Liberdade e Ordem Alfabética

Encomendado para a revista Desescreber (Faculdade de Arquitectura, Universidade da Corunha), nunca publicada

A prática de escrever supõe uma abstracção de várias dimensões da língua, e uma translação, para um canal físico, dos conceitos ou dos sinais acústicos das línguas orais ou as imagens visuais das línguas gestuais. Neste sentido, a escrita é o que se chama um sistema de segunda ordem a respeito da fala (nenhum povo tem escrita sem fala, mas muitos povos não desenvolveram nunca formas de escrita para o seu idioma). Na cadeia de socialização que supõe a alfabetização e a carreira (literalmente) educativa, a língua escrita chega a naturalizar-se até ao ponto de que poucas vezes reflectimos sobre a sua arbitrariedade inerente. Os diversos sistemas de escrita passados e actuais de múltiplas civilizações mostram a imaginação e o senso prático dos humanos para a tarefa de transmitir sentidos.

Porém, amiúde a política tem tornado esta natureza de segunda ordem da escrita numa primeira ordem simbólica: o que darei em chamar a Ordem Alfabética, o poder reitor dos alfabetos. Entre os vários sistemas de escrita, a escrita alfabética chegou a espalhar-se por razões longas de enumerar, até ser na altura o procedimento dominante para representar, teoricamente, o aspecto mas visível da língua, que é a fala. Digo “mais visível”, porque a língua é inerentemente um processo mental abstracto polo qual associamos conceitos com imagens acústicas (de sons) ou representações de signos visuais. Porém, existe o mito de que a escrita alfabética “reflecte os sons da língua”, e, assim, polo comum entende-se como mais “eficiente” aquela ortografia que estabelece uma correspondência bi-unívoca entre “som” e símbolo gráfico, ou grafema. O mito dos alfabetos tem a sua produtividade, sobretudo quando se trata de espremê-lo para argumentar que a ortografia “própria” é mais “lógica”, ou mais “adequada à nossa língua”, e, simultaneamente, para doestar outras ortografias como “ilógicas” ou “afastadas da nossa língua”.

Isto é o que acontece na altura no pensamento dominante (mas não por isto necessariamente mais “científico”) na Galiza sobre a escrita do galego. Apresenta-se a ortografia comum do português ou galego-português, que estou a utilizar agora, como um elemento intrusivo, aparatoso e traidor a uma espécie duma “essência” do galego. Mas, a pouco que analisemos as críticas a esta suposta “intrusão” contra a “essência” galego, veremos que na realidade é exactamente o contrário: qualquer afastamento do tronco comum galego-português leva inevitavelmente a escrever o galego com os símbolos gráficos do espanhol, que é a proposta da grafia institucional do galego. Inevitavelmente, também, a escrita institucional conecta com uma clara vontade –sempre política– de afastar (não aproximar) a Galiza de Portugal, e de inserir de cada vez mais a Galiza no âmbito cultural espanhol, em Espanha e a Hispanidade como pontos de referência.

Mas, se estruturalmente o galego é tão português (é galego-português) como o andaluz é espanhol ou como o mexicano é espanhol (é espanhol de México), não parece coerente manter pontos de vista diferentes para a escrita respectiva destes conjuntos de variedades, galego por uma parte, e andaluz ou mexicano por outra. É evidente que o galego é “língua”, no sentido de que não é uma forma deturpada de comunicação, nem uma série de guarismos fónicos inventados da noite para a manhã, nem uma linguagem específica como os códigos do tute ou a gíria dos jovens. Mas o galego é língua no sentido em que é língua galego-portuguesa, da mesma maneira que o andaluz ou o mexicano são “língua” no sentido em que são língua espanhola. Porém, perigosamente, no estado espanhol a noção de “língua própria” debruça-se sobre uma realidade social e política em rápida mudança como fácil instrumento de apropriação selectiva polas elites, que são quem mandam sempre em tudo, incluindo as maneiras dominantes de ver as línguas. Neste sentido –argumenta-se– se a Galiza tem personalidade, território, história e cultura específicas, dentro desta lógica captiva do Capital, também deverá ter uma “língua própria”, sem querer aceitar que a “língua própria” da Galiza pode sê-lo também (como grande sistema linguístico comparável em variedade interna ao espanhol ou ao inglês) a língua de outros povos e países como as repúblicas de Portugal ou do Brasil.

Os argumentos em favor de assumir com coerência esta relativa unidade do galego-português, reconhecidos mesmo por proponentes da ortografia institucional de base espanhola, são tantos que não poderiam ser expostos aqui em detalhe. Mas o argumento fundamental é que, se a ortografia é arbitrária para representar imagens mentais de sons (eu poderia estar a escrever agora com as normas e combinações ortográficas do inglês, nong seryah tang kompleekado), as convenções “portuguesas” que estou a utilizar são perfeitamente válidas em si. Só uma decidida política de afastamento dirigido, de des-reconhecimento histórico, pode fazer à gente conceber que os símbolos da ortografia institucional espanholizantes são mais “próprios” do que a própria ortografia galego-portuguesa.

O exercício que se requer para compreender um texto escrito como o actual não é só mental, não é só um treinamento nas associações entre letras e imagens acústicas dum idioma até chegarmos a escrever a variedade galega da língua galego-portuguesa com os símbolos comuns, como a gente escreve o espanhol da Galiza com os símbolos comuns da língua espanhola. O exercício urgente que se reclama é sem dúvida um exercício ideológico: de abertura e clareza, de coerência na nossa prática, e, sobretudo, de reconhecimento e questionamento crítico do papel que a Língua escrita (qualquer) e a cultura que ela veicula têm jogado, jogam e jogarão na criação e mantimento da diferença social, o estigma e o poder sobre os outros. Surpreende constatar que os mesmos sectores de poder ferozmente defensores duma visão particularista do idioma são aqueles que, como o ex-ministro franquista Manuel Fraga Iribarne ou o actual Conselheiro de Cultura Xesús Pérez Varela, não há tantos anos censuravam revistas como a presente, ordenavam violentas cargas policiais ou manifestavam jubilosamente “LA CALLE ES MÍA” perante os signos do protesto social. Mas eles são coerentes: são os mesmos que agora denegam subvenções com dinheiros públicos a publicações exclusivamente em galego porque não utilizam a ortografia “oficial”.

Porque, como vemos, para o poder as letras são mais importantes do que a própria língua ou a cultura. Este estado de cousas produz a demonização dos dissidentes, a estigmatização dos Outros, as proclamas e ex-abruptos contra os “lusistas”, como o seguinte graffiti cavernícola feito num banho público de Compostela: “RESPETADE O QUE VOTA A XENTE, MINORÍA DA MERDA“.

Nem escrever como escrevemos muitos é faltar ao “respeito”, nem a “xente” votou qualquer cousa sobre a língua (votou no PP, isso sim). E, sobretudo, nem ser “minoria” (se o somos) é uma eiva: em todo o caso, é um estado de ânimo, uma sã atitude de exercermos a nossa coerência, resistirmos sempre a violência da Ordem Alfabética e apostarmos pola razão da liberdade que ainda resta.