Corrupção, consenso e política linguística

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     Em textos anteriores (“Língua, Mercado e liberdade”, “O conflito linguístico só tem uma saída”, “Contra a utilização dos ‘direitos linguísticos'”, “Bilinguismo zumbi e crise sociolinguística”) tenho apontado que a história da política linguística na Galiza se deve examinar como a articulação de três dicotomias entrecruzadas: o âmbito público frente ao privado; a dimensão individual frente à coletiva; e os direitos frente aos deveres. Hoje, a máxima expressão desta dialética múltipla na crise sociolinguística é o conflito entre deveres públicos coletivos a respeito da língua e direitos privados individuais, por exemplo os “direitos” dos e das estudantes do nosso sistema educativo.

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E chegou a Pergunta

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O Conselheiro de Educação Jesús Vázquez, acompanhado polo Secretário Geral de Política Linguística, Anxo Lorenzo, apresentou o questionário de consulta de “preferências” dos pais sobre as línguas de ensino para os seus filhos. O questionário consiste em quatro perguntas por nível educativo: Educação Infantil, Educação Primária, Educação Secundária, e Formação Profissional. Será distribuído a 330.000 famílias que têm filhas ou filhos escolarizados.

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Sim, mas, que Pergunta prefere a Língua?

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O novo Secretário Geral de Política Linguística, Anxo Lorenzo, declarou em mais duma ocasião que “O principal problema [do Velho Decreto sobre o galego no ensino] é que non está apoiado por todas as forzas políticas” (Encontro Digital em La Voz de Galicia, 29 de maio de 2009), ou que “El bipartido aprobó un decreto sin el acuerdo del PP” (entrevista em EL PAÍS, 23 de maio de 2009).  Frente a outras opiniões de Lorenzo, esta parece uma avaliação transparentemente política, não técnica (sociolinguística), porque não se sustém numa interpretação das relações entre a conduta dum partido (o apoio do PP ao Velho Decreto esvaeceu-se no último minuto) e a posição (apoio ou apatia) que a massa social votante desse partido possa suster. Como sociolinguista, Lorenzo não poderá acreditar que o PP estava enganado a respeito da posição da sua massa social votante durante meses de gestação do Velho Decreto, nem, muito menos, que esta posição do eleitorado do PP mudasse coletiva e radicalmente num dia.

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O conflito linguístico só tem uma saída

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     O conflito linguístico é inerente às sociedades de classes, porque não é um conflito linguístico: é um conflito de classe, em vários sentidos amplos, de grupos em controlo de diversas peças dessa perversa maquinaria que é um modo de produção essencialmente injusto, ainda com todas as correções que se tenham introduzido. Não quisera simplificar o problema negando que a questão identitária tenha um lugar importante no conflito linguístico na Galiza. Mas a questão identitária também consiste num conflito entre grupos. Quando a supervivência material inça a vida quotidiana, qualquer elemento cultural ou social suscetível de ser apropriado, capitalizado e distribuído diferencialmente cobra o seu papel classificador. Certo, a língua não é apenas “qualquer” elemento, mas a lógica da igualdade intrínseca dos humanos deveria levar-nos a questionar por que, em ocasiões, em sociedades específicas, a língua se torna em praticamente o mais importante dos elementos diferenciadores. O combate simbólico pola língua na Galiza é velho, tão velho como a incapacidade geral de a gente assumir, precisamente, a evidência dessa realidade coletiva, além dos nossos desejos, e ainda contra as mais puras das nossas ideologias que nos dizem que o coletivo nunca deveria se impor contra a liberdade.

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Bilinguismo zumbi e crise sociolinguística

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     No seu blogue do New York Times, o prémio Nobel de Economia Paul Krugman introduz a expressão “zombie ideas” para se referir àquelas más propostas económicas já mortas que ressuscitam periodicamente. Aprendo a imagem numa entrevista que lhe faz Amy Goodman no inimitável noticiário Democracy Now!, e aproveito-a sem pudor. O “bilinguismo zumbi” do meu título não se refere aos milhões de pessoas galegas que conhecemos e falamos duas (ou mais) línguas, mas às ideias zumbis sobre a nossa crise sociolinguística que a história mata periodicamente mas que levantam cabeça à mínima, com sedução de ultratumba, e que haverá que voltar a matar com paciência. O “bilinguismo harmónico” de Fraga Iribarne ressuscitou há pouco no corpo da “amabilidade linguística” de Alberto Núñez Feijóo. Na realidade, são novas versões da velha ilusão do convívio entre línguas, que nunca funcionará na Galiza (entre línguas) até que se destaque uma outra maneira de articulá-lo.

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Língua, Mercado e liberdade

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1. A eliminação do coletivo

Num texto de 1998, Pierre Bourdieu (“L’essence du néolibéralisme”, Le Monde Diplomatique, Março 1998; acesso na Internet: http://www.monde-diplomatique.fr/1998/03/BOURDIEU/10167 ; existem traduções portuguesas como a de Informação Alternativa, http://www.infoalternativa.org/teoria/teo007.htm) lembra-nos o principal procedimento do liberalismo moderno (o duvidosamente chamado “neoliberalismo”, isto é, o ultraliberalismo que quer laminar as “conquistas” sociais e laborais) na sua procura da Utopia do Mercado: a extirpação gradual de todo o coletivo, amiúde com a rendida conivência das forças do progresso. A recente ofensiva discursiva de um setor do liberalismo programático español contra as políticas e legislações orientadas à manutenção (também programática) das línguas “españolas” não castelhanas do Reino pode ser examinada dentro deste contexto. Os discursos do fenómeno Galicia Bilingüe, o Manifiesto por la lengua común –com as aderências que obteve na Galiza– ou, sobretudo, o mais recente relatório do Club Financiero Vigo (CFV) exibem uma clara base argumental política compartilhada. Destes, o relatório do CFV, polo prestígio da sua fonte e polo debate que está a suscitar, merece ser comentado como paradigmático. O documento, com data 2 Setembro 2008, é editado em galego e em español, e intitula-se Política lingüística: Unha visión empresarial (Cadernos para o Debate 12) / Política lingüística: Una visión empresarial (Cuadernos para el Debate 12). Porém, na web do CFV na altura (9 Setembro) só está disponibilizada em PDF a versão em español, que é, consequentemente, a que utilizarei: http://www.clubfinancierovigo.com/archivos/archivo_333_2481.pdf. / http://www.clubfinancierovigo.com/cuaderno.asp?id=333&lang=es .

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Contra a utilização dos ‘direitos lingüísticos’

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A situação socio-linguística actual da Galiza (e passada, desde a formação do estado capitalista moderno) pode ver-se em termos dum duplo eixo de coordenadas: a hidráulica entre direitos e deveres linguísticos, e o confronto entre os âmbitos público e privado.

Enquanto se perde a língua na Galiza, os três partidos principais que monopolizam a representação parlamentar aprovaram um Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega (PXNLG, aprovado em 21 de Setembro de 2004 polo Parlamento da Galiza) fundamentado no que podemos chamar “filosofia dos direitos linguísticos”, isto é, un Plan que “debe servir para que calquera poida vivir plenamente en galego” e cujo primeiro objectivo é “Garantir a posibilidade de vivir en galego a quen así o desexe, sabendo que conta co amparo da lei e das institucións”. Assim focado, além dos problemas técnicos e de desenho, o PXNLG nunca poderá garantir esse pretenso objectivo da “normalización”, se genuinamente entendido o vocábulo. Razoemos: Como é possível conceber que os representantes políticos do liberalismo (a apropriação capitalista do sentido político da liberdade) aprovassem um plano que, de ser fiel ao estandarte ideológico da “normalización”, significaria o devalo definitivo do español, a língua do Capital, a segunda língua da Galiza, se não ao seu prático desaparecimento social?

Por que se aprovou o Plan de Normalización, então? Simplesmente, porque não se aprovou qualquer plano de normalização. Não há tal contradição entre a defesa dessa “normalización” dos “direitos linguísticos” galegos e a posição liberal centralista. Porque, de facto, é precisamente a filosofia dos “direitos linguísticos” que possibilitou o surgimento mediático de iniciativas liberais como Galicia Bilingüe. Quando se centraliza a noção de “direitos linguísticos” individuais ou até colectivos (que é o que o PXNLG faz), não há escusas argumentais contra os “derechos lingüísticos” a respeito da língua española. Chegam a confundir-se, assim, questões radicalmente diferentes como o direito a manter um posto de trabalho onde a pessoa trabalhadora livremente utilize o galego (o qual em essência é um direito laboral, não linguístico), com o pretenso “direito” do consumidor a que uma empresa privada ou comércio lhe responda em tal ou qual idioma, ou com o pretenso direito a “receber o ensino na língua mãe” fora do lugar que essa língua ocupar no panorama sócio-darwinista-linguístico em que vivemos. O pretenso direito a receber ensino em español (não de Lengua Española, que é outra cousa), garantido no Decreto educativo na Xunta, significa na prática a manutenção da presença do español num sistema educativo público cujas diretrizes emanam (dizem) da “vontade popular” duma sociedade que tem, precisamente, o galego como língua histórica, tradicional, popular e (ainda) maioritária.

Uma leitura básica das declarações universais de direitos (desde a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, DUDH, até várias outras que, em diversos âmbitos internacionais, a desenvolveram nos aspectos culturais e foram oficialmente sancionadas polos estados, entre eles o Reino de España) deveria esclarecer estas questões. Temo-me que esta leitura não seja pão comum para as nossas elites. Vejamos.

A DUDH estabelece que nenhuma pessoa ou grupo poderá ser discriminada em razão de língua no exercício dos seus direitos sociais. Isto implica que os poderes públicos têm o dever de preservar a igualdade e os direitos das pessoas e grupos a utilizarem as suas línguas.

Mas a DUDH estabelece mais duas importantes questões, com importantes implicações:

A primeira implicação é que a Lei pode, nas aras do “bem comum” ou princípio semelhante, estabelecer deveres que, evidentemente, não atentem contra os direitos:

Art. 29º, 1: O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade”.

Por exemplo, o ensino elementar é obrigatório (Art. 26º, 1), precisamente porque ter educação é um direito e um dever dos cidadãos. E portanto são os Estados (não a empresa privada) que devem garantir esse direito e esse dever, na plasmação da sua responsabilidade de preservarem a continuidade de recursos culturais colectivos.

Assim, pode-se interpretar que os poderes públicos galegos têm o dever de garantir que o galego seja oferecido e se mantenha no sistema educativo público (ou, já que malditamente existe, também no “concertado”, isto é, pago com dinheiro público mas benefícios privados), e para isto poderiam impor (como na Catalunha) um sistema de imersão total em galego que contrapesasse o efeito demoledor que o sector privado está a ter sobre os usos linguísticos colectivos.

Os poderes públicos galegos poderiam ter feito isto, mas não o fizeram, e manteve-se a presença do español nas aulas. Por que? Porque imperou a filosofia dos “direitos” linguísticos, isto é: dos derechos lingüísticos para o español. De que se queixa portanto Galicia Bilingüe? Talvez se queixe, no fundo, de que, pobremente escolarizados assim os rapazes em algo de codificado español e muito de deficiente galego, não chegarão a dominar a língua española como pleno recurso simbólico. O argumento é um pouco falacioso, mas não de todo: enquanto o galego não seja língua veicular global do sistema educativo a todos os efeitos (aulas, comunicação interna, língua de relação entre o professorado), não existirá um modelo de língua dotado do capital cultural suficiente que até um meninho falante de español possa aplicar por transferência à sua própria língua. Um idioma galego bem ensinado e dotado de capital cultural pode resultar veículo efectivo para a transferência para outro idioma também bem ensinado. O facto, por exemplo, é que as pessoas que escrevem bom galego (em qualquer norma) tipicamente também escrevem bom español. O inverso não é o caso.

De não ser assim, o resultado continuará a ser uma alfabetização deficiente tanto em galego como em español (até propositadamente deficiente, como tem destacado António Gil, embora o selectivo e classificador sistema educativo “democrático” não precisa de ser tão maquiavélico: basta-lhe com ser), do qual não deixa de ter culpa a semelhança formal de ambos sistemas escritos, o español-RAE e o galego-RAG.

E, portanto, enquanto não se materialize este dever das instituições de ensinar o galego como língua de cultura, o “direito” de falar e escrever galego será vazio, porque “A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos humanos e das liberdades fundamentais” (Art. 26º, 2) e “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam” (Art. 27º, 1). E não se pode participar na ciência e na cultura sem língua.

Os liberais bilinguistas amparam-se no argumento de que o “dever” de aprender galego atenta contra os seus “direitos” como español-falantes. Um poderia pensar numa analogia com o aberrante dever, constitucionalmente estabelecido, de saber español. Com efeito, é aberrrante que um estado estabeleça uma obriga no que diz respeito à competência linguística individual, porque, além de tudo, esta é uma obriga contra cujo incumprimento nem há sanção, nem possibilidades de seguimento, nem mecanismos coercitivos para o seu cumprimento. A obriga legal afecta, isso sim, a aspectos de fechamento social do Estado frente, por exemplo, a imigrantes que procurem a cidadania española, para o qual devem declarar (declarar) que sabem español. O Estado Español assim cura-se em saúde e defende-se, tiranicamente, perante a possível indefensão dum cidadão que não fale español (ou não queira fazê-lo), demitindo-se o Estado da sua responsibilidade de, precisamente, garantir os direitos linguísticos individuais deste cidadão. Circular? Enguedelhado? Talvez, mas real. Explico: Os cidadãos têm direitos de fala entre eles e com as instituições, mas não deveres de comunicar-se duma dada maneira com as instituições que estão ao seu serviço!

Mas o imaginado paralelo entre o dever constitucional de saber español e os decretos de imersão linguística, e muito mais com o mutilado decreto da Xunta, falha de raiz: O decreto da Xunta sobre o uso do galego nas aulas não obriga ao conhecimento do galego, mas impõe ao Estado (a Xunta) a obrigação de facilitar que se possa saber. Um(a) estudante poderá continuar a falar español. E (excepto nas aulas de língua, evidentemente), poderá continuar a fazer os exames e os trabalhos em español. São os trabalhadores do estado, os docentes, os que devem utilizar o galego, não os meninhos.

A diferença entre ambas políticas vê-se mais claramente se atendermos ao último ponto da Declaração Universal:

Art 30°. Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma actividade ou de praticar algum acto destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados.”

O enunciado pode parecer abstrusamente circular, mas não é. Quer dizer, mais ou menos, que em nenhum caso poderá um estado “democrático” (os outros, já se sabe) impor um dever social que atente contra o direito à igualdade jurídica, à integridade física e aos direitos das pessoas e dos grupos. À luz disto, conclui-se facilmente o seguinte: Uma Constitución que estabelece o dever de saber español vai contra o Artigo 30º da DUDH precisamente porque estabelece um dever que vai contra os direitos, visto que ter competência numa língua não é uma questão de estrita decisão individual. Mas um decreto de uso do galego que estabelece (teoricamente) o dever de estudar, nas aulas, o galego como (teoricamente) língua de (teoricamente) cultura (como se tenta aprender Geografia ou Matemáticas) não faz isto, nem obriga ao seu uso.

Em conclusão, não é nos “direitos linguísticos” dos cidadãos que uma política linguística “normalizadora” (nem oficial nem para-partidária, com a que sofremos na Galiza) se deveria focar, mas nos deveres dos poderes públicos inseridos numa dada situação (sociolinguística, neste caso) para defenderem os interesses das maiorias sem atentarem contra as minorias (se é que ambas existem), nem contra os direitos de umas e outras.

Dos deveres e do privado

Ora bem, até onde podem e devem chegar estas políticas dos deveres linguísticos? Pode e deve o Governo Galego, por exemplo, estabelecer deveres linguísticos no âmbito do privado, do comercial, do familiar? Pode e deve impor o uso do galego nas livres empresas no nosso livre mercado? Não só não deve, senão que não pode, nem constitucionalmente.

Os poderes públicos “democráticos” podem intervir incentivando as empresas que utilizem o galego, até ao ponto de excluir absolutamente de certo tipo de subsídios aquelas que não o utilizem para nada, porque os poderes públicos “democráticos” não têm a responsabilidade nem a obriga de manterem empresas privadas que não têm qualquer carácter social nem qualquer outra meta que o benefício privado. Em lógica ética, não se pode apoiar o benefício privado que é um roubo (já o sabemos) porque nasce da apropriação do mais-valor do trabalho, não aceite polo trabalhador ou trabalhadora. A obrigação dos poderes públicos com responsabilidade social, mesmo num quadro jurídico que consagra o capitalismo como roubo, deveria ser então deixar morrer o capital privado nocivo. Ainda mais: no sistema capitalista os poderes públicos com responsabilidade social deveriam concorrer decisivamente contra o capital privado, criando capital colectivo que ré-distribuísse o mais-valor em formas distintas ao benefício. Curiosamente, quando isto acontece, o Capital fala de “concorrência desleal” por parte do Estado, quer dizer, por parte da… colectividade! Mas calam quando a concorrência é por parte duma sociedade anónima. (Se calhar a contradição é porque o Estado é a sociedade anónima mais poderosa, mas não lho contes a ninguém). No caso especificamente da língua, o capital poderia estar em meios de comunicação e outros participados publicamente, mesmo editoras (assim a Xunta poupava em subsídios às editoras privadas). Esta capitalização pública em função da língua deveria aplicar-se não só às indústrias da língua, mas a qualquer tipo de empresa onde existe a língua (isto é, todas). As justificações para isto são variadas, incluindo a (teórica) capacitação das classes desfavorecidas tradicionalmente associadas ao uso do galego.

Em resumo, se a Língua é importante como valor para o Governo que representa o Povo que utiliza essa Língua, para quem apoie o idioma galego como capital e como fonte de capital, tudo; para quem não o utilize em todas as suas actividades, zero. E não se preocupem com o nome em si da empresa marginada polo Estado, que se uma desaparece, outra cobrirá de contado o seu “nicho de mercado”.

Esta é portanto a dinâmica e dialéctica dos direitos e deveres, do púlico e do privado. A ênfase deveria ser colocada nos deveres do público, não nos direitos do privado.

Infelizmente, porém, acho que a ênfase nos “direitos linguísticos” (até dos “direitos colectivos”) contagia, harmoniosamente, tanto as políticas oficiais quanto o activismo linguístico. E assim surgem derrotistas e auto-defensivos lemas que, no fundo, estão a pedir que se aplique um Plan Xeral de Normalización que garante a prevalência eterna do español, minorizando e exotizando os galego-falantes. Porque o activismo linguístico só deveria interpelar legitimamente os poderes públicos para desenvolverem as suas obrigas com a sociedade. Focar-se nos “direitos” dos submetidos em vez dos deveres dos submetedores é jogar a perder. Por exemplo, no libérrimo quadro jurídico actual (incluído o PXNLG), é absurdo que o activismo linguístico interpele directamente as libérrimas empresas privadas cujo único objectivo é o libérrimo benefício, a custo do que for e da língua que for. Desde que essas empresas não vulnerem o meu “direito” a falar galego como trabalhador (repito, um direito laboral) ou como cliente, eu nada posso fazer contra o “direito” de responder-me em español dos chefes ou dos vendedores. Não está constitucionalmente nem estatutariamente reconhecido que eu possua o “direito linguístico” a que me vendam o pão em galego. Eu posso comprá-lo em galego, isso sim, mas o pão pode legalmente ser vendido em español: acontece cada dia, e eu não posso acudir ao Valedor do Povo. São os poderes públicos que têm a obrigação de que isto deixe de acontecer no amplo e turvo mundo do Capital, se é que a Língua e a Nação Galega são tão importantes. E o activismo linguístico poderia exercer outras acções específicas (não vazios apelos às empresas ou à cidadania em geral), desde boicotes variados e teimosos até criar o seu próprio capital, as suas próprias redes e fidelidades comerciais. Reformismo puro? Sim. Enquanto exista o actual quadro jurídico, institucional e constitucional, sim.

Mas nem este é o objectivo unânime dos nossos representantes políticos, até dos nacionalistas, que unanimizaram o tão louvado Plan Xeral de Normalización (?) da Lingua (?) Galega. De se cumprirem os objectivos do Plan integral e efectivamente, um panorama plausível é que em vinte anos uns poucos milhares restantes de monolingues galegos poderão desenvolver toda a sua vida diária numa dada versão do galego, oralmente e por escrito, frente às administrações e até com as empresas, num compartimento estanco do país, mas sem qualquer vulneração dos seus “direitos”. Quer dizer: exactamente o que querem os de Galicia Bilingüe, que, amparados na filosofia do PXNLG, reclamam também o seu “direito” a viverem em español. O PXNLG e Galicia Bilingüe são as duas faces da mesma moeda de duas línguas.

Talvez alguém não se importe com esse panorama futuro imaginado dos galego-falantes e português-escreventes hermetizados. Guetos piores se viram. E, afinal, num alto prédio sempre se vive num gueto, na língua que for. A Galiza pode continuar com esse modelo “normalizador” das instituições e do activismo para-institucional, ou encetar um outro modelo, muito mais difícil, porque implica começar a pensar e a agir em social, económico e político, não em linguístico, e ainda menos em filológico: pensar numa sociedade onde desapareçam as noções de “direitos” e “deveres” (linguísticos e dos outros), e onde se substitua o “privado” por “particular” e o “público” por “colectivo”.

Final de sequestro: Sobre o “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”

Publicado no volume O País na Janela. Três anos de independência informativa: Novas da Galiza 2002-2005. Lugo: A Fenda Editora (2005), pp. 23-25

Já há anos que o vocábulo “normalización” da língua foi sequestrado por sectores do poder político e intelectual galego, com bons benefícios. Mas parece que com o Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega (PXNLG) a nau sequestrada da língua entra no seu trajecto terminal, pilotada por planificadores temerários. Nesta crítica do PXNLG foco-me apenas em duas questõezinhas, como veremos totalmente marginais: (1) os próprios objectivos do Plano; e (2) o seu próprio desenho geral. Qualquer centena de medidas que saírem de objectivos e desenhos deficientes só poderá produzir resultados deficientes. Ou, antes, muito úteis para o alvo de enterrar com palavrório o assunto da língua por décadas por vir.

Entre os objectivos do PXNLG figuram garantir os direitos de “quem quiser” a desenvolver a sua vida em galego, e o de promover a expansão do idioma em âmbitos e funções sociais. Dificilmente estes objectivos podem ser considerados “normalizadores”: o direito individual a viver em galego já está reconhecido na legislação de há mais de 20 anos (o Estatuto e a Lei de Normalización). E a expansão de certos (certos) usos do idioma já está recolhida nessa mesma legislação e sustentada na própria dinâmica do país. Naturalizar um idioma não é isso, mas fazê-lo imprescindível e habitual para todos os âmbitos de uso de toda a gente, ou da imensa maioria (não só dos que “queiram”). Em todo o caso, um Plano verdadeiramente “normalizador” deveria estar desenhado para garantir o direito dos cidadãos “que quiserem” a utilizarem também o espanhol. Polo contrário, o PXNLG parte da minoração efectiva do português galego, violando assim o ditado do próprio Estatuto que o institui (descabeçado) como “lingua propia” da Galiza.

Em segundo lugar, o PXNLG ignora importantes bases sociolinguísticas que explicam o funcionamento das línguas em qualquer sociedade de classes burocratizada moderna. O Plano segmenta os usos linguísticos sociais praticamente em Sectores “verticais” por Conselharias, sobre os quais a Xunta vai intervir com inúmeras medidas. Mas a gente real não fala por sectores verticais: fala e escreve consoante o que se chamam domínios de uso com características comuns. E distinguem-se comumente dous tipos de domínios principais: o coloquial-informal, e o institucional-formal. Quer dizer: os indivíduos relacionam-se ou entre eles, ou com representantes das instâncias formais e institucionais (como clientes, administrados, pacientes ou discentes).

No seu anti-sociolinguístico zelo tecnocrático, o PXNLG reúne aberrantemente por exemplo os âmbitos institucional do ensino e informais da família e das redes de amizade entre jovens, no Sector Educación, Familia e Mocidade. Um calculado subproduto deste desenho é minimizar a questão central a qualquer plano de normalização: a transmissão intergeracional da língua na família, e a sua consequente manutenção nas redes de amigos. Um desenho realmente comprometido com o idioma teria priorizado este campo, em torno do qual se articulariam os demais. Porém, a área Família só contempla 9 medidas, das quais apenas 3 são específicas à intervenção no próprio grupo familiar. Não surpreende então que os “pontos fortes” e “pontos débeis” (“puntos débiles”) da situação actual do idioma no seio da família (pp. 70 e 71) sejam uma réstia de inconsistências. Entre os “pontos fortes” conta-se, por exemplo, que “O galego aumentou considerablemente o seu prestixio social nos últimos 25 anos” (?), enquanto um dos “pontos débeis” é a “Escasa valoración da lingua galega no seo familiar en termos de identidade, de utilidade e de prestixio social”! Quer dizer: o galego tem mais prestígio social, mas as famílias (a gente) pensam que não. Uma lógica conclusão possível é que o galego tem grande prestígio social entre as pessoas solteiras e os eremitas. Além, a concepção da utilidade da transmissão da língua na família é puramente instrumental, como veículo vagamente identitário e/ou cultural, não como recurso económico para o avanço social. Assim, um dos objectivos é “sensibilizar” as famílias para os filhos se instalarem no galego e que assim “poidan acceder despois a outros idiomas”. De forma semelhante, o Sector “Sociedade” reúne também âmbitos de uso pertencentes ao domínio informal, e outros ao domínio formal.

Um comentário do rosário de medidas propostas levar-nos-ia muito longe. Algumas são tão peculiares que dariam para uma dessas mensagens de humor que circulam pola Internet. Tomemos como amostra esta, dirigida aos turistas: “Editar uns folletos cuns mínimos rudimentos da lingua galega (conversación) e da súa historia. E incorporalos á cadea de promoción turística”. Minha cunhada trouxe-me um dia da ilha de Curação uma camisola azul barata com frases em papiamentu, como Bon tardi, Bon bini ‘bem-vindo’, ou Mi ta stimabo ‘eu te amo’. Por isso o papiamentu é língua nacional.

Em resumo: a atomização “vertical” na concepção dos usos linguísticos, e a falta de priorização de Sectores e medidas pretensamente apropriadas fazem do PXNLG um produto confuso e irrealizável. Como em todos os projectos incontinentes, algumas medidas se cumprirão, outras não. Por exemplo, pode-se dar o caso de que se cumpra a medida final para a Proxección Exterior da Lingua, “Facer do ballet galego Rey de Viana un embaixador da lingua galega en todos os seus espectáculos” (sic), enquanto fiquem sem ser cumpridas as orientadas a impedir a perda intergeracional do idioma. A concepção directora do Plano é que o português galego não é nem pode ser língua nacional, mas um direito voluntário. De facto, em muitos aspectos o PXNLG é o mais antitético imaginável a um projecto de “normalização”.

Polo contrário, haveria que olhar para aquelas sociedades onde a língua cumpre com efeito as três funções básicas: recurso económico para o avanço social nas sociedades de classes, recurso comunicativo para a coesão social, e recurso simbólico para a identificação colectiva. Neste sentido, o modelo mais próximo para a Galiza é sem dúvida aquele onde a língua é normal, natural e nacional: Portugal. Não pareceria tão difícil mudar o chip, se não fosse porque o chip espanhol da elite galega é muito forte. Quando se sequestra uma nau durante muito tempo, depois todo mundo esquece aonde se dirigia inicialmente. Às vezes os aviões sequestrados sobrevoam países até que se lhes acaba o combustível e aterram em qualquer lugar remoto. Este Plano está desenhado para aterrar em qualquer lugar, esfarelado, e ficar nos hangares para sempre.

A única moral linguística

Enviado a La Voz de Galicia e não publicado • Publicado em «Galicia Literaria», Suplemento Cultural de Diario 16 de Galicia, nº 123, 23 Janeiro 1993, p. II

Duvidei se contribuir uma vez mais a este longo debate para ouvidos desatentos: o que gira ao redor da «normalização» do idioma galego, e que o jornalista Carlos Luis Rodríguez toca de novo na sua coluna «Coma en Irlanda, coma en Irlanda», (La Voz de Galicia, 6-1-93, p. 9). Talvez seria mais assisado calar, e poupar-lhe algo de lenha molhada ao lume jornalístico. Mas esta vez a imodéstia também me atacou a mim, como interessado e estudioso da construção do «galego» como língua.

O artigo do Sr. Rodríguez adoece, paradoxalmente, do mesmo escoramento ideologizado que contêm os textos dos activistas em prol do galego. Quando o autor qualifica de «batalla inútil» as propostas normalizadoras das organizações de activismo linguístico, concebe o problema da fala na Galiza como uma luta entre «línguas». Quando os activistas deploram a falha duma planificação linguística decidida, ignoram assim mesmo a grande conquista já realizada polos detentores do poder político e do saber técnico: a invenção do «galego» e o seu firme controlo simbólico. Que mais se poderia esperar das elites políticas, é algo que segue a se me escapar.

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