. Sabe-se que os fundos para essas acções vinham da Arábia Saudita, e que o entramado principal que suporta a metáfora de “Ben Laden” é também a Arábia Saudita, país extraterrestre no seu ordenamento jurídico e na coalescência entre a religião, o estado, a classe e a enorme família dos Saud, e paradigma do fascismo petro-monárquico. Sob o chão expoliado polo estado de Arábia Saudita acha-se a maior reserva de petróleo do mundo. Sob o chão expoliado polo sempre militar estado de Iraque acha-se a segunda. A economia dos EUA depende na altura num 54% de petróleo estrangeiro. Em 25 anos (se ainda há mundo) dependerá num 70%. O panorama é apavorante, não nos enganemos. Um pergunta-se em que medida se podia sentir de pressionada a oligarquia saudita sabendo que era a principal fornecedora do seu regime aliado americano. Até quando poderiam continuar a subministrar petróleo? E quanto restaria para eles próprios, para a perpetuação da sua casta? Embora pareça irónico, tanto o ataque de Nova Iorque como a conquista de Iraque para a libertação das suas grandes reservas de petróleo resultam positivos para Arábia Saudita: no jogo do capitalismo, o melhor que podes ter é um bom competidor, que será o novo petróleo de Iraque quando saia maciçamente ao mercado, agora pago em dólares. Voltará a baixar o euro.

2. O novo cenário de África Ocidental

Quanto à visão do actual regime norte-americano, a sua lógica não tem fissuras. É o pensamento conservador de sentido comum mais enraizado nas masculinas hierarquias familiares: Há escassez de arroz entre os vizinhos do teu prédio. Se tu tens mais poder, e observas que o teu vizinho tem mais arroz, mas vende-lhe-lo (em euros, não em dólares) aos outros vizinhos (Europa), por acaso não entrarás na sua casa, capturarás o chefe de família que os curdos escondem drogado num zulo e apropriarás-te do arroz para a tua família? Não quererás que os netos da tua casta continuem a manter os teus privilégios, para o qual devem comer desse arroz? E não considerarás que é injusto esse reparto desigual do arroz no teu mundo? Substitua-se arroz por petróleo, e vizinho por Iraque, e obtemos o panorama.

Mas o panorama continua. Outro vizinho com muito arroz é Irão, que o vende sobretudo à China. Também haverá que entrar dalguma maneira na sua casa (com cuidado, porque a China é nuclear e espreita) para que no-lo “venda” a nós (que casualidade que um membro do clã Bush é alto cargo num importante Comité de relações sino-americanas). E mais tarde ou mais cedo haverá que controlar Síria. E, logo, haverá que ir procurando o arroz dos outros vizinhos ainda pobres, quase desconhecidos, que ignoram que têm grandes recursos nas suas alazenas fechadas: o ocidente africano, por exemplo, novo “teatro” da expansão militar norte-americana. Informes dos conservadores Programa para África do Center for Strategic & International Studies dos EUA ou do grupo AOPIG (African Oil Policy Initiative Group) do Institute for Advanced Strategic and Political Studies, baseado em Israel mas com actuação também nos EUA, falam explicitamente da necessária “diversificação” das fontes de energia dos EUA, por “segurança energética”, e do carácter estratégico de África e África Ocidental especialmente (ver p.ex. “U.S. Oil Stakes in West Africa“, por Jessica Krueger). Outras fontes falam da possibilidade dum novo Golfo Pérsico em África em termos de reservas. O petróleo do ocidente africano, de bastante boa qualidade, é mais ligeiro e mais barato de transportar aos EUA. Além, a maioria acha-se sob a plataforma continental, não na terra firme, que é sempre motivo de conflito. Em África não há grandes exércitos que poderiam molestar. Há, sim, “corrupção” e lutas “tribais” que convém destacar, para impor a necessidade de certa ordem e estabilidade, com as quais a maquinaria capitalista funciona melhor. Em troca da intervenção americana em África Ocidental, e de bons acordos comerciais para a “ajuda” na exploração deste petróleo, estabelecerão-se regimes democráticos “estáveis”, desenvolverão-se minimamente as comunicações internas, e impulsará-se um sistema de ensino “universal” e “democrático” comparável ao que sofremos em Ocidente, requerimento ineludível para o disciplinamento ideológico e para a reprodução da classe política. Polos hoteis de luxo dos países de África Ocidental pululam de cada vez mais executivos americanos do petróleo, procurando acordos para um futuro próximo. Obviamente, precisará-se estabelecer também bases americanas de controlo e para treinamento militar para os caducos exércitos africanos. Depois, haverá que “modernizar” os exércitos africanos com armamento pesado: haverá que lhe-lo vender em troca de petróleo. Esta “diversificação energética” reduzirá também a dependência dos EUA do petróleo de zonas “geo-estratégicas” conflituosas, como Oriente Médio.Um claro exemplo de como isto já se está a cumprir encontra-se no acontecido em São Tomé e Príncipe. Um informe da AOPIG de Janeiro de 2002 para a administração Bush falava explicitamente de

“Declarar o Golfo de Guiné área de “interesse vital” para os EUA; estabelecer um sub comando regional semelhante ao US Forces Korea; esse sub-comando regional deveria considerar decissivamente o estabelecimento duma base regional, possivelmente nas ilhas de São Tomé e Príncipe“.

Apenas sete meses mais tarde, em Agosto de 2002, o presidente eleito de São Tomé e Príncipe, Fradique de Menezes, um rico homem de negócios, anuncia planos para estabelecer uma base naval dos EUA no país. Em Outubro de 2002 De Menezes substitui o primeiro ministro Gabriel Costa, do Movimento para a Libertação de São Tomé e Príncipe, a quem meses antes encarregara formar governo por o MLSTP ser o partido mais votado. Em Julho de 2003, um golpe de estado militar com elementos de antigos combatentes depõe De Menezes e o seu governo sob acusações de corrupção e passividade perante a injustiça social. Após uma semana de negociações e conversas entre a facção golpista, o embaixador dos EUA Kenneth P. Moorefield e representantes de Nigéria, Gabão e outros países, De Menezes é restituído na presidência. Moorefield, um condecorado militar texano que lutou no Vietname, fora delegado comercial em Venezuela durante o mandato de Bush pai, e tivera outros cargos diplomáticos. Em Novembro 2003, Moorefield anuncia que o exército dos EUA colaborará com a “reestruturação” do exército são-tomense. Embora São Tomé e Príncipe ainda não explorou uma gota de petróleo, espera-se que a extracção comece em 2007. As companhias ExxonMobil, ChevronTexaco, Royal/Dutch Shell e TotalFinaElf têm indicado interesse nas explorações. Ao meter as mãos também em São Tomé e Príncipe, os EUA quer previr a possibilidade deste estado cair na órbita da mais poderosa Nigéria (com quem compartilha a exploração do petróleo da zona), sob crescente influência islámica.

3. O discurso e os factos

Mas, porque o petróleo? Se os maiores recursos energéticos mundiais ainda por explorar estão no gás natural, porque ainda o carácter estratégico do petróleo? Cada vez se está a utilizar mais o gás natural e o gás em estado liquado (que ocupa 600 vezes menos que o natural –melhor para o transporte– mas que é muito mais perigoso de manipular). Sectores crescentes da economia capitalista (telecomunicações, informática) podem se reconverter a outras fontes energéticas, até a solar. Mas a indústria pesada não é reconvertível não: precisa de fuel, de derivados do petróleo. E a indústria pesada (a do aço, por exemplo) é a que fabrica, entre outras cousas, as armas que se empregam na conquista dos territórios onde se acha o petróleo para fabricar as armas. É também com maquinaria pesada que se fabricam muitos outros bens de consumo: precisa-se petróleo. O círculo vicioso é interminável.

Portanto, não se prevê no futuro imediato saída a esta lógica do grande capital industrial, do que Chomsky chama o “complexo militar-industrial”. Parte desta lógica é transparentemente articulada no discurso das oligarquias industriais (os EUA, Europa, Japão e outros países). Os think-tanks ultra-conservadores norte-americanos, que nutrem o pensamento dos “falcões” do Pentágono (muitos deles filhos, por certo, de judéus liberais que sofreram o nazismo ou o exílio), expressam as metas com uma clareza que não precisa tradução. O Project for the New American Century (Projecto para o Novo Século Americano), ao que pertenciam o intrigante Dick Cheney e Wolfowitz, elaborou em Setembro de 2000 (antes das Torres Gémeas!) o informe Rebuilding America’s Defenses (“Reconstruindo a Defesa Americana” http://www.newamericancentury.org/RebuildingAmericasDefenses.pdf ) que explicita sem lugar a dúvidas o lugar militar dos novos EUA no mundo:

«O liderado global de América (sic), e o seu papel como garantia da paz actual entre os grandes poderes, depende da segurança da pátria americana; da preservação dum equilíbrio favorável de poder em Europa, no Oriente Médio e a região circundante produtora de energia, e no Leste asiático; e da estabilidade geral do sistema internacional dos estados nacionais relativamente aos terroristas, ao crime organizado, e a outros “actores não estatais”».

Em breve: não estamos a falar só de interesses pontuais tácticos (eleitorais ou de hegemonia cultural), mas duma estratégia geral de colonização (num recente artigo em EL PAÍS, Carlos Taibo desmonta o mito da “globalização” económica e caracteriza o processo actual como de pura americanização), envolvida, sim, numa nauseabunda retórica cristã megalómana e messiánica, comparável à dos sionistas, os fanáticos islâmicos ou os fundamentalistas hindus, mas que não é mais do que retórica. E o que contam são os factos: as armas, não as metáforas. Seria ingénuo pensar que as actuais elites industriais e as petromonarquias árabes não planificam a longo prazo o futuro das suas castas, sobretudo quando este futuro está tão próximo. Para eles, trata-se duma questão de sobrevivência.

Não tento psicologizar nem personalizar: cumpre entender esta lógica para tratá-la como uma verdadeira encruzilhada económica e política global. Não compartilhar (naturalmente) o modelo económico capitalista e lutar por outro(s) não resolve o dilema energético. As diferenças entre o Capital da “velha Europa” e o dos EUA neste assunto são de táctica, não de filosofia geral. Portanto, muitas das futuras guerras, invasões, massacres e outras violações do triste “direito internacional” serão de novo uma função da tensão entre os blocos económicos, e das oportunidades pontuais dos seus regimes. Por exemplo, a decisão de intervir proximamente em Síria ou no Irão de uma maneira ou outra dependerá de se não é mais rendível intervir, por exemplo, no Chad, no Sudão, ou em Nigéria, onde “lutas tribais” (dizem as notícias periodicamente) obstaculizam a produção petrolífera. Esta dinâmica poderá ter o hiato duma administração americana do partido Democrata (mas, lembremos, foi Clinton também quem em 16 Dezembro 1998 ordenou atacar objectivos civis de Iraque), ou de outros dirigentes republicanos que representem interesses doutras famílias económicas. Mas a lógica é imparável, e os detalhes do processo são contingentes. Por exemplo, o ex-candidato democrata Al Gore também tem interesses na Occidental Oil, que passa um importante gasoduto por Colômbia. Colômbia, portanto (sob a escusa da guerrilha terrorista e do narcotráfico) poderá ser mais um próximo objectivo. Devemos por isso estar alertes aos avisos retóricos dos dirigentes dos regimes económicos ocidentais contra os países do “terrorismo”, simplesmente porque esse discurso pode dar dicas sobre os possíveis lugares de intervenção próxima: a legitimação da barbárie precisa do anúncio prévio às massas. As frequentes viragens na delimitação do “eixo do mal” internacional podem expressar interesses tácticos cambiantes: poucas semanas depois de Líbia deixar de pertencer ao “eixo do mal” por “pregar-se” à condição de não produzir “armas de destruição em massa”, a ministra espanhola Ana Palacio visita o ditador Gaddafi. Repsol já tem contratas em Iraque. Mais petróleo, é a guerra. O mesmo se pode dizer sobre os cambiantes apoios de regimes políticos e partidos a determinadas “causas” ou “povos”, oprimidos ou não.

4. Uma longa resistência

Em resumo: devemos estar preparados para uma longa resistência, uma resistência que pode durar toda uma vida. E aqui o dilema está em se é possível ainda proclamar a utopia e fazê-la compatível com o protesto pedestre. É evidente que os estados assentes em territórios que, por pura coincidência, possuem o petróleo, não têm o direito legítimo de fazer o que queiram com um recurso que é de todo o planeta. Os povos que ali vivem, sim, têm o direito e a obriga de administrá-lo, mas há que economizá-lo e reparti-lo. A utopia é que, se compreendéssemos que estamos no mesmo barco que afunde, fariam-se desnecessários os estados fragmentados, perante a iminência do desastre (económico, ecológico, sanitário, humano). A realidade é, porém, que o desastre ainda é selectivo, e igual que se matam ratos que poluem os “nossos” esgotos, se é necessário exterminam-se colectivos inteiros que se interpõem no “nosso” labor de latrocínio.

Por isso, a alternativa é procurar negociar os termos do privilégio de classe sobre o petróleo. As organizações internacionais, partidos, grupos de pressão, ou o próprio Foro Social Mundial devem tentar negociar no âmbito mundial e local, nos mais altos níveis e instâncias, os termos e condições em que se pode efectuar o controlo de classe dos recursos. Desde a resistência anti-colonial deve procurar-se a interlocução sobre uma politica energética mundial que evite os genocídios e o império militar, e devem explorar-se com inteligência as fissuras naqueles regimes económicos (a “velha e caduca Europa”, por exemplo) que ofereçam outras “soluções” internacionais, igualmente antidemocráticas por capitalistas, mas menos sanguentas. A resistência humana em favor duma nova sociedade será longa, muito longa (e sem garantias de que nunca vaia dar frutos!). Poderá desaparecer George W. Bush do panorama mundial, sujeito a contingências eleitorais. Poderá oscilar Europa entre períodos mais negros e mais grises. Mas o projecto de apropriação dos recursos por parte do capital não tem volta atrás. E, dentro do ódio ideológico que lhe professemos às oligarquias, uma resistência o mais ampla e organizada possível deve tentar compreender a lógica delas para tentarmos minimizar o sangue, para tentarmos erradicar o massacre como método. Afinal, só se trata de conjurarmos o cinismo: porque aqui em Ocidente reside a resistência privilegiada, a quem seguramente nunca lhe cortarão a luz dos computadores enquanto haja um iraquiano ou um nigeriano a quem voar em pedaços para garantirmos o oleoduto que nos nutre.

Razões ocultas?: Iraque, o euro, Espanha e o Sara Ocidental

Publicado em A Nosa Terra

São sabidas bastantes das causas para este ataque do regime dos EUA sobre o território e os recursos desse país agora chamado Iraque. Também, do apoio do governo do Reino Unido a esta agressão. Menos entendida é, porém, a decisão do governo espanhol, até nas próprias filas do Partido Popular. O cisma entre a direita francesa e a direita estadunidense quanto à política bélica internacional (representadas nas posturas respectivas de Chirac e de Bush) também surpreende. Há alguns factos para mim significativos desta guerra que nos poderiam dar pistas para compreender uma complexa situação.

Facto número 1: O dólar e o euro. Em Novembro de 2000, Iraque adoptou o euro como moeda de troco para a venda de petróleo. Naquela altura, o euro valia 80 centavos de dólar. Hoje, vale sobre 105, uma revalorização considerável. Ou, com outras palavras, o dólar depreciou-se. Isto foi uma aposta do regime iraquiano polo euro, aposta que lhes estava a sair bem, e que com o final do bloqueio económico sairia-lhes ainda melhor. As petroleiras americanas temem que esta viragem do “petrodólar” ao “petroeuro” se poda estender a toda a OPEP, especificamente a Irão primeiro. Significativamente, a intervenção no Iraque é levada a cabo por dous países sem euro (EUA e RU), mas oposta polos governos das principais economias do euro, França e Alemanha.

Facto número 2: Alasca: Recentemente o Senado EUA rejeitou começar as prospecções petroleiras na grande reserva natural de Alasca. O voto republicano foi fundamental para esta surpreendente decisão. Decidir não utilizar o próprio petróleo significa que há mais aí fora, mais barato de conseguir. Iraque é um desses lugares.

Facto número 3: As “razões de Estado” de Aznar. De todo o discurso e contradiscurso entre o governo espanhol e a oposição política (especificamente o PSOE), a mim pessoalmente surpreenderam-me dous factos: a) Em mais duma ocasião (uma vez Aznar, outra vez Arenas), o governo interpelou cripticamente ao Partido Socialista sobre a sua oposição à guerra dizendo-lhes: “Se vocês estivessem no poder estariam fazendo o mesmo que nós”. Não houvo réplica nem tentativa de esclarecimento por parte do PSOE. Isto é destacável na medida em que a linha entre governos defensores e opositores desta guerra não segue linhas partidistas “esquerda/direita”. Porque deveria a “esquerda” do PSOE ter a mesma postura do que a “direita” do PP se aquele estivesse no poder? Deve haver poderosas razões que desconhecemos. b) O secretário geral do PP de Galiza, Palmou, numa entrevista na Cadena SER o domingo 23 disse que “Deve haver razões de estado” que Aznar sabe e nós não. O mistério sobre estas afirmações de destacados membros do PP, e do silêncio do PSOE, esvoaça sobre a operação de extermínio em Iraque.

Facto número 4: O Sara Ocidental, o grande ausente. Surpreende também o silêncio do governo espanhol, e especificamente da carteira de Exteriores, sobre o problema do Sara Ocidental. Em Março 31 deve adoptar-se uma (outra) resolução sobre a situação do Sara. E Espanha está temporariamente representada no Conselho de Segurança da ONU. James Baker, comissionado especial da ONU, e ex-secretário de Estado dos EUA, quem representa os interesses do governo (portanto, das oligarquias) desse país, pode estar mudando a sua posição anterior sobre a autodeterminação do Sara. Baker estava conectado também a interesses petroleiros. É possível que a administração EUA queira apoiar agora uma solução “intermédia” que conceda soberania talvez só à parte sul do Sara, enquanto a norte ficaria sob administração de Marrocos. Isto poderia não ser à partida aceitável para o Frente Polisário, mas ao parecer tampouco o Polisário estaria em condições de recomeçar a luta armada, e no Sul poderia formar-se um estado independente suficientemente auto-sustentável. Porque, que acontece nas zonas norte e sul do Sara Ocidental? No norte, estão os fosfatos. No sul (nas águas jurisdicionais correspondentes à não reconhecida República Árabe Sarauí Democrática) estão a fazer-se explorações petrolíferas por várias companhias, entre elas uma australiana (governo que apoia a guerra do Iraque). Os seus informes iniciais indicam que há petróleo comercializável. Também há uma concessão do governo marroquino de 2001 à companhia francesa TotalFinaElf e outra à estadunidense Kerr-McGee para a prospecção e comercialização do petróleo que se encontrasse. Mas expertos legais de vários países consultados pola União Europeia coincidem que um novo governo saído dum referendo no Sara não teria porque respeitar os acordos contraídos por Marrocos, ocupante ilegítimo do Sara Ocidental.

E como podem encaixar estes factos, então? Que se lhe perde à direita económica espanhola na guerra de Iraque? Um cenário possível é o seguinte:

1) O controlo ao acesso e aos preços do petróleo do Iraque por parte de petroleiras EUA daria-lhe às óleo-garquias estadounidense e à grande indústria pesada que depende dele (entre elas, a indústria do aço e portanto a armamentística) vantagens substanciais sobre as de outras zonas, nomeadamente Europa. São precisamente estes sectores os que não se podem reconverter facilmente a outras fontes energéticas. Por outra parte, esvaeceria-se o perigo da “eurização” do petróleo. O grande capital americano estaria em condições de repartir as reservas petroleiras ora no seu próprio benefício (sem ter que explorar as próprias), ora para países industrializados selectos (Espanha, por exemplo), ora para países em subdesenvolvimento onde se precisa a criação de capacidade aquisitiva para criar mercado. Durante muitas décadas a vir, as oligarquias EUA e algumas ocidentais estariam em condições ainda mais claras de decidir o destino económico de grande parte do planeta. O acesso ao petróleo do Iraque favoreceria à “economia” espanhola (quer dizer, ao capital), frente à francesa e alemã, maiores competidores para os EUA do que Espanha. Significativamente, os governos de “países menores” europeus apoiam os EUA.

2) Claramente, a administração EUA não precisa do governo de Aznar nem do PP para os propósitos imperialistas do capital. Mas a aliança com “Espanha” ajudou-lhe ao governo EUA a criar o cisma com os governos francês e alemão. Que mais obtém “Espanha” em troco disto?: A defesa dos “seus” interesses económicos no Sara Ocidental. E a situação especial que se dá agora, e não há alguns anos, é que Espanha está no Conselho de Segurança da ONU, uma circunstância que entre alguns sectores independentistas sarauís é vista como uma “grande oportunidade” para “Espanha pagar a sua dívida histórica”. Portanto, o cisma entre França e EUA/Espanha a respeito de Iraque estaria em paralelo com o seu cisma a respeito do Sara (França continua a apoiar a actual anexação por Marrocos, e um regime de “autonomia” para o Sara).

O petróleo seria a principal e quase única fonte económica do novo estado sarauí, suficiente para o seu desenvolvimento. Um novo estado saraui poderia rescindir os acordos de exploração petroleira às companhias francesas e conceder-lhe-las a petroleiras americanas. Uma recente informação da BBC de 4 Março 2003 afirma que “Agora as reservas de petróleo do país tornaram-se já um factor nesta luta quando as companhias petroleiras estadunidenses, francesas e australianas começam a informar dos seus primeiros achados”. E, significativamente, outra informação da BBC tomada de Le Quotidian d’Oran de 8 Fev. 2003 diz que: “É de destacar que os espanhóis se alinharam sem reservas com Washington relativamente ao assunto de Iraque. Portanto, os americanos poderiam pedir-lhe a Madrid que fosse menos ‘rígido’ no tema do Sara Ocidental, com a promessa de que os seus interesses serão tidos em conta“. Que significam estas expressões?: “Ser menos rígido” significa aceitar e promover na ONU o plano de Baker sobre a independência da parte Sul do Sara. “Ter em conta os interesses de Madrid” significa que “Espanha” levaria uma parte do pastel dos recursos energéticos do novo Sara. “Os interesses” também pode significar a pesca. Por enquanto é “França” a que perderia com tudo isto, e, em menor medida, “Alemanha” (quem também tem um projecto de exploração de energia eólica em toda a costa ocidental de Marrocos e o Sara).

Em resumo: O governo espanhol e José María Aznar obteriam do seu apoio à administração EUA na invasão de Iraque, além doutras cousas que nem sabemos: 1) Acesso a petróleo iraquiano, sem dúvida. 2) Prestígio internacional pola sua defesa, desde o Conselho de Segurança da ONU, duma solução intermédia para os sarauís promovida por Baker-EUA, alinhando-se de novo com os EUA mas sem romper os vínculos com Marrocos (que conservaria o norte do Sara). E 3) Mantimento dos “interesses de Espanha” (os das petroleiras espanholas também?) no novo foco geo-estratégico mundial da África Ocidental. Tudo isto significa que qualquer governo espanhol (PP ou PSOE), por pressões do grande capital e por defesa destes “interesses”, provavelmente teria agido igual a respeito da guerra do Iraque, como a misteriosa mensagem de Aznar sugere: “Vocês os socialistas fariam o mesmo se estivessem no poder”.

E não sou analista político, nem economista, e tudo isto, claro, é bastante especulativo. A situação é mais complexa. A resolução da ONU deste 31 de Março pode pospor-se mais uma vez. O tempo dirá, quando o tema do Sara Ocidental saia de novo à luz pública, e quando se veja se o governo resultante da imperial conquista do Iraque retorna ao dólar para vender o seu petróleo.

(Algumas fontes: http://groups.yahoo.com/group/Sahara-Update/message/1082
http://groups.yahoo.com/group/Sahara-Update/message/1063
http//www.rebelion.org/imperio/040303clark.pdf)

Os Balcãs: Outra guerra de classe

Publicado em Çopyright 71, 24 Abril 1999 • N’A Nosa Terra

Entre as características mais notáveis dos discursos actuais sobre a guerra em Jugoslávia, surpreende ver a omissão quase total da questão económica. Perante a afirmação de que também na guerra em Kosovo e Sérvia há bases económicas, tanto a direita quanto a “esquerda” parecem reagir com incredulidade, se não com clara oposição. Mas a omissão ou a negação da dimensão económica no discurso público são reveladoras. O Secretário Geral da OTAN, Javier Solana, em entrevista na TVE-2 de Espanha no programa “El Tercer Grado” (15-Abril-99) diz explicitamente “Esta guerra não é polo petróleo ou polos recursos naturais: é uma guerra polos valores humanos”. Se a deciframos minimamente, a afirmação implicita um ingénuo reconhecimento de que outras guerras semelhantes sim que foram e são polos “recursos naturais”. Perante esta descrição de Solana, um vê-se forçado a tentar compreender por que esta guerra especificamente não seria polos recursos naturais; quer dizer, um vê-se forçado a procurar as (inexistentes) circunstâncias peculiares polas quais a expulsão e o massacre de centos de milhares de kosovares das terras em que habitavam, e o intuito dos exércitos europeu e americano de, aparentemente, devolvê-los a elas, não seria um conflito económico. Eu pessoalmente não conheço nenhuma guerra que não seja económica, e a explicação é singela: nas sociedades de classes (todas), na matança de outros seres humanos há grupos armados que actuam como instrumentos de elites económicas e políticas para a apropriação de recursos e para o mantimento de regimes economicamente injustos (todos). A guerra armada é um produto da lógica de exploração que começa na submissão ao roubo do trabalho assalariado.

Continue reading “Os Balcãs: Outra guerra de classe”

O mercado linguístico e o futuro da escrita

Publicado em A Nosa Terra 712, 8 Fevereiro 1996, p. 26

O meu colega Xosé Ramón Freixeiro convida de novo a reflexionarmos sobre as relações entre fala e escrita no nosso país, isto é, sobre as opções gráficas para o idioma (“A voltas coa norma lingüística na procura dun necesario pulo normalizador”, A NOSA TERRA 706, pp. 26-27). Basicamente, Freixeiro propõe um acordo que elimine as pequenas diferenças entre as normas majoritárias nas instituições (as do Instituto da Lingua Galega-Real Academia Galega, ILG-RAG) e as chamadas “de mínimos”. Tomo-me a liberdade de recolher a oferta de Freixeiro para sugerir, de primeiras, que a sua proposta (que está já na mente de bastantes utentes da escrita do galego) não resolve os vários problemas de fundo. Quero explicar em que me baseio para pensar assim. Começo cada apartado com umas afirmações gerais sobre as relações entre fala e escrita nas sociedades alfabetizadas.

Continue reading “O mercado linguístico e o futuro da escrita”