Sobre as circunstâncias da reforma ortográfica: Uma operação política

Publicado no canal Galego.org de Vieiros

Pede-se-me um artigo no qual “analizase as circunstancias en que se produciu o acordo” (sic) ortográfico, baseado numa mensagem que enviei ao Foro aberto sobre esta questão. A minha contribuição ao Foro tinha o título “Clarifiquemos algumas cousas, sim?” Aceito o convite, mas devo precisar o seguinte:

(1) Para compreender as bases políticas, ideológicas e, no fundo, materiais, do conflito sobre o idioma na Galiza (nomeadamente sobre a sua representação escrita), mais do que este textinho ou centos como este é muito mais produtiva a leitura (ou polo menos a consulta) de certas obras, como esta:

Mário J. Herrero Valeiro. 2000. Glotopolítica y genealogía del Poder: El proceso de institucionalización del gallego desde la perspectiva de uma (macro)política de la lengua. Tese de Doutoramento. Departamento de Galego-Português, Francês e Linguística, Universidade da Corunha.

(Para compreender a questão, avonda com ver o título: A tese foi redigida e apresentada em espanhol perante a impossibilidade legal de fazê-lo em galego-português, numa universidade galega. Na mesma universidade apresentaram-se teses em inglês).

Claro que é mais fácil ler a imprensa.

(2) O meu convite a participar em VIEIROS exemplifica (não paradoxalmente) a táctica da invisibilização dos “distintos”. Não é a primeira ocasião em que participo como “distinto”, quando a evidência é que há muitos mais “distintos” com nomes e apelidos, tão “expertos” ou mais do que eu próprio (naturalmente) ou do que muitas das contribuições que repetem e repetem as mesmas obviedades página após página. Mas entenda-se bem que não estou aqui para contribuir ao Debate Nacional — apenas à sua aparência.

Entro em matéria. A formulação da própria petição de Vieiros (que “analizase as circunstancias en que se produciu o acordo”) é interessante. Como deformado linguista, à partida estaria tentado a desmiudar que se entende aqui por “acordo”. O princípio operativo das conversas foi o da exclusão e invisibilização dum sector importante de pessoas, grupos, movimentos, colectivos, activistas, usuários habituais do galego escrito, profissionais, etc. (os que se chamam “reintegracionistas”, os utentes de “português padrão”, e outras faunas) que têm visões “distintas” da representada polos que se reuniram para esta reforma das Normas. Esta exclusão é um facto inegável. Portanto, o processo não cumpre nem as mínimas condições do debate “democrático” (afinal estas cousas votam-se, não é?) na esfera pública para qualquer tema de interesse nacional, tanto do ponto de vista político quanto académico e “científico”. Que cada um(a) julgue como quiser estas condições de partida. E, sobretudo, que lhes confira depois a dimensão e lhes adira a justificação que lhe dite a sua consciência.

Como todas as cousas da língua, as conversas sobre a reforma ortográfica foram uma operação política. Tiveram uma parte de contactos, de condições prévias, e logo de negociações secretas. A minha informação é que duas destas condições, apresentadas pola representação do ILG e aceites polos demais, eram: (1) Que não se questionaria de maneira nenguma o carácter do galego como “lingua propia” independente do português. (2) Que, se antes de as conversas concluírem (ou quase, quem sabe) saía à luz pública informação sobre o processo (por exemplo, na forma dum artigo na imprensa), o ILG abandonaria as negociações (o qual significaria pará-las totalmente). A pessoa que me contou isto (por própria iniciativa: eu nem sabia que existiam as conversas) instou-me, por exemplo, a não enviar nengum artigo jornalístico sobre esta questão (por uma série de razões, resultou que efectivamente afinal nunca dediquei o meu tempo a escrever qualquer cousa sobre o assunto). Contou-me também da composição das comissões (3 membros por cada universidade e 3 polo ILG).

Se não foi assim, que me rectifiquem. Não me perguntem quem me facilitou esta informação nestes termos, porque deverei dizê-lo.

A segunda fase do processo foi uma mui importante campanha mediática preparatória (incluída a campanha de VIEIROS e a de jornais locais leais ao regime). Nessa campanha os sentidos das palavras são distorcidos e apropriados sistematicamente até que os novos sentidos se estabilizam e já todos contentes. Temos muita experiência disto no discurso sobre o “terrorismo”, o “independentismo”, etc., e os procedimentos mediáticos reproduzem-se, porque, como escreveu Foucault num lugar que não lim, os mesmos DISPOSITIVOS de coerção, disciplinamento e exclusão são utilizados por poderes aparentemente diversos, até encontrados. Assim, “concórdia” começou a significar ‘aproximação entre as variantes das Normas vigoradas’. “Mínimos” começou a significar ‘as opções “permitidas”, mas não “recomendadas” das Normas’. A produtiva metaforização bélica não deixou de fazer acto de presença (“AS IRMANDADES DA FALA CONTRAATACAN”, intitula VIEIROS uma das suas notícias). Na propaganda, à falta de possível comprovação por parte dos leitores e do público, as afirmações repetidas são tomadas por verdades de fé. Assim, menciona-se o número cabalístico de “100 especialistas” (muito mais curioso ainda quando se mencionam “100 linguistas”) que estariam por detrás do “acordo”. É difícil saber se a cifra se refere a (a) todos os membros das áreas de “Filoloxías Galega e Portuguesa” (sic) das universidades galegas, mais os membros do ILG; ou (b) todos os membros dos Departamentos universitários correspondentes, que podem incluir outras áreas de conhecimento; ou (c) todos estes mais os membros da ASPG, etc. Sobretudo, é difícil ver o valor da cifra 100 quando não sabemos quantos “especialistas” NÃO apoiariam o acordo: professores reintegracionistas destas ou outras áreas, professores de ensino secundário que por diversas razões (sempre políticas) nunca acederam nem acederão às universidades galegas, etc. E, por último, também não sabemos como estes acordos foram (ou não) referendados polos colectivos implicados. Em votações nas Áreas correspondentes? Por delegação nas comissões de três membros?

Por exemplo, no meu Departamento (“Depto. de Galego-Portugués, Francés e Lingüística” da Univ. da Corunha) a proposta de reforma foi levada a votação como ponto da ordem do dia numa reunião, e aprovada por maioria, com algumas abstenções (entre 3 e 5, não lembro) e um voto em contra, o meu. A minha argumentação na reunião foi que aprovar tal proposta de reforma ortográfica não era competência dum departamento universitário como tal, além, com áreas que não estiveram nunca implicadas nem foram chamadas às conversas, como os/as professores/as de Francês e os/as de Linguística (como eu), e sugerim que a Área implicada (“Filoloxías Galega e Portuguesa”) elaborasse qualquer escrito sobre a proposta como tal área, que o Director do Departamento poderia remitir aonde for necessário nas suas funções de representação. O Director do Departamento argumentou, porém, que, para o acordo ortográfico ir adiante, os negociadores requereram que fosse efectivamente APROVADO por todo o departamento da Univ. da Corunha (ignoro como fizeram nas outras universidades). De maneira que, logo duma longa discussão sobre se procedia ou não pronunciar-se sobre o assunto, na UdC votámos sobre a proposta de reforma ortográfica professores especializados em “Filoloxías Galega e Portuguesa” (sic) (“lingua galega”, “lingua portuguesa”, “literatura galega”, “literatura portuguesa”), “Filoloxía Francesa” (sic) , “Lingüística Xeral” (sic), e representantes de estudantes de Filologia (a representação do PAS, Pessoal de Administração e Serviços, estava ausente). A ambiguidade sobre a quem se refere o número “100 especialistas” continua. E a arbitrariedade de que numa universidade se pronunciassem sobre o acordo professores/as de francês e linguística geral e noutras universidades talvez não, também é difícil de entender.

Em definitivo, frente à CLAREZA da votação adversa da Academia (números de votos com nomes e apelidos), o jogo de cifras dos “100 especialistas” do “acordo” é escorregadiço e bastante irrelevante: como tantos números, só tem uma função propagandística. E assim por diante quanto à campanha mediática.

Finalmente, em toda operação política vem a fase da ofensiva. Inteirado o Povo por fim do que estava a acontecer e o que se vai fazer, a proposta chega ao organismo correspondente. Em impoluto procedimento Democrático (bom, houvo pressões, mas onde não há pressões nas votações, incluídas as que se dão no seio das universidades entre os “especialistas”?), a Academia rejeita a proposta. A Academia deslegitima o ILG, as universidades e a ASPG, e, em “contra-ataque”, estes organismos tentam deslegitimar a Academia. Mas, e se a votação tivesse tido o sentido contrário? Não se estaria a falar agora da “responsabilidade” e do “compromisso” da Academia, composta exactamente polos mesmos membros? Aceitam ou não aceitam os proponentes da reforma atè às suas últimas consequências a legislação que confere à Academia o poder decisório sobre a questão normativa para os usos administrativos do galego? É a Academia uma instituição para a construção nacional ou não o é? Se os votos duns/dumas poucos/as académicos/as (que não todos filólogos/as ou linguistas) valem mais do que as opiniões de “100 especialistas”, porquê seria desejável politicamente que esta instituição LEGITIMASSE desde a sua total discrecionalidade um trabalho “científico” de meses dos que “realmente” sabem da Língua? Por contra, se não devemos generalizar e verdadeiramente existem “académicos bons” que perdem as votações e “académicos maus” que as ganham, por acaso não poderiam existir também “especialistas bons” que por agora perdem a definição comum da língua (os reintegracionistas) e “especialistas maus” que na altura ainda a ganham (os demais)? Ou é ao revês? Ou só se tem a razão (científica, política e histórica) quando se ganha uma votação? As contradições nas posturas dos proponentes da reforma são flagrantes.

Não julgo ter dito nada que a lógica mais comum não poda entender: Se se quer “concórdia” e “acordo” sobre a “Língua”, acorde-se com todos aqueles que “trabalham” por Ela, ainda que estejam errados na sua ignorância reintegracionista (ou a escrevam mal, como eu). Porque, se a Verdade da Língua existe e é revolucionária, afinal o actual jogo das maiorias e das minorias teria o seu correlato nas acções e as decisões dos “especialistas”: a verdade científica (quer dizer, política) imporia-se TAMBÉM sobre os dissidentes, como aconteceu nesta (lógica) “concórdia”. A imensa maioria do Povo Galego já sabe que o galego é uma Língua independente do português e que portanto se deve escrever com letras espanholas, não é? Então, o quê poderia perder a “concórdia”? Morreriam de vergonha os “especialistas” reintegracionistas por estarem errados? Perderiam o seu chisquinho de carisma actual de dissidentes? Talvez. Mas então, que melhor final feliz para esta história? Ou é que ao pior o Povo Galego sairia da liorta pensando diferente? Ou é que, se falasse o Povo (que polo seu infantilismo e imadureza não podia conhecer a existência deste “acordo” pola imprensa), escreveria só espanhol? Ou melhor ainda: não escreveria?

E é que como diz o nosso presidente Pujol, “la pela és la pela”, e é sempre a que se impõe, da mão do Estado, através do conceito de Nação, Naçom, Nazón ou Nación, que che é igual de diferente. Todas estas conexões pelas – Nação – Ortografia, e mais, na obra citada no começo.

Liberdade e Ordem Alfabética

Encomendado para a revista Desescreber (Faculdade de Arquitectura, Universidade da Corunha), nunca publicada

A prática de escrever supõe uma abstracção de várias dimensões da língua, e uma translação, para um canal físico, dos conceitos ou dos sinais acústicos das línguas orais ou as imagens visuais das línguas gestuais. Neste sentido, a escrita é o que se chama um sistema de segunda ordem a respeito da fala (nenhum povo tem escrita sem fala, mas muitos povos não desenvolveram nunca formas de escrita para o seu idioma). Na cadeia de socialização que supõe a alfabetização e a carreira (literalmente) educativa, a língua escrita chega a naturalizar-se até ao ponto de que poucas vezes reflectimos sobre a sua arbitrariedade inerente. Os diversos sistemas de escrita passados e actuais de múltiplas civilizações mostram a imaginação e o senso prático dos humanos para a tarefa de transmitir sentidos.

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Prólogo para o livro de Mário J. Herrero Valeiro No limiar do silêncio (poemas da estrangeirice)

Prólogo para o livro de Mário J. Herrero Valeiro No limiar do silêncio (poemas da estrangeirice),
VII Prémio de Poesia Espiral Maior, Espiral Maior, Corunha, 1999. Pp. 7-12

“E vi os mortos, como quando a figueira lança os seus figos verdes, entre as águas que estavam debaixo do firmamento, águas negras, e a lua como sangue, denso granizo e neves do espaço tenebroso. E as estrelas do céu e as águas que estavam por cima do firmamento caíram na terra, e eis que havia um grande terramoto, e rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, e foram abertos os livros. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Os homens e as mulheres caíam cegamente pela boca, e o sol tornou-se negro como um livro que se enrola, e todos os pequenos e grandes montes e ilhas se moveram dos seus lugares. Abalada de um grande vento, a luz terrível subia e girava, puxando violentamente mortos brancos que ficavam presos pelos deslumbrados e arrastados lábios ao céu que se tornou como um saco de silício. E os seres aniquilados beijavam essa colina, e em baixo o céu retirou-se, e fez separação, e estalavam as cúpulas vermelhas”.

Helberto Helder, A Máquina de Emaranhar Paisagens

Conheci uma parte de Mário J. Herrero Valeiro há vários anos, uma tarde em que entrou no meu escritório de servidor do Estado na Universidade da Corunha, agora feudo económico e político da Opus Dei, para falarmos da língua e a essência do poder. Rapidamente mencionei-lhe todas as poucas citações que conheço e falei-lhe tudo o pouco que creio saber: que a Língua sempre mata, que não somos inocentes. Por cortesia, Mário não me explicou que já conhecia todas essas profundas citações e que já sabia tudo isso. Então nos separava e ainda nos separa apenas a terrível geometria dos Estados: eu continuo a ser um fiel servidor das suas seitas, Mário quisera sê-lo.

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O galego-português e a lógica social da escrita

Publicado em La Voz de Galicia, 12 Outubro 1999, p. 16, dentro da fugaz série de artigos “Debate: A normativa do galego”

Quixera contribuir a este debate sobre, basicamente, as relações entre a fala e a escrita no nosso país. São reflexões gerais aplicáveis às sociedades alfabetizadas, que ilustro com o nosso caso.

Em primeiro lugar, eu penso que é necessário entender que o problema da língua escrita é pouco importante em comparança com sangrantes realidades como um nível de desemprego dos mais altos de Europa (um 40% entre as mulheres galegas), a desfeita económica e ecológica, ou a cleptocracia galopante. Mas a questão do controlo da língua não está desligada destes problemas, claro, e prova disto é que são os mesmos poderes os que, desde há já várias décadas, são parcialmente responsáveis tanto da desfeita económica quanto da provincialização crescente das culturas galegas, nas aras duma modernidade que só mostra o seu rosto mais cruel.

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O Corpo, a Língua e o Estado Nacional

Publicado em Çopyright 66, 7 Novembro 1998 • Em Non! – crítica & intervenção

Na sociedade ocidental actual os três objectos (língua, corpo, estado nacional) que fazem referência a três âmbitos fundamentais da pessoa (o simbólico, o fisiológico, o social) sujeitam-se a um jogo entrecruzado de analogias com as quais entendemos e construímos um âmbito por meio do outro. Os três (língua, corpo, estado) são espaços minuciosamente territorializados e articulados polo discurso. Os discursos quotidianos, com as suas visões fortemente enraizadas de “como são as cousas”, constroem as nações-estado em termos orgânicos, como seres vivos cujas partes devem coerir, a risco de ficarem mancados: como uma árvore a que se lhe não podem cortar pôlas, como um corpo que não deve perder membros ou fetos. As línguas são também concebidas como realidades orgânicas que nascem, crescem, vivem, reproduzem-se e morrem, e que são mesmo invadidas por colonos alheios (“impurezas”) que as infectam e até as fagocitam. Os vírus das línguas são os “estrangeirismos”, os vírus dos estados são os “terrorismos”, os terroristas dos corpos são os vírus. O inimigo duma língua é outra língua, o inimigo dum estado é outro estado, o inimigo do corpo masculino é o corpo feminino.

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A ausência de linguagem

Publicado em A Nosa Terra 840, 23 Julho 1998, p. 31 • Non! – crítica & intervenção [ligação não operativa]

Nunca se poderá destacar suficientemente a instrumentalidade da apropriação da língua e da palavra na sociedade capitalista para a dominação social. Embora os sociolinguistas não o saibam, a primeira divisão entre as gentes que estabelece o capitalismo não é entre aqueles que falam a Língua A e aqueles que falam as Línguas B ou C, mas entre aqueles poucos que possuem uma linguagem e aqueles muitos que simplesmente são utentes duma língua, ou duas, ou três. A complexidade das condutas diárias é reduzida por políticos e sociolinguistas a cifras de “falantes” que “escolhem” uma língua (ou “Língua”) ou outra, e é curioso constatar que esta “escolha” se constitui num visível signo científico dos grupos sociais, como se houver algo inerentemente transcendental em proferirmos sons para comprar pão na loja da esquina ou para comentarmos sobre os vizinhos. Os “povos”, assim, são dirimidos em grupos de “falantes”, e estes grupos são assignados a cifras visualizáveis. A territorialização da gente em populações sociolinguísticas emula outras territorializações sociais, como amostra dos complexos protocolos inerentes ao capitalismo para impedir a emancipação, isto é, o reconhecimento próprio e mútuo das pessoas como forças activas na essencial procura da utopia.

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Literatura Zonal

Publicado n’O Pica-folla, Maio 1998

Imagino que, duma vez mais, será a minha uma das poucas vozes discordantes a respeito de como se vê o idioma galego e a cultura feita na Galiza. Não me importa muito, estou afeito. Não me importa “ter razão” ou “estar errado”: o que me importa é como se vai impondo o silêncio sobre as mentes, e importa-me, ainda que for, apenas porque parte da minha nutrição perante a desídia quotidiana é duvidar da obviedade das cousas. Se esse libertador exercício de debate interno se nos nega, pouco nos resta já. Por isso, vencendo o crescente cepticismo que ameaça com descebralizar-me ainda mais, aceito o convite a contribuir para esta celebração, espero que crítica, do chamado “Dia das Letras Galegas” de 1998.

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Exilados sem querê-lo

Publicado em Çopyright 24, 15 Dezembro 1996 • N’A Nosa Terra 761, 16 Janeiro 1997, p. 27

Por primeira vez na minha vida, olhando para a corunhesa rua São Andrés desde a janela da sala, tive a clara sensação de ser um exilado, um habitante dum país inexistente que desfaz a linha das fronteiras como uma enorme e suave língua geológica. Não me refiro a essa alienação que muitos sentimos às vezes por vivermos numa Galiza indistinta, rota, apenas suturada temporalmente pelos esforços pontuais duns poucos resistentes que sabem que morrerão no esquecimento: os marinheiros que trocam uma esmola de sardinhas por pneus queimados nas estradas, os poucos políticos que com constância percutem nos volumosos muros interiores das instituições espanholas, os insubmissos ou os desorientados que desde a Praça da Quintana de Compostela contemplam com nostálgica heroína nas veias o crescimento das Pátrias oficiais como grandes aves de artifício. Refiro-me a outra e confessadamente estranha sensação: a de ser um visitante temporal na Galiza chamada moderna, enquanto outro país sem bordas nem monarcas que também poderíamos chamar a Galiza, ou Portugal, ou longa língua de terra onde todos os Setembros vão morrer de idêntica maneira os sargaços, fica em parte oculto por uma névoa de séculos e em parte oculto pelo discurso dos mais fortes.

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Pátria e Língua, por última vez

Publicado com alterações sem solicitar em A Nosa Terra 736, 25 Julho 1996, p. 27

Toca-nos um novo 25 de Julho, uma nova celebração colectiva de identidade. Bom, sejamos claros: uma nova celebração minoritária de valores absolutos: Pátria, Língua, Identidade. Nunca poderei desbotar da minha pele a inquietude e náusea que me produz a palavra “pátria” (mais concretamente, Patria, sem acento), recitada dos catecismos fascistas espanhois durante miserentos anos de incultura. Porém, reconheço também que às vezes as Pátrias e outros construtos são úteis para distorsionarem tacticamente um sentir colectivo. Suponho que esta contradição entre a náusea e o fingido compromisso deverá viver comigo enquanto siga sendo necessário procurar formas efectivas de resistência. Mas, em que consistem, aqui e agora, estas formas efectivas de resistência?

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Corunha, a cidade sem língua

Enviado a A Nosa Terra; não publicado

Rodeada polo Passeio da Luz Universal do invito alcaide, que rompe a unidade histórica da terra com o oceano, a majestosa cidade da Corunha esconde entre as ruelas provisórias de Monte Alto, dos Castros, dos Malhos, um silêncio infinito. O que se conhece desde fora da Corunha é a epiderme assoalhada da praça imperial de Maria Pita, dos jardins onde os limpos passeantes traduzem o domingo em conversas sorridentes no idioma único que nos legou Espanha. Mas no interior dessa casca civil e luminosa, nos bairros decaídos do Orzã, apenas a uns passos da palavra, impõe-se o som escuro e rouco dos desamparados, aquele que não consiste em línguas mas em derrotados sonhos de poderem descer, nalgum momento da sua vida, às cândidas praias construídas com areias dum país que já não é nós mesmos. A Corunha é o epítome da glossolália, o falar em línguas em trance proletário para um deus que não nos atende. Percorrer a rua de Hércules, a encosta de Santo Tomás, as vielas de Trabajo, Libertad ou Progreso é um exercício de amargor. A língua pública dos cartazes, dos sinais, das precárias tendas de alimentos, revela-nos estarmos dentro de Espanha. Na beira-rua os rapazolos jogam com palavras de telefilme a construírem casas de cartão, a emularem os enormes enxames de chabolas onde se reproduzem em caló os ciganos, numa sorte de experimento de cultivo realizado pola supremacia branca.

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