Fazer um monstro ou matar o pai

O sangue dos Reyes Católicos circulará polas veias do meninho ou meninha de Letizia Ortiz. A criança não terá a culpa, mas os seus pais, e avôs, e bisavôs de sangue real sim que a terão de fazer dela ou dele um monstro. A menos que o lance já esteja planificado e Felipe de Borbón y Grecia, quando reine (se reinar), ponha o seu privilégio real a referendo popular com a esperança de perdê-lo, essa criança que será filha dele sofrerá uma educação destinada a fazer dela um ser especial, um enviado divino que deverá reger a Pátria até contra a sua própria vontade, se é que chega a ter consciência dela. Como os Grã-Lama. Como os imperadores chineses. Como os pobres meninhos semideuses de rabo de porco que nascem nas aldeias da Índia e são venerados em lugar de operados facilmente. Como todos os párias que não têm eleição.

E esta criança não terá mente. Não poderá ter mente própria. Nascida na casta mais poderosa de Espanha (um só será chamado, e um só será o elegido), o seu universo de ideias será único, auto-contido, fechado como os dogmas das seitas, inexpugnável à interrogação e à rica crítica de um mesmo. Será Alteza, e depois Majestade, nunca pessoa. Essa criança será refém de uma história caduca, que continua a remexer-se contra a corrente da igualdade: da igualdade genética, social, da essencial igualdade dos corpos e das mentes. Essa criança sem culpa que será educada só para reinar não merece um destino tão ruim, tão mesquinho. Só a persistência de poderosas forças económicas, contra as quais o combate é cada vez mais necessário, explica que numa sociedade que se diz moderna os genes determinem a tortura de crescer para ter que reinar.

Mas muita gente do Reino, mesmo milhões, desejarão exactamente isto. Na mais pura tradição do sadismo popular, onde se criam touros também “de raça” para o extermínio ou capões para a asfíxia por sobreingestão, parte do Pueblo Español considerará lógico, lícito e necessário que uma criança sem culpa seja criada no cárcere da coroa, para passar subitamente de Filho a Pai de todos. E o Povo, a contemplar com delírio o espectáculo.

Nunca imaginei que o sentimento de ausência de Pai desde a morte de um antigo deus cristão por tortura numa cruz chegasse tão longe como para glorificar o estigma de nascer para reinar. Inconfessada, eterna orfandade de um suposto “povo espanhol” sem projecto, de uma fragmentada família de interesses apenas fragilmente alinhavada pola figura de um singular senhor ou senhora com coroa. No patriarcal ocidente, quando um pai morre, a família desfaz-se. Por isso há que mantê-lo vivo eternamente.

Mas não sei se alguém lembra ainda a frutuosa expressão “matar o pai”. É metafórica, mas, para um ser mais livre, funciona.

Escutem os políticos, se quiserem. E chamem-me, claro, ingénuo ou insolente.


Monarquia e independência

Publicado em Vieiros

Já começou a ofensiva. Asseguro que não pensava publicar um artigo assim, embora algo semelhante já estivesse escrito. Mas hoje publica um jornal porta-voz de España um retrato feliz de Felipe de Borbón y Grecia, que não li. Em poucos meses nascerá um meninho ou meninha com apelidos de Borbón y Ortiz. Em 2008 o seu avô, Juan Carlos de Borbón y Borbón, cumprirá 70 anos, e terá reinado 33 sobre esta terra, como Cristo. No mesmo ano, Felipe cumprirá 40. Momento perfeito para uma bem planificada abdicação de Juan Carlos. Ou algum tempo depois. Afinal, Juan Carlos de Borbón não é um político vocacional (não sei bem qual é a sua profissão, mas esse é motivo doutro artigo). E España prepara a sucessão com boa antelação.

Com a abdicação no seu filho, Juan Carlos de Borbón resolverá o contencioso que puder haver ainda nalgumas mentes malpensantes sobre a sua legitimidade. Nomeado por um ditador, Juan Carlos de Borbón passou por cima da linha sucessória, jurou as Leyes Fundamentales e os Principios del Movimiento franquista, mas, segundo tenho entendido, ele nunca jurou a Constitución Española, posterior à sua designação (rogo correcção se estou errado). Muitos democratas esquecem isso: que a Constitución foi feita para os espanhóis prometerem fidelidade ao Rey, não viceversa.

Por se isto fosse pouco, a reforma da Constitución Española projecta recolher por primeira vez explicitamente os nomes das comunidades autónomas. Conta-me o teorista do estado Xavier Vilhar Trilho que só em algumas constituições de España se recolhiam os territórios que ela ocupa… perdão, “compreende”. Há uma certa indefinição a este respeito, porque com a Constitución actual na mão poderia entender-se que uma declaração de independência (unilateral, claro, como devem ser sempre as independências) poderia encontrar uma base num vazio legal existente. A Constitución é a de España, sim, mas nem se diz exactamente o que é “España”. Certo, a presença do aparelho do Estado Español em territórios como o galego ou o basco poderia interpretar-se de facto como prova de que a Galiza ou Euskadi são “España”. Mas, dependendo, também poderia interpretar-se juridicamente como que não. Com uma Constitución que o explicite, porém, não haverá maneira de dizer que a Galiza não é “Galicia”, nem que “Galicia” não é “España”. O nacionalismo galego no Parlamento Español deveria rechaçar também este aspecto da reforma constitucional.

E, porfim, o segundo gambito da reforma da Constitución é, como sabemos, conceder também o “direito” da chefatura do estado a uma mulher se esta fosse a filha de Felipe de Borbón. Um, dous, três: o jogo do pai-filho-nai está completo.

Na minha opinião, a monarquia é o maior obstáculo político actual para a independência da gente e das gentes. O obstáculo não é tanto “España”, não, que como absurdo estado mental é até maleável: o obstáculo é o regime monárquico. Dentro do independentismo galego, acho que a visão dominante é que a monarquia é problema “dos espanhóis”. Pois não: estamos sujeitos ao seu regime jurídico, inescapável se não é pola força, quer dizer, inescapável.

Resulta-me absolutamente extraterreste constatar com frequência como até entre pretensos progressistas a questão do regime monárquico é ignorada. Quando faço surgir o tema, os democratas caem então em confusas redes argumentais para justificarem que, embora este rei nunca fora eleito, já está legitimado pola sua trajectória, e a monarquia é uma questiúncula. Eu pensava que democracia significava escolher. Mas os democratas dizem que o povo já escolheu votando em favor da Constitución. Eu pensava que escolher significava isso: escolher, polo menos entre duas opções. Mas em 1978 só havia uma: ou o Rey, ou nada. E a gente tinha, e ainda tem, muito medo.

A questão da chefatura vitalícia de uma pessoa, para qualquer democrata, deveria ser crucial, não marginal. A chefatura vitalícia do Estado, a inviolabilidade da sua pessoa (“La persona del Rey es inviolable y no está sujeta a responsabilidad”, art. 56.3 da Constitución Española), o seu controle dos exércitos, e outros privilégios reais, vêm determinados polo sangue, num século que nominalmente inaugura a igualdade genética como motivo da ciência, do pensamento, da ideologia, da política. Ninguém nega que um meio “moro” ou uma meia “mora” com bilhete de identidade espanhol possa chegar a reinar em España no século XXII. Mas essa pessoa deve ter polo menos sangue Borbón, isto é, Habsburgo, isto é, que deve ser descendente directo dos Reyes Católicos e do Imperador Maximiliano I de Áustria, pai de Philipp I von Habsburg que casou com Juana, filha de Isabel e Fernando. O Chefe do Estado deve ser alguém com privilégios por nascimento. Desde a Idade Média, España foi posse directa de monarcas herdada por virtude do sangue, da família, da classe e, na altura, também do sexo. E por isso o sangue misturou-se tanto com o sangue: Isabel II de Borbón y Borbón, por exemplo, era simultaneamente neta, bisneta, sobrinha-neta, sobrinha-bisneta e outros parentescos de Carlos IV, e o seu marido Francisco de Asís María de Borbón y Borbón também. Isabel e Francisco eram cônjuges, primos por partida dupla, e primos segundos por partida dupla. O sangue, os genes, a base do supremacismo.

Além dos lios de família, a herança genética da chefatura do Estado ou de qualquer outro posto de poder e representação é simplesmente incompatível com qualquer concepção democrática racional. É esse princípio supremacista que tem regido a apropriação de “España” por parte do lobby monárquico. Até alguns independentistas sabem que uma “España” republicana era (pretendia ser) outra cousa. Mas numa “España” monárquica singelamente não cabe a soberania da gente: nem a de galegos, nem a de navarros. A função da monarquia espanhola é sobretudo manter a unidade territorial, quer dizer, política e económica. E a sua Constitución unitária, que consagra o capitalismo, impede qualquer outra forma de relação laboral nos seus domínios que não seja o império do mercado.

Por isso, se eu fosse activista independentista, não deixaria a monarquia tranquilinha como se fosse “assunto dos espanhóis”: acabar com essa forma de estado até nesse país “estrangeiro” que é España é prioritário.

Último texto sobre a Língua

Publicado no Portal Galego da Língua • Em Vieiros

Levo algum tempo procurando imaginar o meu último texto sobre a língua (não jogarei com o sentido do título: simplesmente, “derradeiro” não é eufónico). Espero que esta seja a oportunidade. Peço desculpas por referir-me a mim próprio, mas é do que ignoro menos.

Durante anos, escrevi muitas palavras sobre a língua, às vezes sem saber exactamente porquê. Suponho que era arrogância, e uma ânsia infantil. Estou ciente de que nem todas as palavras eram minhas: tudo está já dito, em diferentes ordens e com diversas ênfases. Agora é imperativo resumi-lo, e, para as pessoas que quiserem, agir em consequência. Não citarei nenhum autor ou autora, em parte por preguiça, em parte por não deixar de citar outras pessoas. Que cada um(a) se reconheça no que digo, ou não.

A ideia elementar é que a Língua é sempre uma questão de classe, e que, enquanto houver classes, haverá sempre alguma questione della lingua. Que não se saiba isto é terrível sintoma da descerebralização maciça. E que outras intelectualidades noutros países não abordem a questão é responsabilidade delas. Mas, na Galiza, país existente e para muitas pessoas nação desejada, a responsabilidade das elites chegou longe demais. Penso que repeti muitas vezes que não há tempo. Não resta tempo histórico, sobretudo quando as elites distorcem as prioridades, demitindo até do seu trabalho pago. Por isso só resta a maior coerência possível. Lembremos, então, o Processo e os resultados actuais.

Durante trinta anos, o chamado isolacionismo demonstrou o seu fracasso até para construir a sua miragem de língua independente na Galiza. Atribuir vontade deliberada a todo o sector seria excessivo. Mas o resultado é que a sua glorificação das falas e do (inexistente) poder linguístico do “Pobo” deu como produto um fantasma, e muito, muito discurso auto-alimentado.Para alguns dentro do sector, este era precisamente o objectivo: espanholizar definitivamente a Galiza. Quanto aos outros, ou “picaram” na trapaça ou preferiram não querer saber o que se avizinhava, porque os corpos vão envelhecendo, envelhecendo, e, nalguma altura do trajecto, um descobre que não deve desaparecer da cena sem fazer ou dizer algo pola Pátria. Aqui e alhures, o sacerdócio sempre uniu mais do que a religião.

Por sua parte, um sector do único movimento linguístico-cultural galego actual, o chamado reintegracionismo (o isolacionismo já não é movimento), continua a arvorar também a diferença linguística como salvação. É um grave erro, porque acredita que a consciência comum sobre cada Língua se forma sobre a base de um par de formas ou sons particulares. Esta posição ignora que a Língua, no capitalismo, é um instrumento necessariamente totalizador. Ou há Língua, ou não há. E na Galiza não resta tempo para que continue sem havê-la. Alguns reintegracionistas continuam a querer fazer língua, mas frequentemente a fazê-la mal. A diferença entre esta posição e a “normalidade” linguística é que na “normalidade” é a Língua que faz e constitui os falantes, e sobretudo os escreventes. Poderemos rebelar-nos e demonstrar com as nossas práticas cada idiossincrasia falante ou escrevente, sim, mas isto pouco adianta: a Língua, como Solução Final, é um dispositivo de categoria social, não individual.

Até aqui, a superfície da diagnose. Serão argumentos brutais, mas não são novos. A questão, a verdadeira questione della lingua, é o que terá a ver tudo isto com a emancipação da gente. Porque só se se reconhecer um inegável esforço de muitas pessoas durante tantos anos por pretender fazer Língua e Cultura, haverá que lhe procurar a este esforço um sentido, enquadrável dentro de um projecto soberanista mais amplo. E o sentido de muitas acções para (pretensamente) construir Língua simplesmente não existe. Muitas são iniciativas esporádicas, recorrentes, e desligadas de qualquer concepção emancipatória. São miragens de auto-satisfação: sacerdócio série B. A imposição (imposição, sim: a Língua é sempre uma imposição) da Língua portuguesa na Galiza só tem sentido se se conceber como sintoma de uma poderosa resistência. Por exemplo: é incompatível proclamar defender a língua submetida (na versão que for) de um país submetido e, simultaneamente, ser monárquico. Ou “democrata”. Ou liberal. Isto é tão incompatível como combater o desflorestamento mas não o genocídio. Porque, em ambos casos, há uma distorção das noções de emancipação e soberania. Mas já vemos que o Discurso hegemónico sabe tornar essa incompatibilidade em necessidade, tornar os assuntos culturais em prioritários e os materiais em acessórios.

Durante séculos, a Galiza foi, tem sido, e é uma formação social mantida na maior das pobrezas, ignorâncias e decrepitudes. Como consequência (ou como causa), esse “Povo” que tantos glorificam manifestou e manifesta alguns dos valores mais retrógrados imagináveis. Calculo que outros “Povos” também são assim, mas não faço parte deles, e não é o meu papel assassiná-los: tenho direito é primeiramente de assassinar o “meu” próprio “Povo”, como ele, por definição, me assassina a mim.

A Galiza é uma formação social real composta por redes de relação, leis e trocas materiais. E, na sua maioria, aceitou passivamente por ignorância o ditame da Ciência Filológica Galega sobre a existência da “lingua galega”, como os ignorantes fundamentalistas aceitam, por exemplo, a mentira deliberada do criacionismo divino. (Outros ignorantes aceitamos outros dogmas, sim). O “Povo” aceitou isto, talvez, não só por inseminação ideológica, mas por inferioridade social e cultural, e por infantilismo. Depois de séculos de verdadeira castração mental (não é metáfora), uma grande parte da “Galiza” chegou a acreditar que os povos realmente machos devem ter Língua Própria, e que qualquer cousa distinta seria derrota.

A única alternativa soberanista racional é dar volta a tudo isto. Se queremos “normalidade”, não se pode deixar a língua nas mãos do “Povo”, e muito menos nas mãos e computadores das “suas” elites (incluo-me, como parte do privilégio). Para elites, já temos os exércitos. Foi Pessoa que sentenciou essa aberração de “A minha pátria é a língua portuguesa”, não é? Substituamos “portuguesa” por “galega”, ou “galego-portuguesa”, e a aberração é comparável. O Povo e as elites são as duas faces da Pátria, e esse é o problema. Cada Pátria imposta preexiste e é eterna: uma inescapável mácula mental. Mas a Língua é um instrumento material totalitário e contingente: a sua forma não conta, o que conta é o seu poder. Então, para que inventar uma forma nova da Língua? Por isso, e por muito mais, o Povo galego, e igualmente as suas elites, estão deslegitimados pola história para fazerem nada deliberadamente com a língua: que a falem, que a escrevam e que a leiam em todo momento, que a naturalizem para sempre expulsando de vez o verme mental de España, sim. Mas que não a altarizem como essência da Pátria, ou continuaremos perdidos.

A alternativa à Pátria é a soberania da gente e da mente. E isso acarreta deixar a língua em paz, e submeter-se a ela para esvaziá-la de sentido. O racional é submeter-se à língua que tocar, seja esta a que for. Má sorte (ou boa, ou indiferente) que a língua que tocou na Galiza tem sons e letras absurdos e se chama portuguesa! Podemos trocar-lhe o nome e fazer o exercício de submissão mais deglutível ou risível (as empresas conhecem bem o efeito placebo de trocar-lhe o nome a um mesmo produto para vender mais). Mas isso pouco adianta se esquecermos o objectivo da soberania da mente. Libertar-nos do estigma da língua para começarmos a pensar é prioritário. Só assim poderemos compreender intimamente que qualquer forma de miséria humana, por exemplo, é muito mais importante do que a manobra infantil de querermos impor um acento ou uma terminação sobre um conjunto de símbolos.

Para mim, já tudo está dito. Ocasionalmente, poderei ainda sentir ânsia de querer escrever sobre os últimos acontecimentos patéticos relativos à língua do país. Nos próximos meses, e até anos, haverá actos, e declarações, e políticas encaminhadas a alimentar a cortina de fumo da língua: Afinal, os profissionais da propaganda têm o seu trabalho que cumprir. Haverá pseudo-polémicas sobre um incontinente e falacioso “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”. Haverá liortas, e exclusões, e vitimizações, e vitimismos, e cleptocratismo, e miragens, e declarações altissonantes, e louvanças, panegíricos, martirologias, grosserias, e até alguns argumentos racionais. Haverá flagrantes ataques de España contra a língua portuguesa da Galiza. Por haver, até continuará a haver duros ataques tácticos de galegos espanhóis contra a “lingua galega” que eles próprios inventaram: dirão, de novo, que se está a asfixiar a liberdade de usar o espanhol. E então todos os sacerdotes de todas as cores sairão às palestras jungidos em defesa da única língua para eles possível, da “Lingua Galega”, sem pisar-se mutuamente as túnicas. E será o fim da “polémica”. Periodicamente, haverá também conversões linguísticas: haverá quem vê por fim a outra Luz normativa, a outra forma da Força (sobretudo a luz ciciante da Força Verdadeira, que é a vermelha), e brandi-la-á por primeira vez com esperança nas suas mãos, na sua fala, nas suas terminações, nos seus escritos. Em resumo, continuará a haver mares de palavras sobre a língua na Galiza. No entanto, o “Povo” sem inteirar-se. E os visitantes extraterrestres (“estrangeiros”) continuarão a admirar-se ou a rir de tanta energia para nada.

Para nada? Bom, eu não sei (como poderia saber?) se de tudo isto algum dia sairá por fim o catalizador social que acabe de vez com a besta e nos permita pensar. Suponho que sem a soberania mental e real da gente, sem a independência, será impossível. Independência quer dizer que cada pessoa e a gente vai fazer o que queira, e se associar livremente com quem queira, e tentar manipular a única Língua como queira. Independência significa que, no momento que houver qualquer forma de exploração, submissão, opressão, dominação, de qualquer pessoa ou grupo sobre outros, não haverá independência. Só na independência e na soberania da mente poderíamos combater a Língua noutros termos, desde outras atalaias de razão e de acção. No entanto, o racional e modesto é reconhecermos todas as formas que está a tomar a derrota, abraçarmos definitivamente a esmagadora realidade da língua talvez mal chamada portuguesa com todas as suas letras, e das falas nossas com todos os seus sentidos, e por fim (quem quiser) dedicar-se a tentar compreender em verdade a existência da miséria, da guerra, da doença e do assassínio: a existência do Capital.

Talvez este texto tenha comentários e críticas. Se houver, agradeço-os de antemão. Mas, contra o meu costume habitual, e lamentando-o, desculpem-me se eu não responder: não há tempo.

Dia D da Vitória do Povo

Apenas 16 anos após a vitória eleitoral do PP na Galiza, o Povo Galego conseguiu botar definitivamente a opressão do poder. Com uma esmagadora vitória 38-37, o Povo Galego demonstrou o poder da democracia para fazer imperar a lei dos esfarrapados. Estou contente, porque é o que queria eu, e o meu voto também foi um Boto, e foi Nacional, e Útil. Eu votei em Anxo Quintana e Pablo González Mariñas.

Durante 16 anos (ou 24, se contarmos o primeiro governo de Gerardo Fernández Albor), o Povo Galego desenvolveu uma inteligente táctica de resistência para acadar o triunfo. Primeiro, deixámo-los ir ganhando pouco a pouco mais poder, mais votos e mais assentos no parlamento, para que confiassem. Deixámos que criassem poderosas redes clientelares que eram, na realidade, uma ilusão. Em muitas ocasiões, participámos destas redes como verdadeiros quinto-colunistas de bomba em peito. No Parlamento Nacional, a resistência foi subindo ou baixando ao chou para dar a falsa impressão de debilidade e desconcerto. Fingimos ter liortas personalistas internas, como eles, embora na realidade a nossa Ideologia sempre estivesse por cima destas mundanidades. O Povo Galego berrou muito várias vezes por crises horrorosas, e depois deu-lhe a maioria eleitoral outra vez ao PP para confundi-lo. E por fim, com a constância dos verdadeiros revolucionários, sem presas e sem pausas, há uns dias fizemos saltar a surpresa para acabar com um PP dividido, queimado pola sua política espanhola, gasto de tanto que lhe deixámos mandar. No dia D da Vitória, 19 de Junho de 2005, com as melhores roupas de Domingo, o Povo Galego baixou às furn-… quero dizer, às urnas, com as únicas armas da liberdade, para proclamar o “Câmbio”, que é muito mais sério que a mudança.

É o começo de uma nova era gloriosa. Sei que muito possivelmente não havia outra opção, mas é o começo de uma era. Gloriosa, como foi a Transición Española, quando todos cantavam “Habla, Pueblo, Habla”, e o Povo falou: falou na UCD, falou no PSOE do 23-F, de Roldán, Mariano Rubio, Vera, Barrionuevo. Falou no PP da FAES, do Iraque, dum falangista galego, de Zaplana. Falou no PSOE de Ibarra, de Bono, de Vázquez. Mas agora por fim haverá Câmbio. O espanholismo será substituído polo espanholismo. Por fim a gestão do benestar substituirá a gestão do benestar, e o malestar será desterrado por sempre para onde hoje está o malestar. O crescimento, o progresso e a modernização darão passo à modernização, ao progresso e ao crescimento. Em lugar de edifícios megalómanos, autoestradas e portos exteriores, haverá edifícios megalómanos, autoestradas e portos exteriores. Os velhos líderes serão substituídos por líderes novos, que se farão velhos, e estes serão substituídos por líderes novos, que se farão velhos. É uma mudança imparável, como a queda newtoniana de uma papeleta numa furn- digooo, uma urna. Porque na democracia todos valemos igual e o nosso voto vale igual. E por isso os partidos, sabiamente, decidiram não impugnar os votos irregulares que não valiam igual porque não mudariam o resultado eleitoral.

Estou contente. Sinceramente, estou contente. 16 anos tentando botar a mesma gente já cansava. Agora temos uma nova oportunidade, abre-se um novo ciclo. O Povo Galego, sábio como sempre, teimudo e constante, saberá aguardar a nova oportunidade, daqui em 16 ou 20 anos, para botar a direita do poder. Na máquina de movimento perpétuo que é a política parlamentar e eleitoral, a direita mais direita desaparece afundida no espectacular sol-pôr fisterrão que há dous mil anos contemplou Iunius Brutus com assombro, enquanto a direita do país faz-se direita mais direita, o centro faz-se direita, a esquerda faz-se centro, a extrema esquerda faz-se esquerda, e dos lugares escuros onde continua sem chegar o pão a fim de mês vai surgindo a esquerda mais esquerda que votará sempre NÃO ou não votará, a jovem ou desiludida extrema esquerda que não conta porque não tem um voto na frente e no bico um cantar. E de pouco a pouco, com as armas do voto no quente ventre da urna (por fim me saíu!), em 20 anos os descendentes dos revolucionários de hoje berrarão como hoje berrámos nós: HÁ QUE BOTÁ-LOS!, quero dizer: “HAY QUE ECHARLOS!”. Que, traduzido para a Lingua Galega do Porvir será “Caciques Go Home!”.

No entanto, a filha de Felipe de Borbón y Grecia herdará España. Mas isso hoje tanto tem: Já os botámos.

Construindo a “fraude” com palavras: As declarações de Fraga Iribarne

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As declarações de Fraga Iribarne depois das eleições (19-6-2005) sobre uma hipotética “fraude” com o voto dos emigrantes e o 70% dos votos que, pensa ele, conseguirá o PP, colocam vários interrogantes preocupantes. Os comentários respondiam a uma estudada pergunta por parte de uma jornalista:

PERGUNTA: “En estas elecciones es más peligroso que nunca el tema de que se produzca un fraude en el voto de la emigración. ¿Teme el PP que pueda ocurrir esto? ¿Que manipulen los [ininteligível]?”

A resposta de Fraga contém duas partes. Transcrevo apenas a primeira, numerada por segmentos para comentá-la melhor:

RESPOSTA:

1 – “Esperemos que no.
2 – Yo desde luego-
3 – he hablado-
4 – me han llamado desde Uruguay,
5 – me han llamado desde Venezuela,
6 – todos me certifican que (el)-
7 – lo que ha salido de allí
8 – puede ser un setenta por ciento a favor nuestro.
9 – Todo depende de los restos, donde tengan que aplicarse,
10 – pero desde luego el resultado de la emigración ha sido muyyy…
11 – porque nunca, nunca- …”

Na segunda parte, Fraga defende o seu labor, e o do PP, entre os emigrantes galegos.

O discurso revela características particulares que apontam para alguns aspectos planificados previamente. Quer dizer, era esperável que alguém lhe perguntasse algo sobre a limpeza do processo do voto emigrante quando está em questão um escano crucial (o 22 por Ponte Vedra), e Fraga devia estar preparado previamente para responder isto. Isto é natural e provavelmente habitual. Mas as várias reformulações no discurso de Fraga são significativas, como se ele estivesse a procurar a expressão mais atinada ou efectiva para objectivos específicos. Em várias ocasiões, ele detém-se no meio da frase, e reformula o que vai dizer. Este padrão de auto-corrigir-se não se repete claramente no resto das respostas da sua comparecência. Vejamos:

1) “Yo desde luego- “ aponta para a expressão incompleta de uma convicção ou opinião, como “estoy convencido de que”, o “pienso que”. Isto é reformulado.

2) A expressão reformulada “He hablado-“ reforça a evidência do que Fraga vai dizer. Uma cousa é opinar, outra muito distinta é ter “provas” que provêm de experiências. Mas a expressão também fica truncada, e é também reformulada. “He hablado” é ambíguo num sentido: poderia implicar que ele mesmo, ou a sua equipa, chamaram a “Venezuela” ou “Uruguay” para conhecer a situação eleitoral; ou poderia implicar que a iniciativa da chamada surgiu de organizações do PP destes países. Fraga interrompe-se e especifica que são “os seus” (os seus subordinados; ele é presidente do PP) quem o chamaram. Isto é significativo, porque pouco antes na comparecência, Fraga deixara claro que não chamara nem a Touriño nem a Quintana, e que eram eles quem deviam chamá-lo a ele. Na hierarquia, são os subordinados os que devem chamar aos superiores. Da mesma maneira, pareceria debilidade demonstrar que o Presidente da Junta e do PP está a chamar ao seu partido no estrangeiro para interessar-se polos resultados e ver se perdiam ou não, sobretudo quando é ambíguo quem o chamou concretamente. Daí a necessidade de especificar que não foi ele quem chamou (o mais interessado na vitória!), mas os seus subordinados.

Por último, a sequência “desde Uruguay… desde Venezuela…” aponta para uma série incompleta: podemos supor que também “o chamaram” desde mais lugares (como Argentina, onde se encontra a maior parte do eleitorado emigrante), mas sempre de Latinoamérica.

3) A expressão “Todos me certifican que (el)-“ também vai ser reformulada. A conclusão poderia ter sido “el voto” ou “el resultado”. Mas adiante Fraga falará de “el resultado de la emigración”.

4) Fraga passa a reformular o anterior enfaticamente, destacando um contraste entre “allí” e “aquí”. “Lo que ha salido de allí” é o que remeteram os votantes, enquanto o implícito “aquí” é o aparelho administrativo (os correios, etc.), sob responsabilidade do Governo e do PSOE. Evidentemente, nenhum poderia “certificar” a Fraga que o que saíu dos consulados é o 70%. Portanto, Fraga está a referir-se às estimações de voto segundo os seus partidários no estrangeiro. Quanto à escolha do verbo “certificar”, não há qualquer indício para interpretá-lo num sentido literal; pode ser sinónimo de ‘assegurar’, e só destaca a firmeza da “evidência”.

5) “puede ser un 70% a favor nuestro” é uma expressão muito significativa. Os cálculos que se dão estes dias indicam que, com efeito, o PP precisaria em torno do 70% do voto CERA para garantir o escano 22 por Ponte Vedra. Que pode fazer pensar a Fraga que é essa a percentagem que obtivo o PP, quando nas últimas eleições (gerais de 2003) foi menor, e quando acaba de comprovar que o apoio percentual ao PP na Galiza também baixou? Evidentemente, os cálculos do PP (como os dos outros partidos que fizeram comparecências públicas) estavam preparados e debatidos de antemão (um candidato não faz uma comparecência pública sem saber em detalhe como andam as cousas), e Fraga sabe (ou disseram-lhe) que essa é a percentagem segura do voto CERA por Ponte Vedra para alcançar o escano 22.

Um pode imaginar, portanto, que o diálogo do PP galego com “Uruguay” e “Venezuela” foi muito distinto: nalgum momento, o PP galego chamou estes países e inquiriu e destacou, após conhecer os resultados, que se precisaria o 70% dos votos para assegurar esse escano. Poderiam as organizações do PP nestes países (ou outros interlocutores sem especificar) confirmar estas percentagens? A resposta perante “Dom Manuel” foi que sim. Como poderia ser de outra maneira? Como iam reconhecer que não, se era o caso? Mesmo se os informadores de Venezuela ou do Uruguai não confirmaram estes dados, como ia reconhecê-lo Fraga numa comparecência que poderia ser a sua despedida política? Havia que evitar que o fosse.

6) A expressão “Todo depende de los restos, donde tengan que aplicarse” incorpora um matiz novo no discurso: Fraga está a destacar a vitória do PP no voto emigrante no seu conjunto (mais ou menos 70%). Mas, evidentemente, nem o PP galego nem o do Uruguai ou Venezuela podem conhecer em detalhe para que província iriam esses votos. Portanto, Fraga parece deixar a porta aberta a que em Ponte Vedra a percentagem seja menor, porque o que parece estar em questão é esse escano 22. “Todo” (em “todo depende”) significa ‘obter esse escano’. Mas todos sabemos que isto, precisamente, não “depende”: que é em Ponte Vedra onde, ao aplicar o cômputo, se pode modificar o resultado provisório. Ou não só? Pois não só: Fraga pode estar a sugerir também que esse 70% mais ou menos deve dar-se também noutras províncias, como Ourense, onde o PSOE baralha a possibilidade de obter o escano 5 contra o 8 do PP. As palavras iniciais “Espero que no haya fraude” cobram, portanto, um novo matiz: Fraga “esper(a) que no haya fraude” também no que respeita a província de Ourense, pois só com a manutenção deste escano 8 por Ourense poderia o escano 22 por Ponte Vedra dar a maioria absoluta ao PP.

7) Por fim, Fraga matiza o seu discurso e, presumivelmente, começa a destacar de novo o bom resultado do PP: “pero desde luego el resultado de la emigración ha sido muy…”.

8) A partir daí, Fraga começa a segunda parte: Interrompe-se de novo e começa a relatar as acções positivas do PP e dele mesmo na emigração americana. Destaca o apoio para o PP, e critica os outros candidatos. Fraga menciona que talvez o evento mais importante da sua vida fosse um acto multitudinário em Buenos Aires, apresentando-se então mais do que nunca como “filho de emigrantes”.

Significativamente, esta segunda parte talvez constituísse o último acto eleitoral de Manuel Fraga Iribarne, transmitido talvez pola TVG internacional e sem dúvida pola Internet. É um discurso orientado para o exterior, para salvar a sua imagem na emigração caso de perder a maioria absoluta. Mas também parece orientado a captar votos. Captar votos quando já acabaram legalmente as votações? Por que vias?

Em resumo, a intervenção de Fraga Iribarne é preocupantemente ambígua. Apoiado numa pergunta preparada de manual, Fraga procura dar a volta ao que se entende comumente por “fraude” (votar repetidas vezes, substituir papeletas, votar por pessoas mortas, etc.), para sugerir na hipotética “fraude” uma implicação das administrações do Estado e talvez dos Consulados ou do PSOE.

O terreno discursivo está preparado para estes dias: se o PP não obtém em torno do 70% dos votos da emigração que lhe dê o escano por Ponte Vedra, a sombra da “fraude” “aquí” (não “allí”) esvoaçará sobre os resultados. Num debate da TVE2 sobre as eleições no mesmo domingo, Anxo Guerreiro apontou muito atinadamente as implicações desta sugestão de Fraga, só para encontrar que outros contertúlios (Domingo Bello Janeiro e José Antonio Portero Molina) lhe restavam ferro aos comentários de Fraga. Bello Janeiro explicou a íntima ligação de Fraga com a emigração, e Portero Molina não lhe deu “mayor transcendencia” às declarações, acrescentando que Fraga disse o 70% “como podría haber dicho el 60% o no haber dicho nada; yo creo que esto es irrelevante”. O debate sobre este assunto fechou-se, infelizmente, aí: Portero Molina passou a falar da baixa do BNG (comentada por Fraga) e da galeguidade do PSdeG-PSOE.

Obviamente, estas são interpretações. Neste dia, o Discurso ainda progride. Por exemplo, a ênfase dalguns médios nos “8.000 votos” necessários para o PP obter esse escano (uma inexactidão, porque a diferença necessária dependeria do número total de votos emitidos por Ponte Vedra, tanto internos como do CERA) também contribui para esta confusão.

Só com os resultados finais na mão, haverá que ver se o PP, caso de não obter esse escano, aproveita discursiva e politicamente a sombra da fraude. Que os três partidos parlamentares na Galiza e os meios de comunicação estejam a baralhar a expressão “fraude eleitoral” num sentido ou noutro com total normalidade revela uma preocupante concepção do sistema democrático formal. Lembram as eleições USA 2000? Mas já advertim noutro artigo que eu não sou democrata.

O último Iribarne

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Não pertenço a qualquer formação política. Não acredito na democracia. O meu voto nunca deu a vitória a qualquer partido. Não sou politólogo. A minha formação teórica é escassa. Mas fum formado politicamente, lá polos anos 1970, quando ainda existia o ideal comunista e libertário, na convicção de que o que conta são os projectos e os factos, não as individualidades. Infelizmente, a história eleitoral do Reino e da Galiza deu-nos amostras da facilidade com que a gente, órfã de si própria, faz abrolhar como fungos mini-Francos eternizados no poder: Jordi Pujol, Felipe González, Manuel Chaves, Francisco Vázquez, José Castro ou o último Iribarne são apenas alguns exemplos de homens (todos homens) que se aportronaram em diversos Conselhos Directivos de España durante décadas, verdadeiros funcionários da gestão do capital, fieis emuladores do patriarcal princípio monárquico que nos rege. Não sei se as suas gestões na perpetuação da injustiça social foram piores do que outras soluções teriam sido. Mas os itinerários de todos estes homens foram e ainda são exemplos de uma triste, quase histriónica versão da figura do político. Nenhum colectivo humano deveria permitir que uma geração inteira de jovens cresça sob a sombra de um líder no poder durante décadas. Essa ideologia do indivíduo e da testosterona foi sempre caldo dos alçamentos. Nenhuma pessoa que ordene durante tantos anos pode ser trigo limpo. A nossa história e presente monárquico atestam-no.

Não vou fazer qualquer chamamento explícito a qualquer voto. A minha mente e a vossa inteligência não o permitiriam. Mas o que está em jogo no 19 de Junho não é a Galiza, senão a necessária queda das estátuas. A figura que ainda se impõe diariamente sobre nós representa a trajectória das armas. Representa uma tétrica silhueta chinesa sobre a parede do quarto antes do sono. A sua palavra molesta, moldada por um inominável pensamento, invoca os anos mais escuros de todas as pré-guerras, quando se coze o ódio que só favorece sempre os poderosos. O último Iribarne escuda-se no símbolo do macho derrotado entre a manada, a proferir os seus derradeiros estertores ideológicos. O último Iribarne é fiel produto de uma terra penosa que deve morrer.

Antes havia, tínhamos (que estranho soa esse “nós” inclusivo) um ideal. Lembro férteis conversas de unidade com homens (sempre homens) então progressistas, que agora se disputam um pedaço de voto ou uma prebenda oficial. Um, que uma vez há muitos anos me chamou “cristão” (a mim?) quase como um insulto, agora segue fielmente o seu particular messias marxista, cego ao retrocesso que tal isolamento significa. Outro, que dirigia com grandes barbas as nossas reuniões de célula clandestina, é agora pontual analista eleitoral para a direita. Outro que admirava com saudades os generais comunistas do 36 acompanha o último Iribarne nas suas viagens coloniais às Américas. E assim por diante, até cobrir a imensa nómina dos vencidos.

No entanto, foi esquecendo-se a razão utópica que mora irremediável no interior do cérebro humano. E por isso agora periga até o simples derrubo colectivo das estátuas. Já sabemos que botarmos abaixo um homem e um emblema não significa instaurarmos qualquer utopia. É um singelo acto de cordura, uma necessária ablução mental. E, infelizmente, este mês não haverá muitas maneiras para fazer isto. Nomeadamente, só há uma. Já haverá tempo noutros meses para derrubarmos outras estátuas, serrando-lhes as pernas com efeito, como se precisa. Porque, se não acabarmos com esta efígie, um outro mini-Franco e um novo projecto económico, ainda mais brutal, abrolharão em pouco tempo das entranhas da primeira. Quase ninguém fala disto, mas esse projecto chama-se Feijóo, e o seu mundo é perigoso. Engana-se quem pensa que, nesta circunstância concreta, a coerência ideológica de votar no ineficaz (sempre), e portanto de perder a oportunidade do derrubo, revelaria ainda mais contradições no Sistema. Um voto é um aberrante gesto cúmplice, já o sei. Mas às vezes não é louco votar polos traidores. Sobretudo quando, simultaneamente, a pureza ideológica tampouco consegue construir na base a sociedade civil que se precisa.

Por isso, o último Iribarne merece desaparecer pola esquina direita da televisão quando esta percorra os escanos de simples deputados e aí esteja ele, decaído, talvez a perguntar-se pola origem do seu fracasso, a perguntar-se quando começou ele a ser um fantasma de si próprio: Na Falange? Em Palomares? Quando sequestrava a palavra impressa como um triste trapeiro? Num majestoso Parador erguido a vinte metros da miséria? No Paço de Meirás, com o seu pai Francisco Franco? Manipulado polo rei Juan Carlos? À sombra de Arias Navarro? No sangue brutal de Gasteiz? Na crise das vacas loucas? Asfixiado de piche? Onde está o gérmen do longo fracasso do último Iribarne? Por que lhe será tão patética a derrota? Por que aceitaria ser sempre um títere? Quem dos seus o traiu, Pai, como a um Cristo contra-natura? O último Iribarne merece desaparecer do televisor como um apagado mamute, em silêncio, em tons de cinza, sem estátuas a cavalo, sem intensas fotografias, sem amigos, sem controle dos seus próprios actos, recolhido no seu erro.

O Verão anseia uma notícia agradável. Talvez não seja assim, porque afinal só a História escreve os textos. Mas, nalgum momento, será fácil esquecer o último Iribarne. Até para os seus lacaios será um alívio.

Matar a Guerra: Em memória de quatro vítimas

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Quem isto escreve nunca morrerá fulminantemente asfixiado numa manhã de nuvens dentro dum depósito de metal sem oxigénio. Nunca será sepultado dentro de uma máquina de ferro por uma montanha de lixo urbano. Nunca cairá funâmbulo dum telhado onde andava a colocar tijolos para os prédios de milhões de euros. Nunca será intoxicado por insecticida utilizado na limpeza duns grandes armazéns. Quem isto escreve só morreria no seu trabalho esbarrando ridiculamente num papel de exame esquecido no chão, nos polidos corredores do seu edifício oficial, enterrado debaixo duma culta livraria após um enorme terramoto, electrocutado polo estouro dum teclado plástico, infectado pola tinta duma estilográfica deficiente.

Eu nunca serei vítima da Guerra. A maior parte dos que me leiam, tampouco. A maior parte dos outros que escrevam, tampouco. O deputado que perguntará sobre estas mortes nos parlamentos tampouco morrerá de afonia. A polícia do parlamento não matará o deputado díscolo. Os responsáveis das empresas homicidas não serão executados. A Guerra pagará com ouro o sacrifício das suas vítimas, e depois a vida, imagem especular da morte, continuará. E nós continuaremos a pagar os barcos da Guerra. Continuarão a crescer os altos edifícios, os parques de lixo urbano. Continuará a asfixiar-se a força do trabalho em tarefas inumanas. E continuarão a nascer corpos, a imigrarem corpos, para limparem por duas moedas as entranhas das bestas metálicas de Ocidente, para limparem sempre os detritos dos poderosos.

A Guerra produz as suas primeiras vítimas na casa própria, no seu contorno mais próximo, e observa as respostas. É o seu calculado experimento. A Guerra é um preciso projecto, não um acaso. E a morte é um efeito colateral do trabalho assalariado. Desde que a Guerra é isto, foi sempre assim, e sempre continuará a sê-lo enquanto haja Guerra. Porque corpos há muitos. Há milhares, milhões de corpos dispostos a se arriscarem para alimentarem outros corpos. A Guerra sabe que a matéria prima do trabalho nunca é escassa. A Guerra pode escolher a carne, a melhor carne: para as minas de metais preciosos, para as vindimas de frutos circulares, para a construção dos refulgentes prédios, a Guerra escolhe sempre os corpos. E os corpos escolhidos entram nos furados da terra e nos intestinos dos navios para limparem o sangue das feridas. E às vezes os corpos devem suicidar-se por pão, e a Guerra sabe-o.

Por isso a Guerra ganha sempre. Até que a matemos.

Encruzilhada da língua

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O movimento linguístico-cultural galego está na altura numa encruzilhada mais evidente do que jamais antes na nossa história sociolinguística. O movimento linguístico-cultural, que leva anos ultrapassando na prática (polas suas iniciativas, o seu dinamismo e o seu compromisso activo) a actividade institucional e pára-institucional que promove a fragmentação cultural da Galiza, debate-se entre uma lealdade a certa tradição essencialista e diferencialista, e a absoluta e inevitável submissão à lógica das Línguas Nacionais na sociedade ocidental, burocratizada, capitalista, de classes. Não há vias intermédias na recuperação da língua como veículo de coesão social, de reconhecimento identitário, e de chamado “avanço” material dentro da lógica do mercado de símbolos. Estejamos ou não estejamos na Europa, o português é que está na Europa, minoritário dentro do Estado Espanhol, mas dominante quantitativamente na Galiza. Sobejam mais argumentos, mais definições, mais filologizações do conflito sociolinguístico, mais apelações às essências. A nação constrói-se, as classes constroem-se, as percepções sobre a língua constroem-se, as práticas linguísticas, culturais e literárias constroem-se. As redes de elites constroem-se, e, sobretudo, ré-constroem-se. Estamos a entrar, definitivamente, numa nova geração da língua, onde é fundamental a renúncia aos mitos e às letras, porque o tempo joga dia a dia contra nós, contra todos e todas os que, por origem, adscrição, vontade ou trâmite profissional fazem e fazemos da língua objecto, via, motivo, instrumento de trabalho e de acção.

A encruzilhada em que se debate o movimento linguístico-cultural galego é singela de descrever: Ou é promovida, regularizada, oficializada e naturalizada uma visão e versão do português galego que recolha elementos de uma recente tradição que teve e ainda tem o seu lugar na nossa resistência (basicamente, a proposta actual representada pola Associaçom Galega da Língua), ou abraça-se com o inevitável temor do novo a unidade linguística internacional como a única maneira de construirmos Língua Nacional. E há fortes valores ligados com cada uma destas opções, valores em oposição que sempre jogaram um papel fundamental nos movimentos sociais galegos. A nação não é uma declaração de intenções, mas uma prática teimosa e insidiosa de classificar-nos. A nação é o conjunto de práticas onde se reproduzem as formas do domínio. E seria absolutamente ingénuo procurarmos construir Língua Nacional sem construirmos os protocolos da classificação que a Língua implica. Devemos estar, em todos os níveis, em igualdade de condições contra a Lengua Española e o que simboliza, e junto a outros países, nomeadamente o mais próximo a nós, Portugal. Devemos construir e manifestar a nossa identidade cultural a respeito de Portugal e do Brasil, não da Espanha. Porque na história das nações o “nós próprios” nunca existe: só existe a diferença. Mas só se pode fazer isto se é com as mesmas regras e instrumentos simbólicos de jogo que o nosso país paralelo, os mesmos procedimentos de inclusão e exclusão, de intelectualização (a tradição é a invenção dela mesma polas letras), de lenta cocção da cultura. O mesmo tipo de símbolos, de máquinas produtoras de metáforas, o mesmo tipo de rigor arcano da linguagem. Devemos renunciar ao populismo como método.

É evidente qual postura defendo eu: a renúncia decidida a construirmos uma língua “distinta” na Galiza só porque e para que seja “distinta”. É inútil e nocivo lutar contra a língua. Mas reconheço, sem dúvida, a legitimidade do diferencialismo representado hoje pola posição actual da AGAL e algumas associações de base. Eu sou sócio da AGAL, a única associação profissional da língua existente na Galiza, com mais de vinte anos de vicissitudes, como tudo quanto se move. Precisamente polo seu carácter, é a AGAL que representa a tábua de salvação para muitos dos que ainda praticam a norma linguística institucional na Galiza. E é dentro da AGAL que se deve fazer a reunião de sectores. Eu sou contra a proposta actual da AGAL a respeito da língua, mas é essa e não qualquer outra proposta a que quero contestar. Porque é essa a encruzilhada real do projecto emancipador do movimento linguístico-cultural galego: ou língua portuguesa, ou língua portuguesa com algumas diferenças. O resto das práticas linguísticas e culturais disgregadoras que se dão na altura já são posições. E, como posições (institucionais ou pára-institucionais), o seu papel dinamizador e mobilizador cultural está a extinguir-se.

Mas o regresso de sectores na altura institucionalistas é possível. Intuo que grande parte do movimento linguístico-cultural estaria disposta a renunciar à defesa retórica da noção de “lusofonia”, se isto fosse necessário para o regresso da lucidez política a uma parte considerável da intelectualidade agora institucionalista, prisioneira de um discurso que não pode controlar. Este é, portanto, um convite ao raciocínio: Quando estão em jogo a necessária lucidez política para a unidade, e a cultura do país polo que se diz trabalhar, nunca é tarde para abandonar voluntariamente uma íntima e inconfessada sensação de derrota.

Todas as opções: Qual é o problema?

Publicado em Vieiros

Qual é o problema com escrever o galego oral em português, como lhe corresponde? Por circunstâncias históricas, tocou-nos um pedaço grande de língua galego-portuguesa distinto em alguns aspectos da tendência comum, e algumas pessoas (sempre muito poucas) na Galiza levam dous séculos a tentarem conciliar esta aparente aberração, a discutirem teimosamente sobre uma letra, uma terminação ou um acento. Il será pola profundidade do problema? Ou será pola sua incapacidade ou negativa histórica a compreenderem a situação e a agirem como verdadeiras elites nacionais (António Gil e Ângelo Cristóvão dixerunt em repetidas ocasiões)? Sobre-estimam-se as atitudes e a identidade essencial do “Pobo”, ou infra-estimam-se as suas capacidades cognitivas? É mais elitismo escrever uma variante linguística (o galego) na forma comum (em português), ou construir essa variante escrita ex novo, como se fosse A Lingua, mas sabendo que não é? É mais elitismo aceitar as letras próprias da língua em todo o mundo, ou aceitar as letras da língua forânea (o espanhol) que é causante da rareza linguística galega? É mais elitismo situar-se e situar a Galiza com humilde realismo no mundo lusófono, ou situar-se reciprocamente uns galegos a outros e outros galegos a uns como únicos auto-referentes culturais? É mais elitismo aceitar a lógica transfronteiriça das línguas e portanto da língua portuguesa, ou reproduzir essa lógica a pequena escala com mecanismos de poder interno desenhando uma (outra) miragem de língua e cultura democráticas?

Perante a tentação de responder estas perguntas num ou outro sentido, é mais realista e mais sensato (sobretudo agora que resta pouco tempo de oralidade portuguesa na Galiza) reconhecer que a língua não é um problema social prioritário. E, como não é, torna-se ainda mais desnecessário continuar a repartir a fome como se fosse fartura. Só as elites se podem permitir o luxo de impugnarem um sector delas próprias como se este estivesse errado. Os movimentos obreiros que marginaram parte dos seus próprios membros nos combates importantes pagaram cara a purga nessa consciência ética que pervive na história por cima e por baixo do sucesso aparente. A longo prazo, a purga por sistema fez perder a todo o mundo, embora pareça que assim se ganharam “conquistas sociais” que seriam impossíveis desde o “maximalismo”. Mas, como a língua não dá de comer a todo o mundo (só a uns poucos), temo que o exercício irracional da impugnação das candidaturas ortográficas poderá continuar por décadas por vir, enquanto mande quem manda e os que vão mandar no futuro se disponham a mandar exactamente como os que mandam agora.

Porque, quando um “Pobo” ainda não decidiu nem se auto-determinou linguisticamente (e já sabemos que o “Pobo” é quem mais ordena), como se lhe vai negar que escreva a sua tão essencial língua de uma dada maneira?

Em resumo, agora e sempre, e em todos os âmbitos, Aukera Guztiak! Que, como sabemos, significa “Todas as Opções”.

Línguas de mar adentro: Universalidade e hierarquias lingüísticas

Publicado no Portal Galego da Língua

“… certa polémica que anda a rebulir no país, tan querido e ás veces tan pataqueiro, de se Mar adentro é cine galego ou non, se debemos aplaudir ou non estas iniciativas como nosas, se o filme de Amenábar nos representa ou non nos representa…… A rexouba non tería máis trascendencia, nin merecería liña ningunha, se non estivese bastante extendida. Miren vostedes: aquí representámonos todos segundo e cómo.”

Víctor F. Freixanes, “Mar adentro en Manhattan”, La Voz de Galicia, 5 Março 2005

Toda a obra ficcional onde intervém a palavra é um universo de discurso, um mundo possível de maior ou menor coerência que contém uma ordem sociolinguística ficcional. Esta ordem ficcional pode estar orientada a representar em maior ou menor medida a ordem sociolinguística real, ou, polo contrário, a construir ou sustentar uma ordem dada no mundo real. Quando as pessoas e a sociedade representadas e ficcionalizadas utilizam mais duma língua, a escolha da ordem sociolinguística ficcional tem implicações para uma interpretação da orientação ideológica (e portanto ideológico-nacional) do filme, à margem de uma nunca recuperável intenção deliberada do autor. Porei só dous exemplos contrários de obras audiovisuais monolingues. Em Los lunes al sol a escolha como personagens principais de um grupo de operários e desempregados galegos que falam espanhol, coloca o filme no nível de simbolização de identidades doutros excelentes filmes sociais espanhóis como Te doy mis ojos, Solas, Barrio ou El Bola. A série de televisão Mareas Vivas, por contra, constrói um mundo possível exclusivamente lusófono num sentido amplo, articulado em torno da distinção sociolinguística de classe de dous grupos de personagens: “galego de gheada e sesseio” para as classes trabalhadoras frente a “galego comum” para as que detentam capital cultural. Esta distinção está mascarada sob a aparência de um jogo de âmbitos de identidades: “os de dentro” (Portozás) frente a “os que vêm de fora”, que resultam ser… o juiz, a doutora, e o mestre.

Numa orientação distinta, uma obra pode querer representar mais ou menos fielmente a ordem sociolinguística “real”, ou polo menos deixar constância da sua existência. Num exemplo extremo, no cinema estadunidense, esporádicas aparições dos “estrangeiros” falando no seu idioma (legendado ou não em inglês) são suficientes para as suas identidades ou origens nacionais serem simbolizadas, embora eles continuem depois a falar só inglês com sotaque estrangeiro. O procedimento estilístico é comum, válido e efectivo, mas os seus efeitos devem ser estimados em relação à ordem sociolinguística real da sociedade a que a obra está orientada. E aqui não estamos nos EUA, mas na Galiza.

Algo desta vontade de fidelidade há no elegante mas convencional filme Mar adentro (2004) de Alejandro Amenábar. A impressão inicial depois de ver o filme uma vez é que este representa de alguma maneira a diversidade linguística das sociedades do estado espanhol, com o uso alterno das três línguas de mais extensão peninsular: português (galego, com variantes), catalão (de Catalunha e unitário), e espanhol (com variantes comum e dialectal galega). Diversas personagens utilizam algumas das três línguas alternada ou concorrentemente em diversas circunstâncias comunicativas e configurações de participantes. Certamente, o filme não está desenhado para fazer da língua a questão central. A sua temática é o direito ao suicídio assistido, não a língua. Mas é precisamente a sua vocação universalista que nos pode levar a perguntar-nos em que medida, e especificamente como, a ordem sociolinguística interna se corresponde com a real da Galiza ou de Catalunha, e como e em que medida as três línguas articulam os valores de universalidade do filme. Com outras palavras, no que a nós concerne, não se trata só de se, na representação da diversidade linguística, Mar adentro faz um uso do galego que é possível no mundo real, mas de como se articula o jogo simbólico a três bandas (não duas) da “galeguidade”, “catalanidade” e “espanholidade” em função da intenção universal do filme. A escolha duma dada ordem sociolinguística ficcional por parte dum autor tem indubitáveis implicações estéticas, e neste comentário não se trata de abordá-la. Mas, num elementar procedimento de comutação, é evidente que um hipotético Mar adentro só em espanhol (com ou sem sotaques diversos) produziria um outro sentido da sua projecção de “universalidade”: a temática não é tudo numa obra artística. Portanto, e em resumo, como participa o jogo de línguas em Mar adentro na sua vocação universal?

As personagens

De novo, Mar adentro parece representar certos aspectos da diversidade sociolinguística na Galiza (e em Catalunha). Mas um visionado mais atento da gravação (em DVD), concretamente dos usos específicos das três línguas polas diversas personagens, revela certos contrastes de sentidos que arrojam uma hierarquia de línguas no universo da obra. Enumeremos em primeiro lugar as personagens para seguirmos o fio deste comentário. É desnecessário esclarecer que toda reflexão se refere à obra Mar adentro e às personagens de ficção, não aos factos nem pessoas reais nas que está baseada, aos quais não temos acesso directo. Para destacar isto, utilizarei aspas descontextualizadoras:

  • “Ramón Sampedro”, a quem chamaremos (Ra)
  • Pai de “Ramón” (Pai)
  • “José”, irmão de “Ramón” (Jo)
  • “Manuela”, esposa de “José” e cunhada de “Ramón” (Ma)
  • “Javi”, filho adolescente de ambos e sobrinho de “Ramón” (Ja)
  • “Rosa”, amiga (Ro)
  • “Gené”, trabalhadora catalã da associação Derecho a Morir Dignamente (Ge)
  • “Julia”, advogada sediada na Catalunha (Ju)
  • Esposo de “Julia” (Es)
  • “Marc”, advogado e companheiro de Gené (Ma)
  • Sacerdote (Sa)
  • Condutor de veículo que leva “Ramón” à Corunha (Co)
  • Enfermeiro de Barcelona que ingressa “Gené” para o parto (In)

As personagens agrupam-se em dous núcleos fundamentais: um na Galiza, em torno de Ramón, com a sua amiga Rosa, e outro o núcleo catalão (Gené, Julia, Marc, esposo de Julia), em torno de Gené. Ramón, como personagem principal, tem relação e interacção com todos eles excepto com o Esposo de Julia.

Mas, como se dão os usos linguísticos específicos polas distintas personagens? Os seguintes gráficos resumem a rede de relacionamentos a meio da língua no núcleo galego. As frechas e a sua direcção indicam a língua utilizada por uma personagem com outra. Por exemplo, A <—–> deve ler-se ‘A utiliza espanhol ao se dirigir a B, e viceversa’:

Condutas linguísticas no núcleo galego

Passemos a explicar estas condutas em detalhe.

Em primeiro lugar, o filme reflecte de alguma maneira a mudança sociolinguística da Galiza consistente na perda intergeracional do idioma. Por uma parte, dentro do núcleo familiar, numa primeira impressão a língua originária parece ser o galego-português: na forte discussão familiar no quarto de Ramón após a notícia (na televisão espanhola) do rechaço da sua demanda legal, quatro participantes utilizam o galego: José, Ramón, o Pai, e Javi, que comenta algo para si. Manuela cala. Numa discussão posterior entre José e o seu filho Javi, este responde em galego, mas antes de ir embora finaliza com um simbólico “Déjame!” em espanhol. Se está amplamente documentado na pesquisa que nas situações comunicativas tensas e emotivas (discussões, queixas, conflitos, etc.) entre os bilingues surge a língua dominante, é evidente que, enquanto a língua dominante de José é o galego-português, a do filho Javi já é o espanhol. De facto, Javi dirige-se sistematicamente em espanhol à sua mãe, ao seu tio Ramón, e ao avô. O próprio Ramón alterna entre galego e espanhol com o seu irmão numa conversa. O exame desta conversa revelaria valores de subjectividade e emoção ligados ao uso do galego por Ramón, e de espanhol para os enunciados que tematizam a racionalidade e a objectividade.

Quanto à relação entre José e Manuela, aquele dirige-se a ela em espanhol numa ocasião, diante do sacerdote que veio visitar Ramón: “Déjalo”, diz José a Manuela quando observa que esta vai começar a recriminar ao sacerdote certos comentários. E é também numa única ocasião que Manuela se dirige a José, e igualmente em espanhol. Portanto, a impressão inicial de que o galego é o idioma habitual no grupo familiar é uma ilusão.Significativamente, Manuela não utiliza galego em nenhuma ocasião na história. De facto, nenhuma das mulheres da obra utilizam outra língua distinta do espanhol entre elas: tampouco Manuela com Rosa. Em Mar adentro, o galego é sobretudo um veículo masculino mantido (e só parcialmente) no triângulo familiar Pai – Ramón – José. Mas os únicos que mantêm o galego consistentemente na família são José e o Pai.

Contudo, também no seio da própria língua se estabelecem contrastes simbólicos. O galego do Pai e de José tem “gheada” e conserva a sibilante portuguesa [s] (“Hai que pensar com a cabeça!” [ka’ßesa], diz-lhe José ao filho). Por contra, a fala de Ramón e de Javi está “regularizada”: ausência de gheada, e thetacismo (pronúncia interdental de “ç”) como em espanhol. O paralelo entre as variantes linguísticas e identidades socioculturais é transparente: o Pai e José são trabalhadores do mar e da terra; Javi é estudante, tem computador; e Ramón viu mundo (estivo embarcado vários anos), e agora relaciona-se com o mundo exterior (Gené, Julia), escuta Wagner, gosta dos debates na rádio, lê, e escreve pensamento e poesia. Como em Mareas Vivas, em Mar adentro o “galego comum” simboliza e é veículo da cultura, desprovido já dos marcadores sociolinguísticos de classe e de nível cultural baixo da “gheada” e do mal chamado “sesseio”.

Em resumo, no núcleo galego as seis personagens principais organizam-se numa escala simbólica hierárquica de três pares quanto ao uso das línguas e variantes na sua projecção respectiva de universalidade:

  1. Pai e José: trabalhadores manuais; galego com “gheada” e [s].
  2. Manuela e Rosa: trabalhadoras manuais; espanhol galeguizado, sem “gheada” e com [theta] [θ].
  3. Ramón e Javi: acesso à cultura; galego regularizado sem “gheada” e com [theta] [θ]; espanhol não galeguizado.

Condutas linguísticas no núcleo catalão

Em contraste, no núcleo de personagens catalãs (ou da Catalunha), a articulação entre línguas e identidades sociais é muito distinta. Tal escala interna de contrastes não se dá no seio do catalão (só utilizado por três personagens no filme). Na Catalunha, a ordem sociolinguística não se baseia na classe nem na cultura, ao serem situar ambas línguas, catalão e espanhol, em plano de igualdade potencial. Na história há duas parelhas internamente monolingues, ambas de classe social meia-alta e com capital cultural: uma delas fala espanhol (a advogada Julia e o seu esposo), e a outra catalão (Gené e Marc, advogado).

Em todo o caso, o espanhol mantém, porém, a exclusiva da universalidade na relação entre ambas parelhas: até na Catalunha, a interacção entre um espanhol-falante e um catalão-falante dá-se em espanhol:

Poderia parecer, portanto, que em Mar adentro se trata por igual o papel da língua espanhola como veículo de relacionamento pretensamente “neutral” por excelência sobre as outras duas línguas romances, tanto na Galiza como na Catalunha. A norma do filme parece ser: na presença de algum espanhol-falante, fale-se espanhol. O recurso talvez tenha sido produtivo para podar a representação mais fiel duma diversidade de usos das outras duas línguas. Mas há dous últimos contrastes significativos que apontam, porém, para uma hierarquia adicional na construção dos usos ou valores das três línguas para o relacionamento social fora do núcleo próprio: concretamente uma hierarquia espanhol – catalão – português. Vejamo-lo em detalhe.

Hierarquia espanhol – catalão – português

Em primeiro lugar, na cuidada arquitectura do filme, contrastam as escolhas linguísticas das duas parelhas que se formam desde o início da história e que produzem, afinal, resultados tão diversos: a parelha Ramón-Rosa, e a parelha Gené-Marc. Ao começo do filme, quando Gené e Marc se conhecem em pessoa na própria costa galega, já se dirigem entre eles em catalão:

Marc: Ets la Gené, eh? Jo soc en Marc. Salut.
(Dão-se a mão)
Gené: I la Julia?

Por contra, observemos o primeiro diálogo entre Ramón e Rosa, no quarto daquele, também ao começo do filme:

Rosa: Me llamo Rosa.
Ramón: ¿De dónde eres?
Rosa: De Boiro. Vine en la bici, dando un paseo.

É conhecido na pesquisa sociolinguística que a língua utilizada num primeiro encontro entre desconhecidos bilingues pode determinar que esta, e não outra, será o seu veículo de comunicação habitual posterior. O fenómeno responde a que cada uma das pessoas desenvolve expectativas comunicativas sobre qual será potencialmente a conduta linguística do outro. A imagem do outro formada inicialmente reforça-se com interacções posteriores, e assim se mantêm as condutas linguísticas entre eles. Em Mar adentro, o facto é que o contraste na inamovível conduta linguística de cada parelha que se desenvolve durante a história tem um significativo correlato no final. A parelha Gené-Marc (catalã, catalão-falante, de classe meia, culta) produz não só língua, mas também vida: um filho. De todas as parelhas do filme, esta é a representada de maneira mais positiva. A de José e Manuela é uma família tradicional, do tipo chamado posicional (onde as relações interpessoais se estabelecem em função de claros papéis e responsabilidades), e onde o filho não mantém a língua; a parelha Julia-Esposa não tem filhos, e está condenada à morte em vida; e a parelha potencial Ramón-Rosa tampouco produz vida, mas morte. Morte desejada, mas morte.

Um segundo contraste significativo refere-se às línguas utilizadas no “mundo exterior” da sociedade no seu conjunto. Num outro estudado paralelo, tanto Ramón como Gené (ambos sentados em cadeiras de rodas, leit-motiv de todo o filme) se relacionam num dado momento com um trabalhador do âmbito da saúde. Ramón é levado à Corunha para assistir à vista oral sobre a sua demanda legal. Na porta da casa, na sua cadeira de rodas, fala com a sua cunhada Manuela em espanhol. O condutor do veículo da Asociación de Minusválidos do Barbanza e da Fundación ONCE dirige-se a Ramón quando este é subido à furgoneta:

Condutor: ¿Usted es Ramón Sampedro, verdad?
Ramón: (Assente com a cabeça)
Condutor: Ya tenía yo ganas de llevarlo, hombre.

Noutra cena, Gené chega ao hospital para dar a luz, em automóvel rapidamente guiado por Marc. Gené mantém todo o tempo uma longa conversa por telemóvel com Ramón em espanhol. Enquanto é sentada numa cadeira de rodas por um enfermeiro ou assistente sanitário, Gené continua a falar com Ramón. O enfermeiro colhe-lhe o telemóvel e passa-lho a Marc:

Enfermeiro: (A Gené) Ho sento. Tingui (dá-lhe a Marc o telemóvel).

(A Marc) El cotxe l’ha de (???) d’aqui, si us plau.

Com outras palavras, à margem da língua utilizada polo interlocutor cliente (Ramón ou Gené), em cada caso essa figura do trabalhador que representa uma ligação “externa” à fechada constelação de personagens do filme tem uma conduta linguística espontânea inicial muito distinta: no âmbito rural galego, um condutor dirige-se em espanhol a Ramón; no âmbito urbano catalão, um assistente sanitário dirige-se em catalão a Gené. Por se pudéssemos pensar que as escolhas dos trabalhadores estão condicionadas pola observação da conduta do cliente, lembremos que em ambos casos os trabalhadores escutam os seus clientes falarem espanhol. Seria possível imaginar uma fácil e ligeira alteração desta representação ficcional dos usos públicos das línguas na Galiza, sem qualquer custo artístico para a obra: se se me permite algo de retranca, eu tenho observado que inclusive na Galiza, algumas vezes até alguns condutores de veículos podem falar a língua do país (convenientemente legendada por mor da universalidade) com um cliente. Por contra, Amenábar optou por generalizar o uso do espanhol como língua de relação pública por excelência na Galiza até para este caso. A opção estilística tem claras implicações linguístico-ideológicas. Neste mesmo sentido, e por último, poderíamos perguntar-nos também pola opção do autor de incluir, na manifestação em favor da morte digna em frente do Palácio de Justiça da Corunha, apenas faixas escritas em espanhol. E legítimo perguntar-se se a presença de algum signo escrito em galego teria comprometido seriamente a ordem sociolinguística ficcional escolhida por Amenábar.

Resumo

A representação esquemática das condutas habituais em todo o filme é a seguinte:

O esquema deve ler-se assim: além das condutas já comentadas, as relações entre os dous grupos (o galego e o catalão) no seu conjunto são em espanhol. Duas personagens “externas”, o Condutor (Co) e o Enfermeiro (En) empregam, respectivamente, espanhol e catalão. Por simplificar, excluo a figura do Sacerdote, dos jornalistas que entrevistam Ramón, e dos juízes (todos eles espanhol-falantes).

Conclusão: Realidade e ilusão

Ramón Sampedro morre dizendo para si “Já vai. Já vai”. O português galego fica representado, sem dúvida, como a língua das suas emoções mais íntimas (na que fala, mas não na que escreve pensamento), e portanto (isso dizem) como a “sua” língua verdadeira. Mas o filme no seu conjunto destila outros subtis significados sobre as relações entre línguas, valores e identidades. E é esta agrupação de significados que matiza a sua vocação de universalidade. A temática é universal. O problema ético é universal. Os sentimentos e argumentos são universais. Mas o tratamento da temática, problema, sentimentos e argumentos é apenas um dos tratamentos universalizantes possíveis. Quando, além das questões éticas, numa obra entram em jogo (sempre) questões de classe e de outras identidades, as correlações finalmente estabelecidas entre identidades e condutas (linguísticas e de outro tipo) das personagens podem, também, saltar à palestra. E este é também o caso de Mar adentro, susceptível como toda obra dum comentário como o aqui apresentado.

A questão fundamental é que, quando uma obra ficcional contém uma ordem sociolinguística possível e verossímil, como Mar adentro, esta representação (esta tipificação) pode se impor, para a gente de fora da sociedade representada (ou para os de dentro!), como a verdadeira e existente. Quer dizer: precisamente porque os usos do galego são verossímeis (não é um filme monolingue), Mar adentro cria uma ilusão de lealdade à realidade sociolinguística galega. Por que ilusão? Mar adentro diz que na Galiza se fala também galego, que se fala no seio da família, que também os jovens (o adolescente) o fala. Mas Mar adentro também diz, se o observamos, que a universalidade do problema ético não se pode transmitir nessa língua. Que, para o problema ter um interlocutor mais universal, é necessário distorcer a ordem real e empregar (muito mais sabiamente, isso sim) o gambito dos usos simbólicos parciais de uma língua dentro do seu próprio país… só para o galego, não para o catalão. Mar adentro diz que qualquer das três línguas veicula os sentimentos. Mas também diz que a razão se exprime em espanhol ou catalão. Mar adentro diz que tanto na Galiza como na Catalunha há relações familiares espanhol-falantes. Que o espanhol é língua comum, sim. Mas que, se um quer (se uma parelha quer), pode manter uma vida e uma luta só em catalão. Se repassamos com cuidado a história do filme, nenhuma das personagens galegas fez nem fará já nunca algo comparável.

Tudo isto, sem dúvida, pode ter sido algo marginal na planificação (sempre ideológica) de Amenábar: um epifenómeno da sua concepção da universalidade. Não atribuo vontade deliberada nenhuma ao autor. Mas estes significados culturais não deixam de estar aí, sobrepostos e não necessariamente incompatíveis com os mais evidentes da obra, e é legítimo comentá-los. O direito ao suicídio e a morrer dignamente não afecta só às pessoas. Há maneiras de uma cultura imóvel morrer metaforicamente sem dignidade, e uma delas é ignorarmos nos foros públicos, por mor duma defesa da galeguidade parcial do filme, os significados sociais e linguísticos de uma obra artística notável que contém uma forma de Galiza.