Trinta anos e um dia

Publicado em Vieiros

O 30 de Outubro de 1975, Juan Carlos de Borbón y Borbón assumia interinamente a chefatura do Estado Espanhol durante a doença artificialmente prorrogada de Francisco Franco, e sem o conhecimento deste. Juan Carlos já nunca abandonaria o cargo de monarca no Conselho de Administração. Trinta anos e um dia depois, como uma longa sentença democrática, o avô da empresa familiar e portanto de todos os espanhóis Juan Carlos, neto à sua vez do avô de todos os espanhóis Francisco, vê consumada a sua longa jogada dinástica de pai-filho-nai (“tres en raya”, para os estrangeiros) com o nascimento da filha do seu filho. Desejo-lhe longa vida à meninha, que não tem culpa de nada. Bastante condena é nascer rainha.

O jornalismo rosa deve estar frenético. Quero dizer EL PAÍS, El Mundo, La Razón, La Voz de Galicia. Quero dizer a SER, a COPE, essa emissora pirata dos bispos. Quero dizer, portanto, o aparelho propagandístico da Monarquia. Não se lhe deve negar a este monopólio bicéfalo a sua genuína perícia nas artes da propaganda, isto é: discurso desenhado para deixar de pensar. Por algo praticamente todos os jerarcas da informação são herdeiros da Falange e do antigo Ministerio de Información y Turismo do deputado Iribarne. No jornalismo rosa, o privilégio de reinar converte-se agora no “direito à sucessão”. A “igualdade de género” passa por cima da desigualdade de ADN, de classe, de família. O Reino de Astúrias converte-se no piar de uma España (Rouco Varela e Francisco Vázquez dixerunt) incombustível, eterna, pré-romana, pré-histórica, atapuerquense, pré-jurássica. España nasceu providencialmente no centro do universo para criar o cristianismo.

Parabéns, visitas, telefonemas, telegramas. Enxames de curiosos que fazem vela, como há trinta anos perante um cadáver, para adorar o fruto do ventre de España, Leonor. Ouro, incenso, mirra para a primogénita nascida numa humilde clínica do bairro de Salamanca. Arcanjo Anunciador do Portal transfigurado em águia imperial do logótipo da Clínica Ruber. A reforma constitucional é o Novo Testamento da España eterna, católica, sentimental. O Triângulo de Deus (Pai-Filha-Mãe) completa agora a sua geometria. No centro do triângulo, pisca o olho panóptico da câmara web que tudo o contempla, que a todos nos contempla, sempre suspeitos de blasfémia, heresia ou injúria, que é a mesma figura de traição. Porque, se o deus é infalível, o monarca é inviolável, e a bandeira espanhola de Paco Vázquez na Corunha, indestrutível.

Trinta anos e um dia é uma longa condena para milhões de pessoas. Há quem nasceu e morreu durante esta sentença. A Constitución monárquica de España garantia-lhe direito à vivenda, mas morreu numa choupana. Garantia-lhe liberdade de residência, mas ele morreu emigrado, exilado político. Garantia-lhe trabalho, mas morreu de sobredose. Quando se pinchava na veia esse último caballo adulterado, sobrevoava Gredos o helicóptero Cougart de Deus como uma pomba bicolor. Pilotavam-na Bono e Trillo: bicolor.

E a partitocracia espanhola está disposta a prorrogar-nos a condena trinta anos mais. Será porque muitos ainda não nos arrependemos. Será porque dentro da prisão não há correcção possível. Como na guerra, a fuga maciça é uma obrigação moral.

Triunfam Ouros: A jogada mestra de ser ‘nació’

Enviado a Vieiros; não publicado

A única cousa sensata do discurso extraterrestre que está a proferir certa Caverna espanhola a respeito do novo Estatuto de Autonomia para Catalunha é a seguinte: que este “segundo golpe de Estado” perpetrado por PSOE-ERC contra a “Nación española” (o primeiro seria o de 1934) tem o apoio do rei. Com efeito, numa comemoração qualquer na Academia Militar de Saragossa, Juan Carlos de Borbón lembrou ao exército a “indivisível unidade” da “nación” espanhola e o seu próprio papel como servidor desta unidade. Bem, lógico, só são palavras. Mas, é que há desnecessário ruído de sabres ou está a Monarquia a dizer que Espanha vai bem? Porque qualquer leitura racional da proposta de novo Estatuto catalão leva, precisamente, nesta segunda direcção Real: Catalunha define-se como uma nação dentro do Estado espanhol. É mais: O Artigo 3 define explicitamente a submissão de Catalunha à soberania do Estado espanhol:

“ARTICLE 3. MARC POLÍTIC. 1. Les relacions de la Generalitat amb l’Estat es fonamenten en el principi de la lleialtat institucional mútua i es regeixen pel principi general segons el qual la Generalitat és Estat, pel principi d’autonomia, pel principi de plurinacionalitat de l’Estat i pel principi de bilateralitat, sense excloure l’ús de mecanismes de participació multilateral.”

Por sua parte, a Constitución espanhola faz recair a soberania ambiguamente ora na “nación española” (Preámbulo) ou no “pueblo español” (Título Preliminar, Artigo 2: “La soberanía nacional reside en el pueblo español, del que emanan los poderes del Estado”). Mas reparemos que os preâmbulos são declarações de intenções para contentar uns e outros, e o substancial é o articulado. No articulado, “pueblo español” é sinónimo de “ciudadanía española”, sem mais estórias.

Eu suponho que qualquer leitura não essencialista dos vocábulos “nación”, “nació”, “pueblo español”, “poble català”, “pobles de l’Estat” e outros relacionados nos dous textos deveria levar os juristas racionais à conclusão de que o novo Estatuto catalão não pode vulnerar a constituição espanhola, por duas razões. Primeiro, o Estatut só pode definir o âmbito e o sujeito da soberania catalã. Não poderia ser de outra maneira, polo seu próprio rango inferior à constituição de Espanha. Segundo, quando se refere à definição do Estado no Preàmbul, o Estatut expressa uma posição subjectiva de “Catalunha”, não um facto de lei: “Cinquè. Catalunya considera que Espanya és un Estat plurinacional”. Podemos perguntar-nos se tal peculiar expressão tem lugar num texto jurídico, mas dificilmente se pode argumentar que a expressão de um juízo não vinculante por parte de um colectivo seja anti-constitucional. Será, em todo o caso, anti-estatutário, por não poder ter qualquer efeito jurídico.

Destas premisas de submissão de Catalunha ao Estado como parte dele, o resto do articulado do Estatut detalha os direitos e deveres dos cidadãos de Catalunha, quer dizer (e com total transparência), dos espanhóis (cidadãos do Estado espanhol, com independência da sua origem) residentes em Catalunha: “ARTICLE 7.1. Gaudeixen de la condició política de catalans els ciutadans de l’Estat que tenen veïnatge administratiu a Catalunya. Llurs drets polítics s’exerceixen d’acord amb aquest Estatut i les lleis”. Isto quer dizer que não há qualquer contradição entre ser catalão e ser espanhol: ser catalão, é, de novo, uma forma contingente de ser espanhol. Decerto, o “povo catalão”, que poderia entender-se como um sujeito étnico, não civil, aparece cá e lá no novo Estatuto, mas não se lhe atribui qualquer papel especial (por exemplo, no exercício da soberania) além de ter preservado costumes, tradições e direitos próprios durante séculos.

Em resumo, como a Generalidade é estado espanhol, e exerce dentro do território de Catalunha em função da prioridade da legislação própria, a proposta não difere muito da antiga “administração única” do deputado Manuel Fraga Iribarne, excepto na retórica nacionalitária. Até a “prioridade” dada ao direito e à legislação de Catalunha sobre os gerais do Estado é vazia. Porque, ao estar submetida Catalunha à legislação geral do Estado, também qualquer díscola normativa catalã é e será susceptível de anticonstitucionalidade e, portanto, de nulidade jurídica.

Portanto, a definição de “nació” para Catalunha é (como talvez chegue a ser no caso galego) um nominalismo acadado como efectiva cortina de fumo para desviar o assunto fundamental do Estatut: a renúncia de facto ao direito de auto-determinação e de secessão. Decerto, Catalunha não renuncia aos seus “direitos históricos” (Disposició Addicional Primera do Estatuto). Mas a eventual actualização destes direitos fica subordinada à Disposición Adicional Primera da Constitución, que impõe o quadro da própria Constitución como limite para estes direitos. E a Constitución monárquica impede a secessão. Só após uma reforma da Constitución poderia Catalunha reclamar legitimamente a independência. Em resumo: Que melhor cenário para a direita espanholista que desenhou o regime monárquico como tampa para a secessão do que uma “nació” que, podendo reclamar a independência, renuncia à soberania para continuar fiel à Coroa?

Claro que, sabemos todos, o assunto de fundo não é a Nación nem a Nació nem a Nação, mas a pela, os quartinhos dos grandes dominadores. No Estatut, o complemento de um detalhado articulado em defesa de todo tipo de direitos dos espanhóis catalães a que nenhum verdadeiro liberal se poderia opor é, por uma parte, a definição do papel do governo catalão, claramente intervencionista em todos estes aspectos como suposto garante destes direitos. Vamos, nada novo: exactamente como o papel molhado da Constitución Española e de outras constituições liberais. Mas o verdadeiro contraponto é o articulado final relativo ao financiamento e aos tributos, onde “Catalunha” reclama o lógico direito liberal de contribuir para o Estado geral em função da sua população, do seu “esforço fiscal” e outros critérios, mas sem comprometer a sua posição económica. Com outras palavras: se sobrarem quartos, a empresa “Catalunha” será “solidária” com as outras companhias do Estado, mas o “nivelamento” não poderá rebaixar em nenhum caso a posição relativa de “Catalunha” no ranking das rendas per cápita do Estado (Artigo 210.d). Com efeito, por quê deveria sob o capitalismo uma “nação” muito produtiva do Estado pagar ou manter outras empresas-nação que produzem menos? De novo, “Catalunha” não poderia ser uma empresa mais liberal: para cada pessoa, uma série de direitos, um voto, um pedacinho de imposto, e que não no-los roubem outros. E os benefícios colectivos, para dentro (isto é, para os proprietários da “Nació”). Nem mais, nem menos. É isto o que assusta a improdutiva Caverna espanhola que quer continuar a chuchar fundos de todos roubados polo Capital sob a escusa da “solidariedade” e o “nivelamento”. O resto são farrapos de gaita.

Quanto a “Galicia”, talvez vá por um caminho semelhante: ser nación para continuar a ser empresa de España. Jogada mestra nesta longa baralhada: voltará a triunfar o Rei de Ouros e de Sabres. Os liberais do PSOE e do BNG estarão contentes. E os independentistas socialistas deverão repensar a que jogam ainda dentro deste partido. Romper o baralho real deveria ser o prioritário.

Fazer um monstro ou matar o pai

O sangue dos Reyes Católicos circulará polas veias do meninho ou meninha de Letizia Ortiz. A criança não terá a culpa, mas os seus pais, e avôs, e bisavôs de sangue real sim que a terão de fazer dela ou dele um monstro. A menos que o lance já esteja planificado e Felipe de Borbón y Grecia, quando reine (se reinar), ponha o seu privilégio real a referendo popular com a esperança de perdê-lo, essa criança que será filha dele sofrerá uma educação destinada a fazer dela um ser especial, um enviado divino que deverá reger a Pátria até contra a sua própria vontade, se é que chega a ter consciência dela. Como os Grã-Lama. Como os imperadores chineses. Como os pobres meninhos semideuses de rabo de porco que nascem nas aldeias da Índia e são venerados em lugar de operados facilmente. Como todos os párias que não têm eleição.

E esta criança não terá mente. Não poderá ter mente própria. Nascida na casta mais poderosa de Espanha (um só será chamado, e um só será o elegido), o seu universo de ideias será único, auto-contido, fechado como os dogmas das seitas, inexpugnável à interrogação e à rica crítica de um mesmo. Será Alteza, e depois Majestade, nunca pessoa. Essa criança será refém de uma história caduca, que continua a remexer-se contra a corrente da igualdade: da igualdade genética, social, da essencial igualdade dos corpos e das mentes. Essa criança sem culpa que será educada só para reinar não merece um destino tão ruim, tão mesquinho. Só a persistência de poderosas forças económicas, contra as quais o combate é cada vez mais necessário, explica que numa sociedade que se diz moderna os genes determinem a tortura de crescer para ter que reinar.

Mas muita gente do Reino, mesmo milhões, desejarão exactamente isto. Na mais pura tradição do sadismo popular, onde se criam touros também “de raça” para o extermínio ou capões para a asfíxia por sobreingestão, parte do Pueblo Español considerará lógico, lícito e necessário que uma criança sem culpa seja criada no cárcere da coroa, para passar subitamente de Filho a Pai de todos. E o Povo, a contemplar com delírio o espectáculo.

Nunca imaginei que o sentimento de ausência de Pai desde a morte de um antigo deus cristão por tortura numa cruz chegasse tão longe como para glorificar o estigma de nascer para reinar. Inconfessada, eterna orfandade de um suposto “povo espanhol” sem projecto, de uma fragmentada família de interesses apenas fragilmente alinhavada pola figura de um singular senhor ou senhora com coroa. No patriarcal ocidente, quando um pai morre, a família desfaz-se. Por isso há que mantê-lo vivo eternamente.

Mas não sei se alguém lembra ainda a frutuosa expressão “matar o pai”. É metafórica, mas, para um ser mais livre, funciona.

Escutem os políticos, se quiserem. E chamem-me, claro, ingénuo ou insolente.


Monarquia e independência

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Já começou a ofensiva. Asseguro que não pensava publicar um artigo assim, embora algo semelhante já estivesse escrito. Mas hoje publica um jornal porta-voz de España um retrato feliz de Felipe de Borbón y Grecia, que não li. Em poucos meses nascerá um meninho ou meninha com apelidos de Borbón y Ortiz. Em 2008 o seu avô, Juan Carlos de Borbón y Borbón, cumprirá 70 anos, e terá reinado 33 sobre esta terra, como Cristo. No mesmo ano, Felipe cumprirá 40. Momento perfeito para uma bem planificada abdicação de Juan Carlos. Ou algum tempo depois. Afinal, Juan Carlos de Borbón não é um político vocacional (não sei bem qual é a sua profissão, mas esse é motivo doutro artigo). E España prepara a sucessão com boa antelação.

Com a abdicação no seu filho, Juan Carlos de Borbón resolverá o contencioso que puder haver ainda nalgumas mentes malpensantes sobre a sua legitimidade. Nomeado por um ditador, Juan Carlos de Borbón passou por cima da linha sucessória, jurou as Leyes Fundamentales e os Principios del Movimiento franquista, mas, segundo tenho entendido, ele nunca jurou a Constitución Española, posterior à sua designação (rogo correcção se estou errado). Muitos democratas esquecem isso: que a Constitución foi feita para os espanhóis prometerem fidelidade ao Rey, não viceversa.

Por se isto fosse pouco, a reforma da Constitución Española projecta recolher por primeira vez explicitamente os nomes das comunidades autónomas. Conta-me o teorista do estado Xavier Vilhar Trilho que só em algumas constituições de España se recolhiam os territórios que ela ocupa… perdão, “compreende”. Há uma certa indefinição a este respeito, porque com a Constitución actual na mão poderia entender-se que uma declaração de independência (unilateral, claro, como devem ser sempre as independências) poderia encontrar uma base num vazio legal existente. A Constitución é a de España, sim, mas nem se diz exactamente o que é “España”. Certo, a presença do aparelho do Estado Español em territórios como o galego ou o basco poderia interpretar-se de facto como prova de que a Galiza ou Euskadi são “España”. Mas, dependendo, também poderia interpretar-se juridicamente como que não. Com uma Constitución que o explicite, porém, não haverá maneira de dizer que a Galiza não é “Galicia”, nem que “Galicia” não é “España”. O nacionalismo galego no Parlamento Español deveria rechaçar também este aspecto da reforma constitucional.

E, porfim, o segundo gambito da reforma da Constitución é, como sabemos, conceder também o “direito” da chefatura do estado a uma mulher se esta fosse a filha de Felipe de Borbón. Um, dous, três: o jogo do pai-filho-nai está completo.

Na minha opinião, a monarquia é o maior obstáculo político actual para a independência da gente e das gentes. O obstáculo não é tanto “España”, não, que como absurdo estado mental é até maleável: o obstáculo é o regime monárquico. Dentro do independentismo galego, acho que a visão dominante é que a monarquia é problema “dos espanhóis”. Pois não: estamos sujeitos ao seu regime jurídico, inescapável se não é pola força, quer dizer, inescapável.

Resulta-me absolutamente extraterreste constatar com frequência como até entre pretensos progressistas a questão do regime monárquico é ignorada. Quando faço surgir o tema, os democratas caem então em confusas redes argumentais para justificarem que, embora este rei nunca fora eleito, já está legitimado pola sua trajectória, e a monarquia é uma questiúncula. Eu pensava que democracia significava escolher. Mas os democratas dizem que o povo já escolheu votando em favor da Constitución. Eu pensava que escolher significava isso: escolher, polo menos entre duas opções. Mas em 1978 só havia uma: ou o Rey, ou nada. E a gente tinha, e ainda tem, muito medo.

A questão da chefatura vitalícia de uma pessoa, para qualquer democrata, deveria ser crucial, não marginal. A chefatura vitalícia do Estado, a inviolabilidade da sua pessoa (“La persona del Rey es inviolable y no está sujeta a responsabilidad”, art. 56.3 da Constitución Española), o seu controle dos exércitos, e outros privilégios reais, vêm determinados polo sangue, num século que nominalmente inaugura a igualdade genética como motivo da ciência, do pensamento, da ideologia, da política. Ninguém nega que um meio “moro” ou uma meia “mora” com bilhete de identidade espanhol possa chegar a reinar em España no século XXII. Mas essa pessoa deve ter polo menos sangue Borbón, isto é, Habsburgo, isto é, que deve ser descendente directo dos Reyes Católicos e do Imperador Maximiliano I de Áustria, pai de Philipp I von Habsburg que casou com Juana, filha de Isabel e Fernando. O Chefe do Estado deve ser alguém com privilégios por nascimento. Desde a Idade Média, España foi posse directa de monarcas herdada por virtude do sangue, da família, da classe e, na altura, também do sexo. E por isso o sangue misturou-se tanto com o sangue: Isabel II de Borbón y Borbón, por exemplo, era simultaneamente neta, bisneta, sobrinha-neta, sobrinha-bisneta e outros parentescos de Carlos IV, e o seu marido Francisco de Asís María de Borbón y Borbón também. Isabel e Francisco eram cônjuges, primos por partida dupla, e primos segundos por partida dupla. O sangue, os genes, a base do supremacismo.

Além dos lios de família, a herança genética da chefatura do Estado ou de qualquer outro posto de poder e representação é simplesmente incompatível com qualquer concepção democrática racional. É esse princípio supremacista que tem regido a apropriação de “España” por parte do lobby monárquico. Até alguns independentistas sabem que uma “España” republicana era (pretendia ser) outra cousa. Mas numa “España” monárquica singelamente não cabe a soberania da gente: nem a de galegos, nem a de navarros. A função da monarquia espanhola é sobretudo manter a unidade territorial, quer dizer, política e económica. E a sua Constitución unitária, que consagra o capitalismo, impede qualquer outra forma de relação laboral nos seus domínios que não seja o império do mercado.

Por isso, se eu fosse activista independentista, não deixaria a monarquia tranquilinha como se fosse “assunto dos espanhóis”: acabar com essa forma de estado até nesse país “estrangeiro” que é España é prioritário.

Último texto sobre a Língua

Publicado no Portal Galego da Língua • Em Vieiros

Levo algum tempo procurando imaginar o meu último texto sobre a língua (não jogarei com o sentido do título: simplesmente, “derradeiro” não é eufónico). Espero que esta seja a oportunidade. Peço desculpas por referir-me a mim próprio, mas é do que ignoro menos.

Durante anos, escrevi muitas palavras sobre a língua, às vezes sem saber exactamente porquê. Suponho que era arrogância, e uma ânsia infantil. Estou ciente de que nem todas as palavras eram minhas: tudo está já dito, em diferentes ordens e com diversas ênfases. Agora é imperativo resumi-lo, e, para as pessoas que quiserem, agir em consequência. Não citarei nenhum autor ou autora, em parte por preguiça, em parte por não deixar de citar outras pessoas. Que cada um(a) se reconheça no que digo, ou não.

A ideia elementar é que a Língua é sempre uma questão de classe, e que, enquanto houver classes, haverá sempre alguma questione della lingua. Que não se saiba isto é terrível sintoma da descerebralização maciça. E que outras intelectualidades noutros países não abordem a questão é responsabilidade delas. Mas, na Galiza, país existente e para muitas pessoas nação desejada, a responsabilidade das elites chegou longe demais. Penso que repeti muitas vezes que não há tempo. Não resta tempo histórico, sobretudo quando as elites distorcem as prioridades, demitindo até do seu trabalho pago. Por isso só resta a maior coerência possível. Lembremos, então, o Processo e os resultados actuais.

Durante trinta anos, o chamado isolacionismo demonstrou o seu fracasso até para construir a sua miragem de língua independente na Galiza. Atribuir vontade deliberada a todo o sector seria excessivo. Mas o resultado é que a sua glorificação das falas e do (inexistente) poder linguístico do “Pobo” deu como produto um fantasma, e muito, muito discurso auto-alimentado.Para alguns dentro do sector, este era precisamente o objectivo: espanholizar definitivamente a Galiza. Quanto aos outros, ou “picaram” na trapaça ou preferiram não querer saber o que se avizinhava, porque os corpos vão envelhecendo, envelhecendo, e, nalguma altura do trajecto, um descobre que não deve desaparecer da cena sem fazer ou dizer algo pola Pátria. Aqui e alhures, o sacerdócio sempre uniu mais do que a religião.

Por sua parte, um sector do único movimento linguístico-cultural galego actual, o chamado reintegracionismo (o isolacionismo já não é movimento), continua a arvorar também a diferença linguística como salvação. É um grave erro, porque acredita que a consciência comum sobre cada Língua se forma sobre a base de um par de formas ou sons particulares. Esta posição ignora que a Língua, no capitalismo, é um instrumento necessariamente totalizador. Ou há Língua, ou não há. E na Galiza não resta tempo para que continue sem havê-la. Alguns reintegracionistas continuam a querer fazer língua, mas frequentemente a fazê-la mal. A diferença entre esta posição e a “normalidade” linguística é que na “normalidade” é a Língua que faz e constitui os falantes, e sobretudo os escreventes. Poderemos rebelar-nos e demonstrar com as nossas práticas cada idiossincrasia falante ou escrevente, sim, mas isto pouco adianta: a Língua, como Solução Final, é um dispositivo de categoria social, não individual.

Até aqui, a superfície da diagnose. Serão argumentos brutais, mas não são novos. A questão, a verdadeira questione della lingua, é o que terá a ver tudo isto com a emancipação da gente. Porque só se se reconhecer um inegável esforço de muitas pessoas durante tantos anos por pretender fazer Língua e Cultura, haverá que lhe procurar a este esforço um sentido, enquadrável dentro de um projecto soberanista mais amplo. E o sentido de muitas acções para (pretensamente) construir Língua simplesmente não existe. Muitas são iniciativas esporádicas, recorrentes, e desligadas de qualquer concepção emancipatória. São miragens de auto-satisfação: sacerdócio série B. A imposição (imposição, sim: a Língua é sempre uma imposição) da Língua portuguesa na Galiza só tem sentido se se conceber como sintoma de uma poderosa resistência. Por exemplo: é incompatível proclamar defender a língua submetida (na versão que for) de um país submetido e, simultaneamente, ser monárquico. Ou “democrata”. Ou liberal. Isto é tão incompatível como combater o desflorestamento mas não o genocídio. Porque, em ambos casos, há uma distorção das noções de emancipação e soberania. Mas já vemos que o Discurso hegemónico sabe tornar essa incompatibilidade em necessidade, tornar os assuntos culturais em prioritários e os materiais em acessórios.

Durante séculos, a Galiza foi, tem sido, e é uma formação social mantida na maior das pobrezas, ignorâncias e decrepitudes. Como consequência (ou como causa), esse “Povo” que tantos glorificam manifestou e manifesta alguns dos valores mais retrógrados imagináveis. Calculo que outros “Povos” também são assim, mas não faço parte deles, e não é o meu papel assassiná-los: tenho direito é primeiramente de assassinar o “meu” próprio “Povo”, como ele, por definição, me assassina a mim.

A Galiza é uma formação social real composta por redes de relação, leis e trocas materiais. E, na sua maioria, aceitou passivamente por ignorância o ditame da Ciência Filológica Galega sobre a existência da “lingua galega”, como os ignorantes fundamentalistas aceitam, por exemplo, a mentira deliberada do criacionismo divino. (Outros ignorantes aceitamos outros dogmas, sim). O “Povo” aceitou isto, talvez, não só por inseminação ideológica, mas por inferioridade social e cultural, e por infantilismo. Depois de séculos de verdadeira castração mental (não é metáfora), uma grande parte da “Galiza” chegou a acreditar que os povos realmente machos devem ter Língua Própria, e que qualquer cousa distinta seria derrota.

A única alternativa soberanista racional é dar volta a tudo isto. Se queremos “normalidade”, não se pode deixar a língua nas mãos do “Povo”, e muito menos nas mãos e computadores das “suas” elites (incluo-me, como parte do privilégio). Para elites, já temos os exércitos. Foi Pessoa que sentenciou essa aberração de “A minha pátria é a língua portuguesa”, não é? Substituamos “portuguesa” por “galega”, ou “galego-portuguesa”, e a aberração é comparável. O Povo e as elites são as duas faces da Pátria, e esse é o problema. Cada Pátria imposta preexiste e é eterna: uma inescapável mácula mental. Mas a Língua é um instrumento material totalitário e contingente: a sua forma não conta, o que conta é o seu poder. Então, para que inventar uma forma nova da Língua? Por isso, e por muito mais, o Povo galego, e igualmente as suas elites, estão deslegitimados pola história para fazerem nada deliberadamente com a língua: que a falem, que a escrevam e que a leiam em todo momento, que a naturalizem para sempre expulsando de vez o verme mental de España, sim. Mas que não a altarizem como essência da Pátria, ou continuaremos perdidos.

A alternativa à Pátria é a soberania da gente e da mente. E isso acarreta deixar a língua em paz, e submeter-se a ela para esvaziá-la de sentido. O racional é submeter-se à língua que tocar, seja esta a que for. Má sorte (ou boa, ou indiferente) que a língua que tocou na Galiza tem sons e letras absurdos e se chama portuguesa! Podemos trocar-lhe o nome e fazer o exercício de submissão mais deglutível ou risível (as empresas conhecem bem o efeito placebo de trocar-lhe o nome a um mesmo produto para vender mais). Mas isso pouco adianta se esquecermos o objectivo da soberania da mente. Libertar-nos do estigma da língua para começarmos a pensar é prioritário. Só assim poderemos compreender intimamente que qualquer forma de miséria humana, por exemplo, é muito mais importante do que a manobra infantil de querermos impor um acento ou uma terminação sobre um conjunto de símbolos.

Para mim, já tudo está dito. Ocasionalmente, poderei ainda sentir ânsia de querer escrever sobre os últimos acontecimentos patéticos relativos à língua do país. Nos próximos meses, e até anos, haverá actos, e declarações, e políticas encaminhadas a alimentar a cortina de fumo da língua: Afinal, os profissionais da propaganda têm o seu trabalho que cumprir. Haverá pseudo-polémicas sobre um incontinente e falacioso “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”. Haverá liortas, e exclusões, e vitimizações, e vitimismos, e cleptocratismo, e miragens, e declarações altissonantes, e louvanças, panegíricos, martirologias, grosserias, e até alguns argumentos racionais. Haverá flagrantes ataques de España contra a língua portuguesa da Galiza. Por haver, até continuará a haver duros ataques tácticos de galegos espanhóis contra a “lingua galega” que eles próprios inventaram: dirão, de novo, que se está a asfixiar a liberdade de usar o espanhol. E então todos os sacerdotes de todas as cores sairão às palestras jungidos em defesa da única língua para eles possível, da “Lingua Galega”, sem pisar-se mutuamente as túnicas. E será o fim da “polémica”. Periodicamente, haverá também conversões linguísticas: haverá quem vê por fim a outra Luz normativa, a outra forma da Força (sobretudo a luz ciciante da Força Verdadeira, que é a vermelha), e brandi-la-á por primeira vez com esperança nas suas mãos, na sua fala, nas suas terminações, nos seus escritos. Em resumo, continuará a haver mares de palavras sobre a língua na Galiza. No entanto, o “Povo” sem inteirar-se. E os visitantes extraterrestres (“estrangeiros”) continuarão a admirar-se ou a rir de tanta energia para nada.

Para nada? Bom, eu não sei (como poderia saber?) se de tudo isto algum dia sairá por fim o catalizador social que acabe de vez com a besta e nos permita pensar. Suponho que sem a soberania mental e real da gente, sem a independência, será impossível. Independência quer dizer que cada pessoa e a gente vai fazer o que queira, e se associar livremente com quem queira, e tentar manipular a única Língua como queira. Independência significa que, no momento que houver qualquer forma de exploração, submissão, opressão, dominação, de qualquer pessoa ou grupo sobre outros, não haverá independência. Só na independência e na soberania da mente poderíamos combater a Língua noutros termos, desde outras atalaias de razão e de acção. No entanto, o racional e modesto é reconhecermos todas as formas que está a tomar a derrota, abraçarmos definitivamente a esmagadora realidade da língua talvez mal chamada portuguesa com todas as suas letras, e das falas nossas com todos os seus sentidos, e por fim (quem quiser) dedicar-se a tentar compreender em verdade a existência da miséria, da guerra, da doença e do assassínio: a existência do Capital.

Talvez este texto tenha comentários e críticas. Se houver, agradeço-os de antemão. Mas, contra o meu costume habitual, e lamentando-o, desculpem-me se eu não responder: não há tempo.

Dia D da Vitória do Povo

Apenas 16 anos após a vitória eleitoral do PP na Galiza, o Povo Galego conseguiu botar definitivamente a opressão do poder. Com uma esmagadora vitória 38-37, o Povo Galego demonstrou o poder da democracia para fazer imperar a lei dos esfarrapados. Estou contente, porque é o que queria eu, e o meu voto também foi um Boto, e foi Nacional, e Útil. Eu votei em Anxo Quintana e Pablo González Mariñas.

Durante 16 anos (ou 24, se contarmos o primeiro governo de Gerardo Fernández Albor), o Povo Galego desenvolveu uma inteligente táctica de resistência para acadar o triunfo. Primeiro, deixámo-los ir ganhando pouco a pouco mais poder, mais votos e mais assentos no parlamento, para que confiassem. Deixámos que criassem poderosas redes clientelares que eram, na realidade, uma ilusão. Em muitas ocasiões, participámos destas redes como verdadeiros quinto-colunistas de bomba em peito. No Parlamento Nacional, a resistência foi subindo ou baixando ao chou para dar a falsa impressão de debilidade e desconcerto. Fingimos ter liortas personalistas internas, como eles, embora na realidade a nossa Ideologia sempre estivesse por cima destas mundanidades. O Povo Galego berrou muito várias vezes por crises horrorosas, e depois deu-lhe a maioria eleitoral outra vez ao PP para confundi-lo. E por fim, com a constância dos verdadeiros revolucionários, sem presas e sem pausas, há uns dias fizemos saltar a surpresa para acabar com um PP dividido, queimado pola sua política espanhola, gasto de tanto que lhe deixámos mandar. No dia D da Vitória, 19 de Junho de 2005, com as melhores roupas de Domingo, o Povo Galego baixou às furn-… quero dizer, às urnas, com as únicas armas da liberdade, para proclamar o “Câmbio”, que é muito mais sério que a mudança.

É o começo de uma nova era gloriosa. Sei que muito possivelmente não havia outra opção, mas é o começo de uma era. Gloriosa, como foi a Transición Española, quando todos cantavam “Habla, Pueblo, Habla”, e o Povo falou: falou na UCD, falou no PSOE do 23-F, de Roldán, Mariano Rubio, Vera, Barrionuevo. Falou no PP da FAES, do Iraque, dum falangista galego, de Zaplana. Falou no PSOE de Ibarra, de Bono, de Vázquez. Mas agora por fim haverá Câmbio. O espanholismo será substituído polo espanholismo. Por fim a gestão do benestar substituirá a gestão do benestar, e o malestar será desterrado por sempre para onde hoje está o malestar. O crescimento, o progresso e a modernização darão passo à modernização, ao progresso e ao crescimento. Em lugar de edifícios megalómanos, autoestradas e portos exteriores, haverá edifícios megalómanos, autoestradas e portos exteriores. Os velhos líderes serão substituídos por líderes novos, que se farão velhos, e estes serão substituídos por líderes novos, que se farão velhos. É uma mudança imparável, como a queda newtoniana de uma papeleta numa furn- digooo, uma urna. Porque na democracia todos valemos igual e o nosso voto vale igual. E por isso os partidos, sabiamente, decidiram não impugnar os votos irregulares que não valiam igual porque não mudariam o resultado eleitoral.

Estou contente. Sinceramente, estou contente. 16 anos tentando botar a mesma gente já cansava. Agora temos uma nova oportunidade, abre-se um novo ciclo. O Povo Galego, sábio como sempre, teimudo e constante, saberá aguardar a nova oportunidade, daqui em 16 ou 20 anos, para botar a direita do poder. Na máquina de movimento perpétuo que é a política parlamentar e eleitoral, a direita mais direita desaparece afundida no espectacular sol-pôr fisterrão que há dous mil anos contemplou Iunius Brutus com assombro, enquanto a direita do país faz-se direita mais direita, o centro faz-se direita, a esquerda faz-se centro, a extrema esquerda faz-se esquerda, e dos lugares escuros onde continua sem chegar o pão a fim de mês vai surgindo a esquerda mais esquerda que votará sempre NÃO ou não votará, a jovem ou desiludida extrema esquerda que não conta porque não tem um voto na frente e no bico um cantar. E de pouco a pouco, com as armas do voto no quente ventre da urna (por fim me saíu!), em 20 anos os descendentes dos revolucionários de hoje berrarão como hoje berrámos nós: HÁ QUE BOTÁ-LOS!, quero dizer: “HAY QUE ECHARLOS!”. Que, traduzido para a Lingua Galega do Porvir será “Caciques Go Home!”.

No entanto, a filha de Felipe de Borbón y Grecia herdará España. Mas isso hoje tanto tem: Já os botámos.

Construindo a “fraude” com palavras: As declarações de Fraga Iribarne

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As declarações de Fraga Iribarne depois das eleições (19-6-2005) sobre uma hipotética “fraude” com o voto dos emigrantes e o 70% dos votos que, pensa ele, conseguirá o PP, colocam vários interrogantes preocupantes. Os comentários respondiam a uma estudada pergunta por parte de uma jornalista:

PERGUNTA: “En estas elecciones es más peligroso que nunca el tema de que se produzca un fraude en el voto de la emigración. ¿Teme el PP que pueda ocurrir esto? ¿Que manipulen los [ininteligível]?”

A resposta de Fraga contém duas partes. Transcrevo apenas a primeira, numerada por segmentos para comentá-la melhor:

RESPOSTA:

1 – “Esperemos que no.
2 – Yo desde luego-
3 – he hablado-
4 – me han llamado desde Uruguay,
5 – me han llamado desde Venezuela,
6 – todos me certifican que (el)-
7 – lo que ha salido de allí
8 – puede ser un setenta por ciento a favor nuestro.
9 – Todo depende de los restos, donde tengan que aplicarse,
10 – pero desde luego el resultado de la emigración ha sido muyyy…
11 – porque nunca, nunca- …”

Na segunda parte, Fraga defende o seu labor, e o do PP, entre os emigrantes galegos.

O discurso revela características particulares que apontam para alguns aspectos planificados previamente. Quer dizer, era esperável que alguém lhe perguntasse algo sobre a limpeza do processo do voto emigrante quando está em questão um escano crucial (o 22 por Ponte Vedra), e Fraga devia estar preparado previamente para responder isto. Isto é natural e provavelmente habitual. Mas as várias reformulações no discurso de Fraga são significativas, como se ele estivesse a procurar a expressão mais atinada ou efectiva para objectivos específicos. Em várias ocasiões, ele detém-se no meio da frase, e reformula o que vai dizer. Este padrão de auto-corrigir-se não se repete claramente no resto das respostas da sua comparecência. Vejamos:

1) “Yo desde luego- “ aponta para a expressão incompleta de uma convicção ou opinião, como “estoy convencido de que”, o “pienso que”. Isto é reformulado.

2) A expressão reformulada “He hablado-“ reforça a evidência do que Fraga vai dizer. Uma cousa é opinar, outra muito distinta é ter “provas” que provêm de experiências. Mas a expressão também fica truncada, e é também reformulada. “He hablado” é ambíguo num sentido: poderia implicar que ele mesmo, ou a sua equipa, chamaram a “Venezuela” ou “Uruguay” para conhecer a situação eleitoral; ou poderia implicar que a iniciativa da chamada surgiu de organizações do PP destes países. Fraga interrompe-se e especifica que são “os seus” (os seus subordinados; ele é presidente do PP) quem o chamaram. Isto é significativo, porque pouco antes na comparecência, Fraga deixara claro que não chamara nem a Touriño nem a Quintana, e que eram eles quem deviam chamá-lo a ele. Na hierarquia, são os subordinados os que devem chamar aos superiores. Da mesma maneira, pareceria debilidade demonstrar que o Presidente da Junta e do PP está a chamar ao seu partido no estrangeiro para interessar-se polos resultados e ver se perdiam ou não, sobretudo quando é ambíguo quem o chamou concretamente. Daí a necessidade de especificar que não foi ele quem chamou (o mais interessado na vitória!), mas os seus subordinados.

Por último, a sequência “desde Uruguay… desde Venezuela…” aponta para uma série incompleta: podemos supor que também “o chamaram” desde mais lugares (como Argentina, onde se encontra a maior parte do eleitorado emigrante), mas sempre de Latinoamérica.

3) A expressão “Todos me certifican que (el)-“ também vai ser reformulada. A conclusão poderia ter sido “el voto” ou “el resultado”. Mas adiante Fraga falará de “el resultado de la emigración”.

4) Fraga passa a reformular o anterior enfaticamente, destacando um contraste entre “allí” e “aquí”. “Lo que ha salido de allí” é o que remeteram os votantes, enquanto o implícito “aquí” é o aparelho administrativo (os correios, etc.), sob responsabilidade do Governo e do PSOE. Evidentemente, nenhum poderia “certificar” a Fraga que o que saíu dos consulados é o 70%. Portanto, Fraga está a referir-se às estimações de voto segundo os seus partidários no estrangeiro. Quanto à escolha do verbo “certificar”, não há qualquer indício para interpretá-lo num sentido literal; pode ser sinónimo de ‘assegurar’, e só destaca a firmeza da “evidência”.

5) “puede ser un 70% a favor nuestro” é uma expressão muito significativa. Os cálculos que se dão estes dias indicam que, com efeito, o PP precisaria em torno do 70% do voto CERA para garantir o escano 22 por Ponte Vedra. Que pode fazer pensar a Fraga que é essa a percentagem que obtivo o PP, quando nas últimas eleições (gerais de 2003) foi menor, e quando acaba de comprovar que o apoio percentual ao PP na Galiza também baixou? Evidentemente, os cálculos do PP (como os dos outros partidos que fizeram comparecências públicas) estavam preparados e debatidos de antemão (um candidato não faz uma comparecência pública sem saber em detalhe como andam as cousas), e Fraga sabe (ou disseram-lhe) que essa é a percentagem segura do voto CERA por Ponte Vedra para alcançar o escano 22.

Um pode imaginar, portanto, que o diálogo do PP galego com “Uruguay” e “Venezuela” foi muito distinto: nalgum momento, o PP galego chamou estes países e inquiriu e destacou, após conhecer os resultados, que se precisaria o 70% dos votos para assegurar esse escano. Poderiam as organizações do PP nestes países (ou outros interlocutores sem especificar) confirmar estas percentagens? A resposta perante “Dom Manuel” foi que sim. Como poderia ser de outra maneira? Como iam reconhecer que não, se era o caso? Mesmo se os informadores de Venezuela ou do Uruguai não confirmaram estes dados, como ia reconhecê-lo Fraga numa comparecência que poderia ser a sua despedida política? Havia que evitar que o fosse.

6) A expressão “Todo depende de los restos, donde tengan que aplicarse” incorpora um matiz novo no discurso: Fraga está a destacar a vitória do PP no voto emigrante no seu conjunto (mais ou menos 70%). Mas, evidentemente, nem o PP galego nem o do Uruguai ou Venezuela podem conhecer em detalhe para que província iriam esses votos. Portanto, Fraga parece deixar a porta aberta a que em Ponte Vedra a percentagem seja menor, porque o que parece estar em questão é esse escano 22. “Todo” (em “todo depende”) significa ‘obter esse escano’. Mas todos sabemos que isto, precisamente, não “depende”: que é em Ponte Vedra onde, ao aplicar o cômputo, se pode modificar o resultado provisório. Ou não só? Pois não só: Fraga pode estar a sugerir também que esse 70% mais ou menos deve dar-se também noutras províncias, como Ourense, onde o PSOE baralha a possibilidade de obter o escano 5 contra o 8 do PP. As palavras iniciais “Espero que no haya fraude” cobram, portanto, um novo matiz: Fraga “esper(a) que no haya fraude” também no que respeita a província de Ourense, pois só com a manutenção deste escano 8 por Ourense poderia o escano 22 por Ponte Vedra dar a maioria absoluta ao PP.

7) Por fim, Fraga matiza o seu discurso e, presumivelmente, começa a destacar de novo o bom resultado do PP: “pero desde luego el resultado de la emigración ha sido muy…”.

8) A partir daí, Fraga começa a segunda parte: Interrompe-se de novo e começa a relatar as acções positivas do PP e dele mesmo na emigração americana. Destaca o apoio para o PP, e critica os outros candidatos. Fraga menciona que talvez o evento mais importante da sua vida fosse um acto multitudinário em Buenos Aires, apresentando-se então mais do que nunca como “filho de emigrantes”.

Significativamente, esta segunda parte talvez constituísse o último acto eleitoral de Manuel Fraga Iribarne, transmitido talvez pola TVG internacional e sem dúvida pola Internet. É um discurso orientado para o exterior, para salvar a sua imagem na emigração caso de perder a maioria absoluta. Mas também parece orientado a captar votos. Captar votos quando já acabaram legalmente as votações? Por que vias?

Em resumo, a intervenção de Fraga Iribarne é preocupantemente ambígua. Apoiado numa pergunta preparada de manual, Fraga procura dar a volta ao que se entende comumente por “fraude” (votar repetidas vezes, substituir papeletas, votar por pessoas mortas, etc.), para sugerir na hipotética “fraude” uma implicação das administrações do Estado e talvez dos Consulados ou do PSOE.

O terreno discursivo está preparado para estes dias: se o PP não obtém em torno do 70% dos votos da emigração que lhe dê o escano por Ponte Vedra, a sombra da “fraude” “aquí” (não “allí”) esvoaçará sobre os resultados. Num debate da TVE2 sobre as eleições no mesmo domingo, Anxo Guerreiro apontou muito atinadamente as implicações desta sugestão de Fraga, só para encontrar que outros contertúlios (Domingo Bello Janeiro e José Antonio Portero Molina) lhe restavam ferro aos comentários de Fraga. Bello Janeiro explicou a íntima ligação de Fraga com a emigração, e Portero Molina não lhe deu “mayor transcendencia” às declarações, acrescentando que Fraga disse o 70% “como podría haber dicho el 60% o no haber dicho nada; yo creo que esto es irrelevante”. O debate sobre este assunto fechou-se, infelizmente, aí: Portero Molina passou a falar da baixa do BNG (comentada por Fraga) e da galeguidade do PSdeG-PSOE.

Obviamente, estas são interpretações. Neste dia, o Discurso ainda progride. Por exemplo, a ênfase dalguns médios nos “8.000 votos” necessários para o PP obter esse escano (uma inexactidão, porque a diferença necessária dependeria do número total de votos emitidos por Ponte Vedra, tanto internos como do CERA) também contribui para esta confusão.

Só com os resultados finais na mão, haverá que ver se o PP, caso de não obter esse escano, aproveita discursiva e politicamente a sombra da fraude. Que os três partidos parlamentares na Galiza e os meios de comunicação estejam a baralhar a expressão “fraude eleitoral” num sentido ou noutro com total normalidade revela uma preocupante concepção do sistema democrático formal. Lembram as eleições USA 2000? Mas já advertim noutro artigo que eu não sou democrata.

O último Iribarne

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Não pertenço a qualquer formação política. Não acredito na democracia. O meu voto nunca deu a vitória a qualquer partido. Não sou politólogo. A minha formação teórica é escassa. Mas fum formado politicamente, lá polos anos 1970, quando ainda existia o ideal comunista e libertário, na convicção de que o que conta são os projectos e os factos, não as individualidades. Infelizmente, a história eleitoral do Reino e da Galiza deu-nos amostras da facilidade com que a gente, órfã de si própria, faz abrolhar como fungos mini-Francos eternizados no poder: Jordi Pujol, Felipe González, Manuel Chaves, Francisco Vázquez, José Castro ou o último Iribarne são apenas alguns exemplos de homens (todos homens) que se aportronaram em diversos Conselhos Directivos de España durante décadas, verdadeiros funcionários da gestão do capital, fieis emuladores do patriarcal princípio monárquico que nos rege. Não sei se as suas gestões na perpetuação da injustiça social foram piores do que outras soluções teriam sido. Mas os itinerários de todos estes homens foram e ainda são exemplos de uma triste, quase histriónica versão da figura do político. Nenhum colectivo humano deveria permitir que uma geração inteira de jovens cresça sob a sombra de um líder no poder durante décadas. Essa ideologia do indivíduo e da testosterona foi sempre caldo dos alçamentos. Nenhuma pessoa que ordene durante tantos anos pode ser trigo limpo. A nossa história e presente monárquico atestam-no.

Não vou fazer qualquer chamamento explícito a qualquer voto. A minha mente e a vossa inteligência não o permitiriam. Mas o que está em jogo no 19 de Junho não é a Galiza, senão a necessária queda das estátuas. A figura que ainda se impõe diariamente sobre nós representa a trajectória das armas. Representa uma tétrica silhueta chinesa sobre a parede do quarto antes do sono. A sua palavra molesta, moldada por um inominável pensamento, invoca os anos mais escuros de todas as pré-guerras, quando se coze o ódio que só favorece sempre os poderosos. O último Iribarne escuda-se no símbolo do macho derrotado entre a manada, a proferir os seus derradeiros estertores ideológicos. O último Iribarne é fiel produto de uma terra penosa que deve morrer.

Antes havia, tínhamos (que estranho soa esse “nós” inclusivo) um ideal. Lembro férteis conversas de unidade com homens (sempre homens) então progressistas, que agora se disputam um pedaço de voto ou uma prebenda oficial. Um, que uma vez há muitos anos me chamou “cristão” (a mim?) quase como um insulto, agora segue fielmente o seu particular messias marxista, cego ao retrocesso que tal isolamento significa. Outro, que dirigia com grandes barbas as nossas reuniões de célula clandestina, é agora pontual analista eleitoral para a direita. Outro que admirava com saudades os generais comunistas do 36 acompanha o último Iribarne nas suas viagens coloniais às Américas. E assim por diante, até cobrir a imensa nómina dos vencidos.

No entanto, foi esquecendo-se a razão utópica que mora irremediável no interior do cérebro humano. E por isso agora periga até o simples derrubo colectivo das estátuas. Já sabemos que botarmos abaixo um homem e um emblema não significa instaurarmos qualquer utopia. É um singelo acto de cordura, uma necessária ablução mental. E, infelizmente, este mês não haverá muitas maneiras para fazer isto. Nomeadamente, só há uma. Já haverá tempo noutros meses para derrubarmos outras estátuas, serrando-lhes as pernas com efeito, como se precisa. Porque, se não acabarmos com esta efígie, um outro mini-Franco e um novo projecto económico, ainda mais brutal, abrolharão em pouco tempo das entranhas da primeira. Quase ninguém fala disto, mas esse projecto chama-se Feijóo, e o seu mundo é perigoso. Engana-se quem pensa que, nesta circunstância concreta, a coerência ideológica de votar no ineficaz (sempre), e portanto de perder a oportunidade do derrubo, revelaria ainda mais contradições no Sistema. Um voto é um aberrante gesto cúmplice, já o sei. Mas às vezes não é louco votar polos traidores. Sobretudo quando, simultaneamente, a pureza ideológica tampouco consegue construir na base a sociedade civil que se precisa.

Por isso, o último Iribarne merece desaparecer pola esquina direita da televisão quando esta percorra os escanos de simples deputados e aí esteja ele, decaído, talvez a perguntar-se pola origem do seu fracasso, a perguntar-se quando começou ele a ser um fantasma de si próprio: Na Falange? Em Palomares? Quando sequestrava a palavra impressa como um triste trapeiro? Num majestoso Parador erguido a vinte metros da miséria? No Paço de Meirás, com o seu pai Francisco Franco? Manipulado polo rei Juan Carlos? À sombra de Arias Navarro? No sangue brutal de Gasteiz? Na crise das vacas loucas? Asfixiado de piche? Onde está o gérmen do longo fracasso do último Iribarne? Por que lhe será tão patética a derrota? Por que aceitaria ser sempre um títere? Quem dos seus o traiu, Pai, como a um Cristo contra-natura? O último Iribarne merece desaparecer do televisor como um apagado mamute, em silêncio, em tons de cinza, sem estátuas a cavalo, sem intensas fotografias, sem amigos, sem controle dos seus próprios actos, recolhido no seu erro.

O Verão anseia uma notícia agradável. Talvez não seja assim, porque afinal só a História escreve os textos. Mas, nalgum momento, será fácil esquecer o último Iribarne. Até para os seus lacaios será um alívio.

Matar a Guerra: Em memória de quatro vítimas

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Quem isto escreve nunca morrerá fulminantemente asfixiado numa manhã de nuvens dentro dum depósito de metal sem oxigénio. Nunca será sepultado dentro de uma máquina de ferro por uma montanha de lixo urbano. Nunca cairá funâmbulo dum telhado onde andava a colocar tijolos para os prédios de milhões de euros. Nunca será intoxicado por insecticida utilizado na limpeza duns grandes armazéns. Quem isto escreve só morreria no seu trabalho esbarrando ridiculamente num papel de exame esquecido no chão, nos polidos corredores do seu edifício oficial, enterrado debaixo duma culta livraria após um enorme terramoto, electrocutado polo estouro dum teclado plástico, infectado pola tinta duma estilográfica deficiente.

Eu nunca serei vítima da Guerra. A maior parte dos que me leiam, tampouco. A maior parte dos outros que escrevam, tampouco. O deputado que perguntará sobre estas mortes nos parlamentos tampouco morrerá de afonia. A polícia do parlamento não matará o deputado díscolo. Os responsáveis das empresas homicidas não serão executados. A Guerra pagará com ouro o sacrifício das suas vítimas, e depois a vida, imagem especular da morte, continuará. E nós continuaremos a pagar os barcos da Guerra. Continuarão a crescer os altos edifícios, os parques de lixo urbano. Continuará a asfixiar-se a força do trabalho em tarefas inumanas. E continuarão a nascer corpos, a imigrarem corpos, para limparem por duas moedas as entranhas das bestas metálicas de Ocidente, para limparem sempre os detritos dos poderosos.

A Guerra produz as suas primeiras vítimas na casa própria, no seu contorno mais próximo, e observa as respostas. É o seu calculado experimento. A Guerra é um preciso projecto, não um acaso. E a morte é um efeito colateral do trabalho assalariado. Desde que a Guerra é isto, foi sempre assim, e sempre continuará a sê-lo enquanto haja Guerra. Porque corpos há muitos. Há milhares, milhões de corpos dispostos a se arriscarem para alimentarem outros corpos. A Guerra sabe que a matéria prima do trabalho nunca é escassa. A Guerra pode escolher a carne, a melhor carne: para as minas de metais preciosos, para as vindimas de frutos circulares, para a construção dos refulgentes prédios, a Guerra escolhe sempre os corpos. E os corpos escolhidos entram nos furados da terra e nos intestinos dos navios para limparem o sangue das feridas. E às vezes os corpos devem suicidar-se por pão, e a Guerra sabe-o.

Por isso a Guerra ganha sempre. Até que a matemos.

España, S.L.

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O problema que tivo o Conselho de Administração de Euskadi Ltd. é que a legislação comercial do cartel España S.L. não permite a separação unilateral dum dos sectores de produção, sobretudo quando este é tão importante que sem ele a empresa ficaria praticamente descabeçada. Ontem, na Junta geral de proprietários de España S.L., ficou claro que comercialmente teria sido melhor para Euskadi Ltd. a estratégia, praticada profusamente há anos durante a época de venture capitalism em USA & Co, Europe Inc. e a própria España S.L., de descolar-se da empresa mãe fugindo simplesmente de noite com a principal carteira de clientes. Afinal, se Euskadi Ltd. fosse capaz de evadir os serviços de segurança por terra, mar e ar contratados consoante o artigo 8 da Constituição Comercial, que garante a integridade da empresa, e fosse reconhecido como partner potencial polas outras empresas mundiais, pouco poderia fazer o resto de proprietários de España S.L. Catalunya Inc. e Irmáns Galicia talvez contemplassem com inveja e preocupação a aventura, enquanto o resto de España S.L. deveria, sem dúvida, aggiornar-se a um novo panorama comercial menos favorável.

Nominalmente, a reunião de ontem foi mais um desses trâmites polos que as Juntas de Proprietários devem passar para aprovarem as cousas mais triviais. Euskadi Ltd. mostrou os dentes, Catalunya Inc. confirmou a sua lealdade ao cartel, um quadro médio de Irmáns Galicia queixou-se de novo do lamentável estado das suas instalações, e a aliança entre os dous maiores sectores proprietários de España S.L., sentados a direita e esquerda da longa mesa de trabalho, continuou a funcionar como desde há décadas, na aparência de confrontação, mas sempre protegida sob o solene retrato do Presidente Vitalício de Honra, Sua Majestade Real, e os de todos os antepassados que possuem o consórcio desde há séculos (fora de temporárias ocupações civis que sempre acabaram desalojados pola polícia). O Presidente do Conselho de Administração, o Sr. Talante, demonstrou que é capaz de dialogar com um presidente territorial sem humilhá-lo. Por contra, o Sr. Mire Uszté, cujo sector é maioria em tantos Conselhos de Administração territoriais, rejeitou veementemente qualquer cissão no cartel (mesmo com posterior aliança comercial), e até ameaçou com uma possível OPA agressiva sobre Euskadi Ltd., contemplada no artigo 155 da Constituição Comercial como tábua salvadora para unificar a política de empresa. E apenas vozes tímidas (como a do Sr. Nosotros Creemos) se alçaram na Junta de Proprietários em favor duma restruturação horizontal do organigrama e duma questionável oferta pública de acções que corresponsabilizasse os próprios consumidores da instabilidade estrutural da empresa.

Contudo, é evidente que algo se move dentro de España S.L. Sofre simultaneamente pressões centrípetas pola sua futura absorção por Europe Inc., fendas centrífugas pola necessidade de expansão dos seus sectores periféricos, que já não respiram com as quotas de mercado cedidas por Madrid, e desconcerto pola recente mudança de sede executiva da rua Génova a Ferraz. España S.L. tem demasiadas filiais com demasiados interesses sectoriais. Por exemplo, o Conselho de Administração de Irmáns Galicia (quer dizer, os quatro irmãos, mais o púdico Presidente eleito, braço direito da Capital antes da modernização de España S.L.) levam anos demonstrando estarem dispostos a mudar radicalmente o seu sector de produção se assim podem manter a titularidade da empresa a qualquer preço. Producsioneh Canariah, por sua parte, é favorável a colaborar no cartel España S.L. com a única condição de preservar a sua imagem corporativa exterior. Facções em alça de Catalunya Inc. continuam a manifestar a sua intenção de absorver as contíguas Distribuidora Valencia e Servicis Illes. E enquanto concessionárias como Andalu & Cía. reclamam também periodicamente parte da torta, outras como Mur Cia. levam anos sem abrirem a boca na Junta de Proprietários. E assim por diante.

Em resumo, tudo isto dificulta o desempenho de España S.L. nos mercados, e coloca a empresa numa situação difícil de administrar com lucidez comercial. Por isso, a campanha de mercado em andamento de España S.L., que culminará com o maciço inquérito de consumo do 20 de Fevereiro, está só desenhada para desviar a atenção dos problemas internos e para preparar a sua absorção por Europe Inc. perante o temor de queda de confiança dos consumidores. España S.L. debate-se assim entre a perda de capacidade de gestão que a sua integração em Europe Inc. acarreta, e as demandas de subsectores altamente especializados que não parecem achar equilíbrio no actual organigrama do conglomerado. O resultado só pode ser ralentização do processo produtivo, custos produtivos crescentes, possível ajuste brutal de planteis, e desconfiança do mercado. Perante esta salada, só algumas vozes críticas sugerem que o mais prudente para a empresa seria rejeitar a fusão com Deutschland Internationale, France Totale e outros cartéis semelhantes, a independização das filiais territoriais, e começar de novo a capitalização desde abaixo. Algumas ousadas organizações de usuários até propõem fórmulas distintas de capitalização. Seja como for, a crise está servida, e quem sofreremos, de novo, seremos os consumidores. Haverá que ir viver a outras empresas. Ou montar um país próprio, sem Capital.