Repugnante

Publicado em Vieiros • Publicado em  Novas da Galiza 47, 15 Outubro – 15 Novembro 2006, p. 20

O Reino de España, chefiado como sempre desde que lembro por um militar profissional, prepara-se mais uma vez para celebrar a conquista e o genocídio nesse repugnante 12 de Outubro, Día de la Hispanidad, Fiesta Nacional. Ainda bem que não sou espanhol, que muitos não somos espanhóis para levarmos essa vergonha nas costas. España, a ressessa España dos catecismos escolares, das enciclopédias Álvarez, das cruzes gamadas e latinas, da indivisível unidade, da asfixiante hagiografia e dos mártires do Alcázar e das réstias de repugnantes reis e rainhas, homenageia aquele mercenário Cristophorus Columbus, o mesmo indivíduo que negociou igualmente com o sequestro de escravos africanos em Portugal e com escravos americanos em Sevilha, o que inaugurou a peste e o extermínio, o mesmo indivíduo que alguns tristes patriotas catalães, portugueses ou galegos querem reivindicar como seu.

O repugnante dia da Fiesta Nacional verá, mais uma vez, o desfile de repugnantes exércitos e repugnantes bandeiras de repugnantes monarquias e repúblicas, numa infantil sinceridade espanhola que é de agradecer: porque a essência de España sempre foi o exército. Perante o palco populado de medalhas e sorrisos de pastel, de altezas e baixezas, de políticos hipócritas y otras altas autoridades civiles, católicas y militares, desfilará a essência de España. E quem desfilará com as suas melhores galas de feriado não serão docentes, electricistas, varredores, pessoal sanitário. Não desfilarão campesinhas, cabeleireiros, jubilados, empregadas, contáveis, marinheiros, juízes, jardineiros. Não desfilarão taxistas, parteiras, comerciais, tradutoras, vendedores, peixeiras, músicos, jornalistas, ferralheiros, alvanéis, terapeutas, operárias, poetas, fruteiros, biólogas, limpadoras, camareiros, redeiras, pintores, tratantes, secretários, desempregadas, recepcionistas, mineiros. Não. Desfilarão matadores profissionais, soldados, cabos, sargentos, tenentes, capitães, coronéis, comandantes, generais, carros de metal, aviões de metal, fuzis, mastros, metralha. Desfilará página a página a enciclopédia universal do assassínio legal, regulado, cristão, salvador. Desfilará letra a letra o infame artigo 8 da Constitución Española.

E assim, mais uma vez, España demonstrará transparentemente a sua vocação armada, imperial, grotesca, o seu fracasso histórico. E todos e todas saudarão bandeiras de cor de sangue e bílis, bandeiras com estrelas de dor, com águias predadoras, com coroas de ouro roubado, bandeiras com as eternas palavras do extermínio: América, Marrocos, o Sara, Guiné, Iraque, Líbano, Afeganistão, Haiti. Felizmente regressarão os EUA ao concerto hispânico dos amigos da morte. E firmes nos seus tronos democráticos, políticos que lixam a palavra “socialista” e políticos que lixam a palavra “popular”, os mesmos que invadiram o Iraque e os mesmos que o abandonaram para continuarem no Afeganistão, para invadirem o Líbano cegamente fieis aos cães da guerra, celebrarão juntos a glória da Conquista, a heróica missão do Reino nos intestinos da prata e do ouro negro.

Do Cusco a Cabul, na mais antiga tradição monárquica, España continua a celebrar a épica da morte humanitária com o fulgor erecto de sabres e pistolas. Como sempre com essa monstruosa retórica da libertação cristã, democrática, ocidental. Como sempre desde que lembro. Como sempre até que a gente desse Reino decida deter a repugnante farsa.

A épica do suicídio

Publicado em Vieiros

Este texto surge a raiz de debates na lista Language in the New Capitalism

O discurso de Joseph Ratzinger –conhecido como Bento XVI pola sua profissão– no passado 12 de Setembro causou uma comoção mediática polas suas referências ao Islão. O texto, que foi uma palestra intitulada Fé, Razão e a Universidade: Memórias e Reflexões perante representantes da ciência na Universidade de Regensburgo, parte de citações de uma controvérsia medieval entre o imperador bizantino Manuel II Paleologus e certo persa culto sobre três livros religiosos: o Antigo Testamento, o Novo Testamento, e o Corão. Ratzinger cita o editor do diálogo, Theodore Khoury, citando o imperador a citar surahs do Corão sobre, entre outros tópicos, a “guerra santa”. Ratzinger contrapõe uma visão parcial do islão e do seu violento deus (um deus “não sujeito nem a sua própria palavra”) com a racionalidade helenística, que seria não só a base da ciência ocidental moderna, mas o pouso intelectual em que se teria assentado naturalmente o cristianismo. Decerto, esta parte do discurso de Ratzinger é propagandisticamente parcial, e assim foi lido por imans e alguns muçulmanos que, a exercerem violência, não fizeram outra cousa que reforçar as teses de Ratzinger. Num artigo em Counterpunch, “Papal Insults. A Bavarian Provocation” (“Insultos papais: Uma provocação bávara”), Tariq Ali contesta em defesa do “mundo islâmico” e, concretamente, de “dous dos seus países” (o Iraque e Afeganistão) ocupados por “tropas ocidentais”, lembrando o sangue histórico deitado polo dogmatismo da religião cristã, também com citações escolhidas de textos religiosos cristãos. Muito longe da análise social crítica, temo-me que a réplica de Tariq Ali também reforça a ideia de que os conflitos económicos mundiais podem ser discutidos em termos pseudo-teológicos, além de um par de frases de manual de corte social.

Mas eu leio o texto de Ratzinger mais bem como um interesseiro meta-texto sobre o papel do catolicismo num mundo crescentemente invadido por outras e novas denominações de origem religiosas. Ratzinger simula convidar ao “diálogo genuíno” com uma nova controvérsia (dialéxis) sobre os escopos respectivos da ciência e da razão, da ética e da religião. Para mim, o texto está desenhado para o consumo interno do “mundo cristão”, dado o retrocesso sofrido polo catolicismo perante a mercadotecnia do evangelismo. É um intuito de apropriar a racionalidade, ao equiparar ciência e razão por uma parte, e religião e ética, por outra. Assim, para Ratzinger a ética religiosa deveria derivar de um alargamento do escopo da “ciência” para incluir a filosofia e, noutro sentido, a teologia, isto é, a (bizantina, em mais de um sentido) racionalização da fé. Diz Ratzinger:

“Este é um perigoso estado de cousas para a humanidade, como vemos polas perturbadoras patologias da religião e da razão que irrompem necessariamente quando a razão fica tão reduzida que as questões da religião e da ética já não lhe concernem. As tentativas de construir uma ética a partir das regras da evolução ou da psicologia e da sociologia terminam por ser simplesmente inadequadas”.

Ou

“Só assim [pola racionalização da fé] somos capazes desse genuíno diálogo das culturas e religiões que hoje se precisa tão urgentemente. No mundo ocidental é visão geral que só a razão positivista e as formas de filosofia baseadas nela são universalmente válidas. Porém as culturas profundamente religiosas do mundo vêem esta exclusão do divino fora da universalidade da razão como um ataque contra as suas convicções mais profundas. Uma razão que é surda ao divino e que relega a religião ao âmbito das subculturas é incapaz de entrar no diálogo das culturas”.

O gambito, como nas controvérsias, seria teoricamente implicar outras religiões num “diálogo” racional “genuíno”, mas obviamente, desde a vantagem da racionalidade helenística, ocidental e eurocêntrica, incorporada por naturalização no cristianismo. Mas mais preocupante do que esta apropriação é a deslegitimação que se faz do pensamento científico (as “regras da evolução”, a “psicologia” e a “sociologia”) para o ordenamento da ética, absorvida por Ratzinger na ideologia cristã como expressão da essência humana.

É certo que o messianismo destas palavras –com a sua clara reverência ao criacionismo ao assumir que a ética humana não é um resultado evolutivo da espécie, mas então platonicamente (divinamente) prévia– assinala uma aliança táctica com o que já se tem chamado o teo-conservadorismo norte-americano. Nestes termos poderia caminhar uma crítica sociologicamente orientada do discurso de Ratzinger. O que me surpreende, porém, é que um texto sem dúvida bem polido mas articulado em torno de uma ideia muito simples levante críticas (como a de Tariq Ali) que só reforçam o enquadramento do desastre mundial actual em termos do “islão”, o “ocidente” ou outras totalizações. Isto não é só inquietante, mas representa um fraco serviço à compreensão das causas do desastre. Desta perspectiva redutiva compartilhada por uns e outros, o “islão” tem produzido grandes atrocidades históricas, como o “cristianismo”, o “judaísmo” ou o “hinduísmo”. Mas o “islão” no seu conjunto não é atacado porque qualquer discurso interesseiro indique que passagens do Corão são susceptíveis de serem interpretadas como convocatórias a uma “guerra santa” que (outros exégetas dizem) inexistem como tais nesse livro (jihad traduz-se por combate: um combate “pequeno” para a conversão dos infiéis, e um combate interior “grande” que não deixa de lembrar a “revolução interna”). Da mesma maneira, a “cristandade” no seu conjunto não sofre polas menções de Tariq Ali às Cruzadas, nem o “judaísmo” sofre polas críticas a um projecto sionista de expansão estatal que não é compartilhado nem pola resistência cívica israelita nem pola ortodoxia judeia. Se a “fé” existe, deveria ser impermeável aos erros históricos. Este recurso dialéctico às atrocidades históricas do adversário ideológico é, se se me permite, meridianamente ridículo.

O que denigra o islão, o cristianismo, o judaísmo ou qualquer outra ideologia religiosa são as exégeses essencialistas dos seus respectivos textos fundacionais, solenemente exercidas por esquadras de maduros varões (sempre varões) desde o privilégio material das suas palestras reais, virtuais ou mediáticas, num exercício de elite que já perdeu todo o contacto humano com a realidade. A ideologia religiosa é igualmente denegrida polo acrítico submetimento de legiões de homens e mulheres crentes a estes solenes varões, como se apenas estes pudessem ser a voz da fé individual (seja isto da “fé” o que for), numa sorte de estranho deslocamento que sem dúvida desafia a “racionalidade da fé” que Ratzinger procura se apropriar.

A totalização das palavras “islão”, “cristianismo”, “judaísmo” ou qualquer outra ideologia religiosa cria monstros. O paralelo especular da queima de livros polos Nazis é a idolatria de um só Livro, tenha o título que tiver. E estas totalizações são extremamente úteis para que outros construtos, também totalizadores (os Poderes Ocidentais, os Neo-Conservadores, os Teo-Conservadores, o Complexo Industrial-Militar, o Sionismo, Al-Qaeda) se apoderem dos nossos actos a meio de uma apropriação mediática, simulada, das nossas mentes.

Eu compreendo que os média corporativos precisam de inflar estes assuntos descabidamente, visto que a realidade já não é tão real como soía ser (a realidade é tremendamente aborrecida para os índices de audiência). Mas eu pergunto-me por quê certa crítica é incapaz de retirar das suas análises a palavra “islão”, que por definição só pode incidir no discurso dominante das emoções. Já sabemos que as razões principais para a presença ou a ameaça de exércitos ocidentais ao Iraque, Afeganistão, o Irão, Síria, Líbano não é que estes sejam “países muçulmanos”. Porque não o são. São países de gente, e de classes sociais. Os exércitos cristãos espanhóis massacraram nativos americanos durante séculos e ninguém cabal chamaria isso uma guerra de religiões. O que se precisa é uma resistência decisiva em favor do laicismo dos estados (já que estes existem, mantenham os deuses e outros seres pavorosos fora do meu dormitório e das minhas escolas), não análises que, ao nomearem os mesmos objectos que os conservadores religiosos nomeiam, reforçam alianças semântico-militares incomprovadas como “islamismo/Al-Qaeda” (uma organização armada religiosa com um nome laico???) ou o também inexistente “choque de civilizações”.

Realmente aborrece escutar este discurso das emoções religiosas todo o tempo. Nunca desde os tempos de Franco a religião esteve tão presente nos média e no pseudo-debate público desta mutação histórica que é o Estado Espanhol. Numa táctica evidente, a classe política, os média e todo tipo de comentaristas brandem o “islamismo” como a fonte de todos os males, ou defendem-no como se o petróleo fosse muçulmano, quando do que se está a falar realmente é do outro Inomeado (como todos os deuses verdadeiros) como fonte de todos os bens: o cristianismo, o judaísmo, o judeo-cristianismo. Assim, a situação actual, onde a imigração, o multiculturalismo, o “terrorismo” e as religiões “alheias” se reúnem num totum revolutum no discurso público, excede todo sentido de normalidade.

Mas estou começando a pensar que tudo isto é o resultado da vitória global do pensamento religioso institucionalizado sob o disfarce doutrinário de um Nazismo que na verdade nunca perdeu a guerra. Quando se acredita num princípio dogmático último além da racionalidade de senso comum e da experiência (o Estado, a Raça, a Pátria, Deus: um Aleph nunca visto mas igualmente existente que resumiria e explicaria tudo), o resultado também final da lealdade incondicional só pode ser a Morte, esse sacrifical suicídio explosivo eficazmente inventado polo Império japonês, não por Mohammed Atta. A finais dos anos 1990, os militantes salafistas começaram a matar-se entre eles e a extinguir-se (um suicídio em massa) em lugar de matarem os infiéis ocidentais, pois já não tinha sentido salvar aquele mundo corrupto se Deus não podia achar nem um homem puro entre os seus próprios seguidores. Curiosamente, foi então, quando o islamismo armado estava mais débil, que apareceu a insígnia “Al-Qaeda”. Mas já muito antes também Hitler quis suicidar a impura raça germana quando se suicidou, pois Ele (isto é, Hitler) falhara-lhes. E talvez Hitler fracassou porque também era “judeu”. Os horríveis crimes dos alemães nazis contra os alemães judeus (e europeus judeus em geral) só se podem entender em termos da purificação de uma parte do que era visto como o próprio Corpo Ário. Os alemães judeus não eram “o Outro”, mas a parte do Um-Próprio, inscrito no sangue e nos nomes alemães (o nono apelido de Hitler era “judeu”). Para o Nazismo, matar os judeus significava amputar um membro importante do próprio corpo, que, por certo, criara significativo pensamento científico, filosófico e político para a Germânia, incluindo o Marxismo. Afinal, a operação racista Nazi teve sucesso, e por isso o anti-semitismo europeu tomou firmes raízes na criação do Estado de Israel, primeiro pola superação numérica dos judeus semitas da Palestina por parte dos judeus europeus, e depois polo deslocamento e assassínio dos semitas muçulmanos e cristãos. A actual situação mundial deve mais do que sabemos ao triunfo do Nazismo, talvez a máxima expressão histórica conhecida da totalização da Identidade.

Cristo, Hitler, os kamikazes, Atta, os homens-bomba, Lavapiés, Jamestown, o United-93, os mártires e heróis da cultura da guerra de Hollywood… A religião é a épica do suicídio. O argumento subjacente sem provar é que o Grupo humano é materialmente um supra-organismo, uma enorme estrela de mar que às vezes precisa de sacrificar um dos seus membros polo bem comum. E a “globalização”, assim, não é mais do que uma consequência internamente lógica, a longa construção dum corpo monstruoso: o vasto corpo de Deus. Neste sentido, assim como ontem alemães nazis mataram centenas de milhares de alemães judeus nas aras da pureza orgânica, hoje as matanças mútuas de iraquianos também não constituem uma guerra civil, mas uma cura, e portanto o sangrado terapêutico deve continuar, vigiado polos exércitos de deus: o massacre iraquiano é puro suicídio, é a auto-limpeza necessária, a necessária auto-purga de uma parte impura do corpo global. O Iraque é uma maciça apoptose. Porque o infantil deus cristão do Capital genuinamente acredita que o mundo é o Seu corpo, e tem que lutar contra outros deuses igualmente infantis que também desejam ter um corpo.

A racionalidade da fé? Eu nem sei. A mim o que me diz a racionalidade é que a Teologia é pura Teratologia. E que, polo que sei, essa terrível pulsão suicida inexiste no Marxismo.

A retórica da Propaganda

Publicado no Portal Galego da Língua

1.

Escreve nalgures a linguista Ruth Wodak que a Propaganda é “discurso desenhado para impedir pensar”. A Propaganda é omnipresente na vida diária. Mas, como se constrói linguisticamente, discursivamente, a Propaganda? Que recursos fornecem as línguas para a Propaganda?

Quisera focar-me num fenómeno pragmático (comunicativo) muito frequente na vida diária e susceptível de uso propagandístico com muita produtividade: a pressuposição. A pressuposição consiste em dar por entendido algum significado, mas “escamoteado” dentro de um enunciado mais amplo. Por exemplo, se eu afirmo “O filme A é mais interessante do que o B”, estou a pressupor que o filme A é, polo menos, algo interessante, que tem a qualidade de ‘interessante’ nalguma medida. Por isso os vendedores nos dizem sempre que um produto caro é “menos económico do que o outro” (tem o atributo de ‘económico’, quer dizer, ‘barato’, nalguma medida), nunca “mais caro do que o outro”.

Um tipo de pressuposição muito frequente é a chamada pressuposição existencial. Com uma pressuposição existencial, dá-se a entender (dá-se por inquestionável) a existência de algo, de uma dada entidade, seja isto assim no mundo real ou não. Por exemplo, se eu afirmo “O meu cão chama-se Trósqui” pressuponho que existe um cão específico e que é da minha propriedade. Reparemos que se nego o dito (“O meu cão não se chama Trósqui”) continuo a pressupor o mesmo: a existência de um cão que é meu. De facto, “O meu cão chama-se Trósqui, mas não tenho cão” é uma contradição, porque eu dei a entender, com outras palavras, que o tinha.

As pressuposições existenciais são activadas polo que se chama uma expressão definida. Uma expressão definida é, por exemplo, a que começa com o artigo “o/a/os/as” (“O meu cão está doente”), ou a que consiste num nome próprio (“Trósqui está doente”).

Portanto, as pressuposições existenciais contribuem para a representação de um mundo… ou para a sua construção. A questão crucial para o receptor de uma pressuposição existencial (o ouvinte) é o que se chama a determinação do referente, quer dizer, o problema da identificação de uma dada entidade do mundo real que se possa corresponder com a entidade pressuposta. A questão é se no mundo real a pressuposição se satisfaz ou não, quer dizer, se na realidade existe ou não essa entidade pressuposta. Eis o que discutirei a seguir.

2.

A propaganda política faz uso do recurso da pressuposição existencial de maneira profusa. De facto, grande parte da construção de uma ideologia consiste na construção de um “mundo” de objectos e realidades pressupostas. Por exemplo, “A política económica do governo” pressupõe que o governo tem política económica (e não um conjunto de actos improvisados). “Os direitos dos trabalhadores” pressupõe que existem tais ‘direitos’, e assim por diante.

De maneira que as pressuposições existenciais contribuem para construir um mundo, polo menos das ideias. Alguns ultraliberais, por exemplo, fazem existir o nazismo na Galiza a referir-se em certos textos jornalísticos ao actual governo bipartido da Galiza BNG-PSOE como “el poder nacional-socialista gallego” como se o governo fosse um todo unitário comparável ao partido alemão NSDAP e como se tivesse a mesma ideologia. A manipulação baseia-se no seguinte: O receptor sabe que existe a Xunta; sabe que está composta por um partido “nacionalista” e por um partido “socialista”; portanto, só pode fazer corresponder a expressão “el poder nacional-socialista gallego” com esta aliança de partidos do mundo real. O poder galego actual não é nazi; mas a Propaganda quer fazê-lo existir, nomeando-o e, assim, condicionar a visão do mundo dos receptores.

Dissemos que um outro tipo de expressão definida que acarreta uma pressuposição existencial é o nome próprio. O jornalista Adam Curtis revela no seu excelente documentário The Power of Nightmares (O Poder dos Pesadelos, BBC, 2004) como “Al-Qaeda” começou a existir em Janeiro de 2001, durante o juízo em EUA contra quatro homens polos bombas colocadas em duas embaixadas EUA em África do Leste em 1998. O governo EUA queria estender também a acusação a Ben Laden, como pretenso líder de um (inexistente) movimento armado internacional. Na realidade, Ben Laden era apenas seguido por um pequeno grupo de fanáticos dentre os milhares de grupúsculos armados que pululavam por Afeganistão. Mas, sob a legislação estadounidense, a acusação a Ben Laden só podia ter lugar se existisse prova de uma vinculação orgânica, quer dizer, de uma organização, como a máfia. Então, uma testemunha protegida do processo, um muçulmano, declarou que ele próprio conhecera Ben Laden e que “Al-Qaeda” era o nome que ele dera à sua organização. Polo poder pressuposicional de nomear, “Al-Qaeda” começou a existir na mente do público. Foi só mais tarde desse mesmo ano, após o massacre do 11 de Setembro, que Ben Laden soube que no nome “Al-Qaeda” representava para os neo-conservadores estadounidenses uma suposta organização da qual ele seria o líder. Na realidade, os ataques do 11-S foram obra de um pequeno grupo, desmantelado e desaparecido, que acudira ao adinheirado Ben Laden para financiamento. Em resumo, precisamente por o nome “Al-Qaeda” ser cunhado, o mundo real passou a se ajustar às palavras, com a criação de um poderoso inimigo, algo que politicamente era necessário para o neo-conservadurismo ocidental após a queda do “império do Mal” soviético. Assim, a palavra dos representantes do povo elegido (EUA) criou, pressuposicionalmente, “Al-Qaeda”. Na verdade, não longe disto está o poder performativo (criativo) da palavra de Deus na cosmogonia cristã: “E Deus disse: Faça-se a Luz; e a Luz fez-se”.

3.

É polo mesmo procedimento que se fazem existir também realidades como “O terrorismo islamista”. Com efeito, um tipo muito frequente de expressão que contém uma pressuposição existencial propagandística é ARTIGO + NOME + ADJECTIVO, do tipo “O terror-ismo islam-ista”, “O separat-ismo comun-ista”, etc., onde duas práticas ou ideologias políticas convergem numa. Reparemos, por exemplo, em

“O terrorismo islamista”.

A expressão, à margem do enunciado onde estiver contida (p. ex. “O ataque foi obra do terrorismo islamista”, ou “O ataque não foi obra do terrorismo islamista”) dá a entender a existência de uma prática política de terror que, além, é ‘islamista’, seja isto o que for. De facto, aqui há duas informações contidas numa: ‘(1) Existe o terrorismo; e (2) um atributo deste terrorismo que existe é ser islamista’.

Este procedimento retórico liga fortemente o islamismo em geral ao terrorismo. Como é assim? Porque, por uma parte, sabemos que no mundo existe também o não-terrorismo; mas a expressão não deixa a porta aberta a que existam islamistas que não sejam terroristas. O terrorismo é o conjunto maior.

Por contraste, a expressão alternativa

“O islamismo terrorista”

pressupõe algo notavelmente distinto: por uma parte, pressupõe que existe um tipo de islamismo que é terrorista; mas, a utilizar um adjectivo restritivo, deixa margem para pensar que não todo o islamismo é terrorista.

Destas duas expressões, a que melhor se ajusta ao estado do mundo actual é, obviamente, a segunda, pois não todas as pessoas “islamistas” são “terroristas”. Porém, parece claro que a propaganda política utiliza quase exclusivamente a primeira: ela faz existir antes o terrorismo do que o islamismo. Da mesma maneira, fala-se de “O terrorismo independentista” (‘um tipo de terrorismo que é independentista’), não tanto de “O independentismo terrorista” (‘um tipo de independentismo que é terrorista’, frente a outro que não é).

Ora bem, à hora de interpretar a expressão “O terrorismo islamista” e de lhe destinar um referente, a questão que o público receptor deve resolver é: Quem compõe esse grupo de terroristas que são islamistas? A evidência da experiência é que existe ‘o terror’. Outra evidência é que os islamistas são conhecidos no mundo cristão apenas quando existe o terror que alguns deles levam a cabo, e sempre em referência a ele. Portanto, a inferência a que convida esta manipulação de sentidos e de referentes é que ‘Todos os islamistas (que são os indivíduos que conhecemos quando há terror) são terroristas’, de maneira que “islamista” (como “independentista”) é um subconjunto do superconjunto que define tudo: “O Terrorismo”. Em resumo, emitir “O terrorismo islamista” implicita que ser islamista é apenas uma das possíveis manifestações de praticar o Terrorismo.

4.

Imaginemos, para continuar com a explicação do funcionamento da Propaganda, que na Galiza alguém utilizasse por escrito a expressão

“O fundamentalismo lusista”

A pressuposição aí contida dá por feita a existência de alguma (pretensa) realidade nossa. De novo, não nos interessa a oração completa em que se emitisse: tanto “O fundamentalismo lusista está a crescer” quanto “O fundamentalismo lusista não está a crescer” dariam por suposta a existência, no mundo real, (1) de uma posição ou prática social etiquetada como ‘o fundamentalismo’, e (2) de que uma manifestação desta posição social tem o atributo de ‘lusista’. (Evidentemente, ainda não sabemos o que significa “fundamentalismo” e, menos ainda, “lusista”; mas disso ocuparemo-nos depois).

Como no exemplo anterior, o subconjunto “lusista” fica portanto ligado a outros tipos dentro do superconjunto “Fundamentalismo”, tais como “O fundamentalismo islamista”, “O fundamentalismo nacionalista” ou o “O fundamentalismo independentista”. De novo, também, o elemento definidor é o substantivo: a expressão pressuposicional faz existir primeiramente o fundamentalismo, que apenas se manifesta em variantes ideológicas como ‘islamista, nacionalista, independentista, lusista’, etc. Como no caso de “O terrorismo islamista/independentista”, etc., a ideologia específica (política ou linguística) fica subordinada à construção abstracta de uma prática social, que organizaria a realidade.

De novo, como na discussão anterior, contrastemos o exemplo com a hipotética expressão também pressuposicional

“O lusismo fundamentalista”

Esta expressão pressupõe algo sem dúvida diferente: que, dentro do lusismo, existe uma tendência ou prática fundamentalista. Dá-se por suposta a existência de polo menos alguma manifestação “fundamentalista” dentro do lusismo; mas sugere-se, por contraste, a existência de um lusismo “não fundamentalista” (se eu afirmo A, estou a implicitar que existe um não-A, que posso chamar B; só um Pan-Deus escaparia a esta hidráulica).

Mas ocupemo-nos só do efeito propagandístico da expressão primeira, “O fundamentalismo lusista”. A questão, mais uma vez, é, como se adeqúa esta representação ao mundo real? Que faz o leitor da Galiza perante uma pressuposição assim?

Deixo de parte, evidentemente, o que possa significar “fundamentalismo” para alguém que utilizasse tais palavras. Nem sei, nem saberia, se esse significado não se fizesse explícito. Mas sim que sei que, na fala comum, o fundamentalismo ou integrismo está sem dúvida associado a valores negativos como fanatismo, intransigência, dogmatismo, e, por extensão, agressividade verbal e física. De facto, na discurso político propagandístico contemporâneo a ligação entre “fundamentalismo” e “terrorismo” é muito forte. Um fundamentalista é aquela pessoa que não vê sentido em discutir o significado imanente de um texto de autoridade (um código religioso, um ideário político, uma proposta normativa), pois a Palavra está por cima de qualquer debate. Um fundamentalista islamista nunca debateria, por exemplo, o próprio alvo do Islã ou o sentido do Corão. Portanto, para a consecução da sua causa, dada a inutilidade do debate, a violência pode chegar a ser um meio legítimo e até necessário. (O documentário O Poder dos Pesadelos relata como na década de 1900 o fundamentalismo fanático de alguns grupos armados islamistas foi tal que começaram a matar-se entre eles por ‘infiéis’ e traidores ao Corão: assim, o objectivo deixou de ser a salvação do mundo islâmico da corrupção ocidental, e o próprio movimento debilitou-se. Curiosamente, é precisamente aí quando uma outra Palavra, a dos ideólogos neoconservadores estadounidenses, fez nascer “Al-Qaeda”).

Em resumo: a expressão “O fundamentalismo lusista” nega a existência do lusismo fora da prática fanática fundamentalista. Por essência, o lusismo é representado apenas como um tipo de fanatismo agressivo. Como no caso anterior, diz-se sem dizer que ser lusista é apenas das manifestações de praticar o Fundamentalismo.

5.

Mas, o que acontece com a determinação do referente? Que universo de sujeitos pode constituir, no mundo real, aquele pressuposto em “O fundamentalismo lusista”? Quer dizer: que facção possível dentro do Fundamentalismo, como categoria superior, é do tipo ‘lusista’?

Consideremos, primeiro, a evidência de que existem na Galiza numerosas pessoas que, de alguma maneira ou outra, se identificam, ou identificam outras, com o ‘lusismo’ ou como ‘lusistas’. Não é a minha intenção caracterizar aqui o lusismo: a identificação ou auto-identificação pode ter a base da prática linguística (padrão escrito e/ou oral português), da aproximação cultural e linguística a Portugal ou ao resto do mundo lusófono em geral, das duas cousas, ou de outros elementos. O facto é que esta identificação de pessoas com o ‘lusismo’ existe, em clara oposição ao ‘isolacionismo’, e, às vezes, ao ‘reintegracionismo’.

A experiência é um poderoso recurso que qualquer humano tem para entender os signos. Portanto, se uma pessoa se auto-identifica como lusista, ou identifica outras como lusistas, ou entende que ela própria ou outras possam ser identificadas desde fora como “lusistas” (embora ela mesma se defina, por exemplo, como “reintegracionista”), e se ao mesmo tempo não acha por qualquer parte essas práticas próprias ou alheias “fundamentalistas” dentro do lusismo, ou mesmo se, na sua própria percepção, considera que a etiqueta “fundamentalista” só poderia ser aplicada, por metaforização, a certas palavras ou textos de toda uma história de lusismo neste país, então talvez esta pessoa só possa interpretar a expressão “O fundamentalismo lusista” como uma tentativa de Propaganda manipuladora (discurso desenhado para impedir pensar), e até como uma tentativa de insulto a todo um colectivo.

Além, igual que com “O terrorismo islamista”, esta propaganda tem a intenção de polarizar (“nós” frente a “eles”), numa visão dicotómica do mundo que só contribui para a manutenção da tensão. Por definição, a propaganda simplifica e generaliza as identidades “própria” e “alheia” para causar polarização e conflito. E amiúde, os sujeitos-alvo da propaganda política (os muçulmanos, por exemplo) sentem-se insultados não porque acreditem que os propagandistas cristãos tenham poder real para insultá-los, mas porque os cristãos, a procurarem inocular uma representação errada do mundo, estão a manifestar uma flagrante arrogância. Da mesma maneira, classificar todo o colectivo do “lusismo” como “fundamentalista” é sintoma de arrogância polo que tem de tentativa de imposição de uma dada representação do mundo.

Com efeito, para aqueles galegos que carecem de experiência mais directa com pessoas lusógrafas ou que defendem a unidade linguística, a manipuladora expressão convida a conceber toda a prática lusógrafa (‘escrever em português na Galiza’) como “fundamentalista”. A manipulação retórica consiste na construção de uma pretensa realidade, cuja existência é, precisamente, a que está em questão, mas que não se explica nem explicita a meio do debate. (Como também acontece com o ubíquo lema, sempre inexplicado, do que constitui “O terrorismo islamista”, de quem são esses terroristas, onde estão, e como agem: na campanha contra o financiamento ilegal do “terrorismo islamista” em Espanha depois da tragédia de 11 de Março de 2004, os serviços policiais espanhóis só foram capazes de intervir uns 80 euros destinados a este financiamento).

Mas a manipulação propagandística de “O fundamentalismo lusista” não fica aí. Para muitos galegos, “lusista” é termo geral para o que outros chamam “reintegracionista”, quer dizer: ‘Tudo quanto não seja a visão da RAG do galego; os da AGAL; umas pessoas que escrevem raro e dizem -çom’. Para estes galegos, toda a prática da AGAL, do MDL, da AAG-P e de outras associações, colectivos e pessoas é o mesmo: é não-galego. Na Galiza, só existiria o “galego oficial” e o “lusismo”. Portanto, para estas pessoas é possível que o lema “O fundamentalismo lusista” signifique simplesmente ‘Todos quantos não concordarem com a norma actual para o galego, isto é, desde os que escrevem cousas raras como -çom até os que escrevem em português padrão, são uma minoria fundamentalista, fanática e agressiva’.

Por isso, não andarei descaminhado se digo que o lema “O fundamentalismo lusista” encaixa perfeitamente, por exemplo, com a associação que a propaganda mediática e política faz entre o reintegracionismo e a violência (pseudo)-política que esporadicamente experimenta este país (a não policial, refiro-me). Porque todos sabemos que os que cometem esses actos violentos são “lusistas”. Nesse sentido, o lema “O fundamentalismo lusista”, por associação de significados, inclusive reforça o papel da propaganda de Estado sobre as íntimas ligações entre reintegracionismo (=”lusismo”) e “terrorismo separatista” na Galiza: é fundamentalista, fanático, dogmático, e esconde-se nas covas de Tora Bora dos locais sociais, das organizações minúsculas e sectárias, das publicações minoritárias, dos actos culturais desérticos, da palavra arcana. O “fundamentalismo lusista” tem os seus líderes clandestinos, organizados numa detalhada hierarquia militar, e cada vez mais massas ignorantes são educadas nesse fanatismo nos campos de treinamento consentidos dos foros do PGL ou de Vieiros, o novo Afeganistão.

6.

Em conclusão, estes são só alguns dos significados ideológicos da expressão “O fundamentalismo lusista”. No fundo e na forma, a expressão, se utilizada num texto público, é um ataque directo ao projecto reintegracionista de unidade da língua da Galiza, Portugal, o Brasil e outros países. A expressão é um ataque não só aos “lusistas” (sejam estes quem forem), mas ao pensamento e ao debate sério sobre a unidade linguística. É um ataque ao que representa ou deveria representar, por exemplo, este Portal Galego da Língua. Dificilmente uma expressão tal poderá ser nunca interpretada como um fragmento de diálogo sobre a questão da língua na Galiza.

Por fim, se se me permite uma metáfora inevitavelmente derivada do próprio contexto discursivo donde surge o ideologema que discuto, escrever “O fundamentalismo lusista” num contexto público formal é apenas uma explosiva manobra discursiva de fragmentação. É uma tentativa de fragmentação de um campo que, sem dúvida, manifesta dissensões internas, mas que também está unido socialmente por práticas e experiências comuns frente a outro campo social. Dizer “O fundamentalismo lusista” é uma tentativa de fragmentação de um campo social onde a gente se define de maneiras diversas, até variáveis, raramente imanentes, e onde os significados das etiquetas fundantes “lusista” e “reintegracionista”, ou de “luso-reintegracionista” ou “lusógrafo”, continuam sujeitos a negociação após muitos anos. O uso da expressão, a tentativa de fazer existir uma indefinida realidade tal na sociedade galega, é também uma tentativa de forçar o auto-posicionamento dentro do campo pretensamente representado (de “interpelação”, que diria Althusser), de divisão, de construção de minorias e facções dentro das minorias e facções: é uma tentativa de forçar a internalização de dicotomias classificatórias (“fundamentalista/não fundamentalista”, “lusista/não lusista”), num processo ad infinitum comparável em procedimento à exaustiva classificação que os discursos totalitários impõem sobre os sujeitos inferiores (a detalhada racialização da população no nazismo, por exemplo).

Evidentemente, não é desejo meu que tudo isto seja assim: nenhuma pessoa interessada em compreender a situação da língua na Galiza deveria utilizar nunca uma expressão como “O fundamentalismo lusista” para argumentar qualquer cousa séria sobre o “lusismo” ou contra ele. Mas tudo o exposto é o que o meu (limitado) conhecimento dos recursos pragmáticos da língua me diz sobre como se constrói retoricamente a Propaganda e até o insulto.

Guerra Civil, Franquismo e língua

Publicado em Pensa Galiza • O texto faz parte dum comentário longo no Foro aberto do Portal Galego da Língua

Penso que há dous argumentos comummente aceites sobre as razões para a Galiza carecer na altura de elites galegófonas poderosas comparáveis às de outros países do Estado Espanhol: 1) A penetração “de acima para abaixo” do espanhol nas classes sociais galegas desde (agharra-te!) a Idade Média: aristocracia, burguesia, classes trabalhadoras (o processo é conhecido). E 2) os efeitos mais recentes da “repressão Franquista” sobre os usos públicos das línguas-não-Espanhol do estado.

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Um diálogo francamente real

Publicado em Novas da Galiza 44, 15 Julho – 15 Agosto 2006, p. 20

“Francamente vivimos mal”. “Pues realmente viviremos peor”
Da revista La Codorniz, nalgum momento dos 1970’s

-Não entendo por que sempre criticas o Rey. Estás por uma República galega?

-Pola Monarquia espanhola não estou.

-Mas à gente não lhe importa o Rey.

-A mim, sim. Eu sou gente.

-A gente tem outros problemas.

-Com Franco também.

-A gente quer o Rey.

-Também queria a Franco.

-Mas o Rey foi votado num referendo.

-Num referendo de Franco.

-Franco era um militar.

-O Rey também.

-E Franco não fora eleito polo povo.

-O Rey tampouco.

-Como? A gente votou na Constitución.

-E, antes, nas Leyes Fundamentales.

-Franco era Chefe de Estado vitalício!

-O Rey também.

-E Franco impôs o seu sucessor.

-O Rey também.

-Com Franco, todos os partidos eram ilegais.

-Com o Rey, alguns.

-E que me dizes da Ley de Represión de la Masonería y del Comunismo?

-E que me dizes da Ley de Partidos?

-Com Franco não havia autonomia.

-Com o Rey não há autodeterminação.

-Antes todos eram separatistas.

-Agora todos são terroristas.

-E a Unidad de la Patria? E os desfiles das Fuerzas Armadas?

-Pois isso, pois isso.

-E o Alzamiento?

-E a Transición?

-E o Día de la Raza franquista?

-E o Día de la Hispanidad monárquico?

-E o 18 de Julio?

-E o Día de la Constitución?

-E o discursinho de Franco em fim de ano?

-E o discursinho do Rey no Natal?

-Durante o Franquismo a emigração galega era terrível.

-Durante a Monarquia, também.

-No Franquismo, usar o galego não era um direito.

-Na Monarquia, saber o espanhol é um dever.

-Mas antes a língua própria estava reprimida!

-Agora, a escrita própria também.

-Já avonda!: De Franco não se podia falar livremente.

-Do Rey tampouco.

-Ias ao Julgado. Ao Tribunal de Orden Público.

-Agora também. À Audiencia Nacional.

-Então! Vás me dizer que são iguais??

-E tu, que são distintos?

-O de Franco era uma ditadura!

-Pois isso.

-Francamente, não te entendo…

-Eu realmente a ti sim.

O Paradoxo de Grande-Marlaska

Publicado em Vieiros

Os paradoxos lógicos, semânticos ou pragmáticos (linguísticos em geral) têm grande tradição em filosofia da linguagem e até na vida diária. São contradições contidas em expressões do tipo “Isto não é uma oração”, ou “Este enunciado não é verdade”. De meninho brincávamos ao jogo dos pronomes com trocas regueifeiras do tipo: “Eu sou eu, tu és tu, quem é mais parvo dos dous?” “Tu”. “Por isso, TU”, “Não, TU. TU és TU, EU sou EU”. Agora uma actuação do Juiz da Audiência Nacional de Espanha Fernando Grande-Marlaska dá pé a um novo paradoxo pragmático-jurídico, o Paradoxo da Ameaça, ou Paradoxo de Grande-Marlaska. Consiste em que, entre as imputações acrescentadas a líderes de Batasuna por “ameaça terrorista”, incluem-se as declarações de Joseba Permach de que um encarceramento dos líderes independentistas poderia acarretar um “bloqueio” ao chamado “processo de paz” em Euskadi.

No Paradoxo de Grande-Marlaska entra em jogo uma interpretação peculiar do que constitui uma ameaça. Se eu digo: “Vou-te matar”, isso é uma ameaça. Se eu digo “Se te topo pola rua, mato-te”, isso também é uma ameaça, porque tu não podes (nem tens qualquer obriga moral) evitar ser encontrado casualmente. Também é uma ameaça “Se continuas a vestir de laranja, mato-te”. Porém, se eu digo: “Se continuas a bater em mim para matar-me, mato-te eu”, isso não é uma ameaça: é uma advertência, que inclui uma condição. O meu interlocutor é responsável de cumprir ou não a condição, e eu, de cumprir ou não o acto negativo futuro. Também é uma advertência: “Se continuas a bater em mim para matar-me, os meus amigos vão matar-te, queira eu ou não”. Por fim, se eu digo: “Se continuas a caminhar polo abismo, vás matar-te”, isso é um aviso: eu não sou responsável de nada. No triplete ameaça-advertência-aviso, a questão crucial, portanto, é a da capacidade e a responsabilidade de cumprir os actos presentes e futuros: os meus e os teus. A violência de género, por exemplo, é um ciclo crescente de ameaças disfarçadas de pretensas advertências: “Matei-na, sim; já lhe advertira que não saísse com outro”.

No terreno político do Estado, a manipulação do sentido da “ameaça” não é nova. O Estado Espanhol e os meios de comunicação têm feito interpretações singulares de certos actos de fala políticos como ameaças. Em 1996, EL PAÍS intitulava uma notícia sobre um grande rebúmbio do momento desta ilógica maneira: “Anguita amenaza con pedir la república, el federalismo y la autodeterminación” (EL PAÍS, 15 Setembro 1996, p. 17). O contexto eram as declarações de Julio Anguita, então Secretário Geral do PCE e de Izquierda Unida, no sentido de que o seu grupo reclamaria a República para Espanha se a Constitución monárquica continuava a incumprir-se em termos de direitos básicos como a vivenda e o trabalho. Argumentava Anguita que a aceitação da monarquia fora uma concessão subordinada ao desenvolvimento (ainda hoje inexistente) destas políticas sociais de rango constitucional. Nesse contexto, a expressão “ameaçar com pedir” de EL PAÍS não é só manipuladora e absurda, mas risível. Isso significa que o Estado é tão débil e o ameaçante peticionário tão forte que, por exemplo, com só reclamar que Juan Carlos de Borbón marchasse a viver a um piso da Castellana como cidadão comum isto já se daria conseguido. Oxalá ameaçar consistisse nisso: Pola presente eu ameaço agora, como George Brassens nos dourados 1960: “Je déclare l’état de bonheur permanent”.

No Paradoxo de Grande-Marlaska, a peculiar visão do acto da “ameaça” reflecte-se na interpretação das palavras de Joseba Permach: Se os líderes independentistas são encarcerados, o chamado “processo de paz” em Euskadi poderia bloquear-se. Permach teria advertido contra as “interferências” do poder judicial a este processo. É curioso que estas palavras (que expressam uma possibilidade real, de sentido comum) contenham uma ameaça imputável judicialmente, e outras opiniões políticas não. Declarações semelhantes, que podem ser vistas no terreno da argumentação como tentativas de coacção política à “independência do poder judicial”, foram feitas por Conde-Pumpido, acho, quando instou os juízes a interpretarem a lei à luz do novo contexto político do Estado. Também são feitas a diário polo PP quando urge que o poder judicial não leve em conta o novo contexto político, o qual (dizem os que sabem) iria contra o próprio espírito da função judicial.

Mas o passado continua. Seguindo o Paradoxo da Ameaça de Grande-Marlaska, talvez o então vice-presidente Mariano Rajoy ameaçasse com bloquear o processo eleitoral na noite do 13 de Março de 2004, quando declarou por televisão sobre as manifestações contra as sedes do PP: “El Partido Popular ha denunciado estos hechos ante la Junta Electoral Central, que es la autoridad competente en garantizar la pureza del proceso electoral. Estamos esperando a que se tomen las medidas pertinentes que aseguren que el proceso electoral se pueda celebrar en el día de mañana en libertad y sin coacciones” . O conjuntivo é um modo verbal muito interessante. Eu interpretei a advertência como um anúncio eleitoral da rebeldia activa contra o governo espanhol (o facto é que, até então, meia Espanha nem estava informada das concentrações; depois da intervenção de Rajoy, muita mais gente saiu à rua); interpretei que esses factos poderiam chegar a ser uma escusa por parte do PP para deter temporariamente umas eleições perdidas. Precisamente por isso, refusei sair à rua a pedir explicações a um governo por outra parte alheio. Dias depois, Almodóvar declarou que essa noite o PP estivera a ponto de dar “um golpe de estado”; mais adiante retractou-se da sua intuição incomprovada. Do processo aberto polo PP contra Almodóvar pola sua pretensa acusação, nada se sabe.

Numa aplicação psicótica do Paradoxo de Grande-Marlaska, também 10 milhões de pessoas em Espanha teriam ameaçado o governo de Aznar quando clamavam que, se as tropas espanholas continuassem no Iraque, o terrorismo islamista poderia agir em Espanha, como fez. Por último, polo Paradoxo de Grande-Marlaska, pergunto-me se será ou não uma “ameaça para bloquear o processo de paz” a manifestação convocada no 10 de Junho pola Asociación de Víctimas del Terrorismo contra o diálogo de paz entre o Estado e a ETA. Será ameaça a Espanha a “realidade nacional” andaluza, mas não ameaça à Galiza a “Nación indivisible” espanhola? Em definitivo, desde as suas origens, a España monolítica apresenta-se a si própria como uma sociedade constantemente ameaçada, desde fora e, sobretudo, desde dentro: maçons, judeus, “moros”, “rojos”, operários, grevistas, “separatistas”, bascos, “terroristas”, comunistas, feministas, anarquistas, homossexuais, “afrancesados”, “lusistas”, ciganos, ateus, “islamistas”… You name it!, como se diz em espanhol. Será, pergunto eu, que essa perene sensação de ameaça às essências pátrias surge da falta de legitimidade histórica do Conjunto Booleano España?

Mas, enfim, por que algumas admonições sobre actos negativos futuros são ameaças e outras não? A natureza chave da ameaça reside na capacidade do ameaçador de fazer ou não o acto futuro. Portanto, é capaz Batasuna de cumprir a “ameaça” de “bloquear o processo de paz”? Para Grande-Marlaska, calculo, Permach ameaça porque ele ou o seu “contorno” são capazes de “bloquear o processo de paz” com actos de violência. Suponho que só isto tem em mente Grande-Marlaska, porque se “bloquear o processo de paz” significa não negociar politicamente, isso já o está a fazer o Estado Espanhol: a disposição visível por parte do executivo espanhol é negociar com ETA antes que com Batasuna; pode-se negociar com ETA, que é ilegal, mas não com Batasuna, que é ilegal. Se Grande-Marlaska já decidiu que Batasuna é ETA, o que não compreendo é que não encarcere os seus líderes de vez, porque qualquer opinião de Batasuna-ETA contra o Estado vai ser sempre um delito de ameaça terrorista: como o “delito de opinião” não existe em Espanha, haverá que chamá-lo “injúrias ao Rei” ou “ameaça terrorista”. Polo contrário, se Batasuna não é ETA, vaiam ou não à cadeia os líderes independentistas, não por isto haverá “bloqueio ao processo de paz”. A minha impressão é que, se ETA já decidiu deixar de matar, e o Estado já decidiu que ETA deixasse de matar, continuarão a negociar-se as condições da rendição militar, o último capítulo desta longa Guerra Civil Espanhola de 70 anos (os espanhóis amam as efemérides). Como a questão basca sempre foi tratada militarmente polo Estado, haverá mesa de partidos bascos também, mas não haverá nem reconhecimento do direito de autodeterminação, nem da “integridade territorial” de Euskal Herria, esses dous monstros que o espanholismo aduz sempre como as bases inamovíveis da estratégia do terror. Porque, afinal, trata-se de que as palavras dos manifestos e acordos do “processo” forneçam as escusas suficientes para ilusões a duas bandas. E já há passos nesse sentido: o comunicado da ETA do Março passado (Gara, 22 Março 2006, p. 3) repete a ambígua expressão “cidadãos [e cidadãs] bascos” como o agente principal do “processo”. Idos são, portanto, os tempos do nacionalismo étnico: todos sabemos que o cidadão é o sujeito político de um Estado. Mas, como o Estado basco não existe, quem serão para ETA esses “cidadãos bascos”? São “cidadãos bascos” os cidadãos de um inexistente estado basco? Ou os cidadãos dos estados espanhol e francês que são bascos? Eu intuo que o segundo, o qual implica um inconfessável reconhecimento por ETA do estatuto de cidadania dos bascos nos dous estados. Enfim, ETA saberá o que pensa dos seus “cidadãos bascos”, se é que pensa. Afinal, se tudo isto acaba em derrota da ETA sem direito de autodeterminação, terá-se demonstrado mais uma vez que ETA sempre foi uma cousa (um exército) e o independentismo basco outra.

Mas, voltando à responsabilidade nas ameaças, o Paradoxo de Grande-Marlaska consiste num estiramento vertical dos hilillos como de plastilina do sentido, pola zona onde “ameaça”, “advertência” e “aviso” mais se confundem. O Paradoxo de Grande-Marlaska, de inspiração preventiva, quer significar: “Para previr a violência, eu encarcero-te pola ameaça de dizeres que se te encarcerasse poderia haver violência”. O Paradoxo é paradoxal porque contém a impossibilidade da sua auto-comprovação, a impossibilidade de provar as relações entre a condição de advertência (“se somos encarcerados”) e os hipotéticos actos futuros de violência. Vejamos as possibilidades, supondo que o motivo alegado para o encarceramento de Permach fossem exclusivamente as suas palavras.

Primeiro, (1) suponhamos que Permach não fosse encarcerado polas suas palavras. Se depois (a) houver violência de ETA, esta não seria logicamente imputável às palavras de Permach, que condicionam o “bloqueio do processo” ao encarceramento. Contudo, temo que o PP argumentaria que apesar da cedência do Estado, a “ameaça” cumprira-se. E (b), se não houver violência da ETA, nunca se poderia demonstrar que as palavras de Permach foram uma ameaça incumprida. Contudo, temo que o PP argumentaria que o Estado cedera perante a “ameaça”. Conhecemos essa ladainha circular desse espanholismo.

Agora, (2) suponhamos que Permach sim que é encarcerado. Se nalguma altura depois (a) houver violência da ETA, alguns veriam uma relação causa-efeito. De qualquer modo, o Paradoxo de Grande-Marlaska seria a self-fullfilled prophecy, uma profecia auto-cumprida. Mas ficaria a dúvida razoável se a melhor maneira de previr o cumprimento duma “ameaça” é levar a cabo as condições para o seu cumprimento, sob uma interpretação particular das opiniões políticas como ameaças. Polo contrário, (b) se não houver violência da ETA, teria que admitir-se que não houvera antes qualquer ameaça nas palavras de Permach. E ele deveria ser excarcerado como imputado de uma ameaça inexistente. Mas, quando? Quando rompe internamente por ilógico o Paradoxo de Grande-Marlaska? Quando exactamente deixa uma ameaça incumprida de ser portanto uma ameaça?

Em resumo, na minha opinião, em nenhuma destas quatro soluções possíveis do Paradoxo de Grande-Marlaska, fundamentada no sofisma de que Batasuna é ETA, a identidade entre elas ficaria demonstrada fora de toda dúvida razoável. E a relação entre pretensa causa (“ameaça”) e efeito (“bloqueio do processo de paz”) ficaria também sem demonstrar. O problema é que, em política e nas ciências sociais, o tipo de relações a várias bandas entre palavras e actos é-che uma cousa muito rabuda de estabelecer. Uma cousa são as opiniões (como este texto), e outra os factos. A historiografia está cheia de “análises” que concebem estas relações como se falar e agir fosse comparável ao acto físico de atirar uma bola contra o chão e que ela rebote. Temos palavras e temos actos, coocorrentes ou em sequência; às vezes ambos procuram coaccionar aspectos da vida social; às vezes há ligações causais, às vezes não. E temos sangue ou não temos sangue, trágico sangue, bombas, disparos, cárceres e metralha, e muitas outras formas de violência. Sobretudo isso é o que temos ou não temos. A mim nunca uma palavra, nem as de um Rei, me feriu a pele.

Reflectir cuidadosamente sobre estas questões não só é um exercício de saúde: deveria ser um requerimento para juízes e políticos. Os meus alunos e alunas e mais eu debatemo-las nas aulas, sem acreditarmos na Verdade, e aprendemos como os humanos procuramos encarcerar-nos com a linguagem e sob a escusa da linguagem.

Da Nación à nació, e tiro porque me toca

Publicado em Vieiros

O discurso referido consiste em reproduzir literal ou indirectamente palavras emitidas ou escritas por outra pessoa ou pessoas. Nalguns dos seus tipos, a citação é introduzida com um dos verbos de dição, ou verba dicendi, do tipo dizer, comentar, perguntar, etc. A fórmula pactada entre o PSOE e CiU para o preâmbulo do novo estatuto catalão é um destes casos de discurso referido:

“El Parlamento de Cataluña, recogiendo el sentimiento y la voluntad de los ciudadanos, ha definido de manera ampliamente mayoritaria a Cataluña como nación. Esta realidad nacional tiene su traducción en el artículo 2 de la Constitución Española, que define a Cataluña como nacionalidad”.

A formulação contrasta com a aprovada polo parlamento catalão na proposta de Estatut, que incluía as expressões “La nació catalana…” e “Catalunya es una nació”. Vale a pena comentar brevemente as implicações e significados da nova fórmula pactada. Por que esta citação dos actos linguísticos do parlamento catalão?

O novo estatuto catalão deve ser aprovado agora polas Cortes espanholas, quer dizer, por “España”, não polo próprio sujeito catalão que redigira a primeira proposta. O acordo PSOE-CiU significa que “España”, como conjunto da cidadania do Estado, não se compromete com a auto-definição de Catalunha (conjunto da cidadania catalã) como nação. “España” só pode definir-se a si própria, como “Nación”, com maiúsculas (preâmbulo e artigo 2 da Constitución), e, como entidade indivisível, pode também definir os territórios que a compõem, como “nacionalidades y regiones” (dum ponto de vista social e histórico) ou “comunidades autónomas” (dum ponto de vista administrativo e jurídico). “España” sim que pode, porém, fazer constar (declarar) como se define uma parte da sua cidadania. Eis o sentido discursivo do acordo entre as partes.

Com efeito, a atribuição da definição de Catalunha como nação ao seu parlamento, não às cortes do reino, situa-se no polo “descrição” da dicotomia “descrição / definição”, como argumentou o governo espanhol. Por outras palavras: o preâmbulo descreve uma definição nacional. Reparemos que descreve também esta auto-definição de Catalunha como “real”, na expressão “Esta realidad nacional”.

Mas, o que acontece, por sua parte, com a caracterização nacional de “España” na Constitución Española? Talvez surpreenda saber que o vocábulo “Nación” só aparece duas vezes, e que o adjectivo “nacional” aparece apenas 5 vezes em 169 artigos: nas expressões “soberanía nacional” (art. 1.2, soberania que recai no “Pueblo Español”), “territorio nacional” (art. 19), “Patrimonio Nacional” (art. 132.3), “interés nacional” (art. 144) e “política económica nacional” (art. 148.13). Por sua parte, o adjectivo “estatal” aparece 13 vezes. Evidentemente, todos os usos de “nacionalidad” se referem ao estatuto jurídico dos cidadãos espanhóis, e “internacional” às relações entre o Estado Espanhol e outros estados. Por outras palavras: na Constitución Española, “nacional” parece ser sinónimo de “estatal”. A força jurídica de ser “Nación” deriva das competências auto-atribuídas ao Estado, não da palavra em si, nem na auto-definição.

Quanto ao jogo discursivo “descrição / definição” da “Nación Española”, também o preâmbulo da Constitución é descritivo, e também é um exemplo de discurso referido. O Título Preliminar começa, imediatamente antes do preâmbulo:

“DON JUAN CARLOS I, REY DE ESPAÑA,
A todos los que la presente vieren y entendieren, sabed:
Que las Cortes han aprobado y el Pueblo Español ratificado la siguiente Constitución.”

Quer dizer, o chefe do estado constata e faz saber que o parlamento e senado espanhóis aprovaram que “La Nación Española, deseando establecer la justicia, la libertad y la seguridad…”. Como no caso do Estatut, é o parlamento correspondente que define o país como uma nação, e o “povo” que o ratifica. A Constitución descreve estes factos.

Pragmaticamente (e argumentativamente) o procedimento para definir “España” como uma nação na Constitución é o que se chama uma pressuposição existencial: não se afirma que “España es una nación”, mas pressupõe-se (dá-se por certo) este facto “real” a meio do artigo definido “La”, que abre o que se chama uma expressão referencial definida. Quer dizer, “La Nación Española” faz-se existir no mundo real polo simples facto de mencioná-la como uma entidade singular identificável e distinta de outras. Da mesma maneira, na proposta inicial de Estatut, “Catalunya” faz-se existir como nação polo sua menção na expressão “La nació catalana…”. Este procedimento eliminado, de facto, era mais forte argumentativamente do que a definição ‘X é Z’ (‘Catalunya es una nació’), pois uma aseveração pode ser questionada explicitamente como verdadeira ou falsa. Finalmente, uma diferença entre Constitución e Estatut é que, no acordo PSOE-CiU, há uma exenção de responsabilidade, por parte de “España”, da definição da “realidad nacional” de Catalunha, tenha esta auto-definição a força veritativa que tiver (seja “verdadeira” ou “falsa”) e a força jurídica que eventualmente poderá ter.

Em conclusão, se o acordo PSOE-CiU prosperar, a diferença entre Estatut e Constitución não residirá na questão da descrição/definição nos respectivos preâmbulos, como às vezes se argumenta. Sim que o vocábulo “nació” desaparece do articulado, o qual parece coerente com a identificação “nación=estado” que se dá na Constitución, visto que, segundo a fórmula pactada, a única identificação possível do vocábulo catalão “nació” é o vocábulo espanhol “nacionalidad”. Contra o que declarou Zapatero, não parece, portanto, que esta “España” possa chegar a ser juridicamente uma “nación de naciones”, em espanhol, mas só uma “Nación de nacions/nacións/nazioak/etc.”, em todas as “lenguas españolas”: um Estado Nacional composto de “nacionalidades”. Cada cidadão poderá dizê-lo livremente na sua língua, mas a semântica política dominante é a da língua espanhola.

Em termos discursivos, o acordo PSOE-CiU sobre esta questão é uma solução inteligente. E em termos políticos, parlamentares e de propaganda pública (permito-me opinar), ainda mais: representa uma derrota do nominalismo efectista (aquele que só aspira a um “reconhecimento” abstracto da “realidade nacional” na língua doutrem), um reforçamento da forma unitária do estado monárquico (que impede a autodeterminação), e uma tentativa de caneio total a ERC. Nunca se deve infraestimar a inteligência de parte do nacionalismo espanhol. Talvez no novo Estatuto galego se pudesse obter a mesma fórmula fantasmal (e os três partidos parlamentares tão contentes, que o jogo continua), se não for porque não está comprovado que o PP seja inteligente. Como outras vezes, talvez a compensação da previsível derrota do PP no parlamento de “España” seja a sua vitória na Galiza, impedindo o acordo. Se for assim, neste jogo da oca, “Galicia” não chegará a ser ambiguamente “nación” (que, além, não se sabe se está em galego ou em espanhol), embora todos saibamos que em Panlíngua Trescientos Millones “a nación galega” só deveria ser sinónimo de “una nacionalidad administrativa de la España indivisible”. Mas é que, por não acatar, o PP nem acata a peculiar língua espanhola.

Hospital do Reino

Cheira a hospital. Nos arrabaldes da Espanha cheira a hospital sujo, barato, de corredores onde sobrevivem durante décadas os mesmos eivados. A luz dos hospitais de urgências é sempre cansa, mais amarela, incapaz de chegar até ao final do percorrido. As ruas da Espanha são os corredores deste hospital barato: vencidos prédios provisórios onde ardem de frio os refugiados. No último dia do ano cheira a esse formol usado dos hospitais de campanha, que são sempre os desta guerra. E os cirurgiãos percorrem rápido os corredores a amputarem velhas mãos que já não trabalham, a alimentarem com elas os distantes cemitérios, sempre distantes da terra onde nascera o corpo. Os uniformes dos cirurgiãos e os dos soldados, e os dos capatazes, e os dos catedráticos, e os dos financeiros, e os dos generais, são todos iguais sob a luz negra da pobreza. E os uniformes correm entre as salas de urgência deste hospital que é um reino em sombras. A luz da Espanha é um mito. Os eivados e idosos aguardam nas beirarruas da metrópole, e os soldados baixam das ambulâncias e amputam as mãos e a língua, como então, como sempre, como sempre que existe um antigo hospital de campanha que é um estado em ruínas. E os cirurgiãos botam os restos amputados no calabouço ou no fundo das usinas, dia e noite, noite sem dia nos camarotes de urgência. E os velhos pervagam polas ruas do hospital com a esmola de poucas moedas enrugadas, em irregulares batas sem lavar, e as mães solitárias prematuramente mirradas rebuscam no lixo urbano restos de órgãos para comerem na última noite do ano, como se acabasse o mundo entre as bombas que continuam a cair. Cheira a hospital em guerra, e é difícil afastar esta tenra náusea constante da consciência. De olhos estranhamente abertos polo sono, nos corredores deste hospital que é a Espanha procuramos com ânsia sempre os corpos familiares, os eivados nossos, a quem levarmos da mão fria respirando a sua pele que cheira a leite azedo até a uma tumba designada para deixarmos lugar a mais doentes, a mais velhos eivados, com uma miserável moeda do reino na algibeira da lenta bata sem lavar. E cada ano recomeça o ciclo, cada ano refornecem-se cárceres e obscuras usinas e hospitais do reino, tanta carne, tanta devoração oculta por proclamas. Cheira infinitamente a Espanha, a matadouro.

A rapidez do Discurso

Publicado em Vieiros

Em 48 horas, a Guardia Civil espanhola deteve dez membros da Assembleia da Mocidade Independentista vulnerando locais sociais de base, os detidos e detidas foram acusados de figuras estranhas, os jornais publicaram nomes e fotografias, as rádios arejaram análises e entrevistas, os políticos fizeram declarações das quais não se arrependerão, a web da AMI foi sequestrada pola Guardia Civil, outras foram obstaculizadas (como fechar o microfone a um orador; como faz a Radio Martí dos EUA interferindo as emissoras cubanas), a Internet e os correios electrónicos encheram-se de notícias, comunicados e protestos, houve concentrações, cartazes, panfletos, os dez detidos foram libertados provisoriamente, as rádios anunciaram-no sucintamente, e hoje é Quarta-Feira e continuam as nuvens. A rapidez do Discurso, que é também acção, ultrapassa a medida humana do tempo necessário para reflectir sobre os significados. Campanha político-policial-mediática, cortina de fumo diante do processo 18/98 do juiz Garzón, criminalização do nacionalismo, interferência nos processos de reforma estatutária, criação de fissuras no crescente soberanismo galego, em definitivo alti-baixos emocionais nesta versão distorcida da Política a que o Reino e ocidente nos têm habituados. Táctica deliberada, improvisação ou erro, já ninguém o sabe. Há tempo que o determinismo histórico morreu. Mas os factos e os efeitos estão aí, e não deveriam minimizar-se nem, muito menos, ridiculizar-se. Seria tentação qualificar a “Operación Castiñeira”, com Ñ espanhol, de absurdo fiasco. Se assim fizermos, estaríamos absorvendo (mais uma vez) o discurso hegemónico sobre a necessária Seriedade das forças da ordem: Olha aí, a polícia espanhola nem deter sabe, e são os salvadores juízes os que por fim situam as cousas no seu ponto, pois não há tais indícios de “terrorismo”, que alívio. Até Nós-UP se congratula da libertação dos detidos, como se esta libertação indicasse liberdade. Calculo que ré-encontrar companheiros é sempre gratificante, mas Madrid não é o único exílio. Esta ré-legitimação do sistema judicial espanhol pode ser calculada, pode não sê-lo. Em todo o caso, a arbitrariedade no disciplinamento foi sempre uma das características políticas do fascismo. Literalmente, do fascismo. Com Franco nunca se sabia quem podia ser detido ou não, nem por quê. Guantánamo não é apenas um reino remoto, mas uma ordem mental. O meu telemóvel pode estar em lista negra ou intervido, e eu sei por que facto trivial. O teu também. Não me preocupo grandemente, mas não estou habituado a dar as chaves das minhas gavetas a um estranho de uniforme. A imunidade do corpo, que é a nossa mente, onde reside a gloriosa Liberdade de Expressão, é já assunto do passado. E nós, a vê-las vir, porque os números eleitorais já nos cegam a necessária lucidez visionária. Sim, visionária (espero pacientemente os insultos), porque, chegados a este nível de cegueira, sermos visionários consiste simplesmente em vermos exactamente o que existe: uns empregados do Estado com passa-montanhas irrompem na sagrada propriedade privada a roubarem papéis, computadores e dinheiro. Levam dez pessoas para Madrid sem o seu consentimento. Acusam-nas de fazer cousas, em linguagens que os detidos talvez nem compreendam: a noção de “delito” remete para uma ordem total compartilhada, e assumir a noção pressupõe inscrever-se voluntariamente nessa ordem. Não se pode exigir que a mente do Reino entre na mente da AMI, é excessivo. Até os ultraliberais sabem intimamente isto, embora amiúde ajam como polícias. O que se pode exigir, sim, é que a arma do polícia não me mate, porque eu não pedi ingresso nesta guerra, neste tipo de guerra. Nem que a bomba de gasolina estoure no teu nariz, porque tu não pediste entrar neste tipo de guerra. Claro que somos também culpados, mas este tipo de guerra não se merece. Mas, que fazer, se o terror é semeado ocultamente, polos bispos, contra uma infância forçosa em cárceres educativos teocráticos. Que fazer se o terror adquire mais tarde a máscara de uma bomba de fósforo branco que monstruosamente abrasou corpos, de outra bomba que felizmente não cortou a carne, ou de um sequestro legal na manhã cinzenta de Compostela. Tudo é o mesmo terror, senhores polícias: não foram as vítimas quem inventaram as bombas. O Modelo foi criado por vós, e ainda vos funciona. Parabéns, tristes parabéns: bem sabedes que isto não é só um telefilme. Por isso, desde a distância do Discurso, eu creio compreender o que é um ataque físico de terror, deixar de respirar, e intuo que Maria A. nunca o perdoará. Porque ainda resta futuro, e exércitos de vários lados quererão forjar mais cicatrizes para medalhas. E a gente continuará a sofrer um excesso de abnegados funcionários da bala, heróis, salvapátrias. Saber isto não ajuda a compreender-nos politicamente, mas é quase o único que podemos constatar. Em toda lógica, daí à soberania da mente deveria restar pouco. Mas, alguém confia nesta frase?

Monarquia e racismo

Publicado em Novas da Galiza 36 (15 Nov. – 15 Dez. 2005), p. 15

Como pode uma pessoa chamar-se socialista ou simplesmente progressista e defender ou simplesmente aceitar a monarquia? Como pode alguém justificar com critérios democráticos que a máxima representação e poder de um Estado descansem sobre alguém que os obtém ou herda em virtude dos genes, da família, da classe social e do sexo? Digam os democratas, progressistas, socialistas e até comunistas todos que ainda há medo, sim, medo de falar, medo do exército (por exemplo), e compreenderei a sua posição. Mas não se justifiquem alegando que “o povo” apoia a aberração monárquica, porque, segundo isto, o “apoio do povo” também estaria por detrás do regime de Franco, do nazismo, de tantas aberrações como a clitorictomia, a amputação das mãos, a pena de morte, o escravismo, a invasão de Afeganistão, o massacre das Torres Gémeas, a lapidação das adúlteras e o encarceramento de homossexuais. E o próprio capitalismo.

A realidade é que a monarquia espanhola actual se sustenta em princípios literalmente racistas que não deveriam ter lugar em nenhuma sociedade chamada democrática. Quando a ciência genética quer destacar a essencial igualdade dos seres humanos, quando categorias como “raça” vão caindo nas fundas gavetas da história, numerosos territórios do mundo, entre eles a frágil amálgama chamada “Reino de España”, ainda conservam formas de estado intrinsecamente racistas, quer dizer, fundamentadas na diferença genética. Porque o racismo não consiste só na discriminação por razão das características morfológicas das pessoas: o racismo consiste na classificação social da gente por critérios genéticos. Como o sexismo, o racismo não é uma ideologia só discriminatória, mas é em primeiro lugar classificatória. Porém, a declinante categoria de “raça” é apenas o trivial resultado da concentração relativa de um conjunto de traços fisionómicos activados por vulgares genes que se transmitem na copulação. Porquê este ordinário acaso pôde chegar a ter algum papel na organização hierárquica da humanidade moderna, é algo que só surpreendidos historiadores da utopia futura poderão abordar.

A racialização das pessoas não é uniforme nas diversas sociedades. Nos EUA, por exemplo, é “negro” quem possui algo de “sangue” de escravos africanos, pois, em geral, os descendentes da união entre “brancos” européus e escravas africanas (o caso mais frequente, fruto de relações impostas ou de violações) ficavam com o grupo de escravos e eram socialmente “negros”. Consequência disto é a quase total correlação actual entre etnia afro-americana e classe baixa nos EUA. Em contraste, na Espanha colonizadora de América existia uma classificação escalar das “raças” em função das percentagens específicas de “sangue”: havia negros (com ambos progenitores “negros”), mulatos (um “negro”, outro “branco”), cuarterones (só um dos quatro avôs “negro”), indios, mestizos, etc. No regime nazista, por sua parte, demonstrava-se oficialmente “raça ária” com ter só os oito primeiros apelidos de origem germana. Parece que foi assim decidido por Hitler mesmo porque o seu noveno apelido era judeu. No nazismo, o “sangue judeu” limitava direitos ou condenava à morte, e o “sangue ário” concedia privilégios. E assim por diante.

Com efeito, nos sistemas políticos racistas, como o do “Reino de España”, a distribuição de “sangue” e genes limita direitos ou concede privilégios aos cidadãos: o racismo está inscrito na própria Constitución que impôs a monarquia. O facto é que a Coroa, quer dizer, a chefatura vitalícia do Estado e todos os poderes e privilégios que esta acarreta, se herda em virtude dos genes, e portanto a Monarquia vulnera frontalmente o princípio da igualdade perante a lei. O possível herdeiro (ou, já agora, a possível herdeira) deve ter “sangue” da gínea Borbón/Bourbon em Espanha, que, num dado momento, se fundiu, via Louis XIV Dieudonné de France, com genes da meia-irmã de Carlos II “el Hechizado” María Teresa de España, da rama Habsburg ou Áustria, descendente portanto de Philipp I von Habsburg “el Hermoso” e de Juana I de Aragón “la Loca”. Juan Carlos de Borbón, Felipe de Borbón e Leonor de Borbón y Ortiz são, portanto, descendentes directos dos Reyes Católicos, do Imperador Maximiliano I de Áustria e de Henri IV de Bourbon, entre outros. Vamos, como um sapateiro da Rua Real da Corunha ou uma limpadora da Rua Príncipe de Vigo.

Sabemos que na história dos Borbón e dos Habsburg houve grande endogamia, por mor de garantir o controlo dos domínios e a unidade do grupo genético que poderia herdá-los. Que na gínea Borbón actual haja mistura de genes e apelidos não empece a base racista da monarquia espanhola: É a presença de “sangue” Borbón que valida o privilégio (não “direito”!) à herança da Chefatura vitalícia do Estado, enquanto a presença de outro “sangue” (Ortiz, por exemplo) não invalida este privilégio.

Agora assistimos a uma ré-legitimação deste sistema anti-democrático por parte da partitocracia espanhola. Argumenta-se amiúde que a Monarquia deve continuar porque “o povo” assim o quer. Porém, na minha humilde opinião e experiência, o que a gente quer é simplesmente independência. O que quer é a auto-determinação e independência verdadeira, a da mente, a liberdade de união e desunião em todos os níveis sem figuras perenes de autoridade, a libertação do material, a liberdade de escolher representação se fizer falta, de auto-organização, de exercer formas de relação laboral sem exploração, a emancipação dessa prisão que é a desigualdade diária. A emancipação que no meu velho e estranho vocabulário é sinónimo de auto-gestão livre e colectiva.

E uma cousa parece certa: com Monarquia, emanada dum princípio discriminatório fundacional, nunca haverá tal independência da gente. Sem ela, já se verá. Mas é uma irresponsabilidade, até do independentismo galego, pensar que a forma de estado de “España” não deve ser uma prioridade política porque é assunto de outro “povo”. Isto seria não compreender a natureza da dominação política na Galiza. A Coroa garante constitucionalmente a unidade de “España”. Essa é a sua função primordial. E o exército é o seu braço armado. A pretensa “concessão” feita ao regime monárquico pola partitocracia espanhola há agora 30 anos já chegou longe demais. Sob o regime monárquico espanhol, um processo soberanista galego não tem qualquer hipótese de sucesso. Infelizmente, penso que só sem monarquia em “España” se poderiam abrir as portas à soberania dos súbditos (falo em tecidos sociais reais, não em “essências” étnicas também geneticistas) que agora constituem o que se chama a Galiza. Desde qualquer concepção da liberdade, interrogar publicamente e com intensidade o regime monárquico espanhol deveria ser uma prioridade.