O país da semi-língua

Publicado em A Nosa Terra 623, 26 Maio 1994, p. 28

Paul Éluard disse: há outros mundos, mas estão neste.

O nosso país é já dous países: um país com semi-língua e um país com língua própria. O país com semi-língua tem limites precisos, Norte e Sul, é como uma borda, como a membrana duma célula, como uma contínua periferia. Porém, o país com língua própria mora dentro do outro, e também fora, em zonas irregulares e cambiantes, em redes esporádicas que medram, constituindo territórios fugazes cada vez mais sólidos, sedimentando-se na consciência colectiva de falar. O país com semi-língua é reconhecível desde fora, tem marcas registadas, hinos e bandeiras, vistosos líderes registados, estabelece relações com outros mundos registados, limita. Porém, o país com língua própria não limita, é errante, não tem hinos, nem privilégios, e os seus poucos líderes são pobres líderes, líderes falsos que talvez desejariam só ser líderes registados do outro país, do país com semi-língua.

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A única moral linguística

Enviado a La Voz de Galicia e não publicado • Publicado em «Galicia Literaria», Suplemento Cultural de Diario 16 de Galicia, nº 123, 23 Janeiro 1993, p. II

Duvidei se contribuir uma vez mais a este longo debate para ouvidos desatentos: o que gira ao redor da «normalização» do idioma galego, e que o jornalista Carlos Luis Rodríguez toca de novo na sua coluna «Coma en Irlanda, coma en Irlanda», (La Voz de Galicia, 6-1-93, p. 9). Talvez seria mais assisado calar, e poupar-lhe algo de lenha molhada ao lume jornalístico. Mas esta vez a imodéstia também me atacou a mim, como interessado e estudioso da construção do «galego» como língua.

O artigo do Sr. Rodríguez adoece, paradoxalmente, do mesmo escoramento ideologizado que contêm os textos dos activistas em prol do galego. Quando o autor qualifica de «batalla inútil» as propostas normalizadoras das organizações de activismo linguístico, concebe o problema da fala na Galiza como uma luta entre «línguas». Quando os activistas deploram a falha duma planificação linguística decidida, ignoram assim mesmo a grande conquista já realizada polos detentores do poder político e do saber técnico: a invenção do «galego» e o seu firme controlo simbólico. Que mais se poderia esperar das elites políticas, é algo que segue a se me escapar.

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Tristes monolingues do poder

Escrito em Berkeley, EUA • Publicado em A Nosa Terra, e em Gaveta 4 [Revista da Faculdade de Humanidades da Universidade da Corunha], 1993, pp. 33-35

NOTA NA PUBLICAÇÃO EM GAVETA:

Estivem a ponto de dizer: «Este texto foi escrito em 1989 e publicado previamente em…», mas não seria certo. Um texto perigosamente semelhante ao que segue foi composto, com efeito, nesse ano cada vez mais remoto, desde o estrangeiro, e naufragou para comum esquecimento na ilha A Nosa Terra na singular data do 28 de Dezembro.

Todas as palavras daquele escrito coincidem basicamente com as de este, e exibem idêntica orde. Neste texto muda, isso si, a grafia, por aquilo de complicar as cousas, e por exercitar a saudável prática de nunca concordar de todo com um mesmo.

Mas nestes anos mudaram, sobretodo, várias cousas que alguns ainda proclamam valentemente não pertencerem já a «o próprio Texto»: a história do país, que amparo assi na ambigüidadade por preservar em cada um de nós um distinto referente imaginário; as nossas maneiras de falar ou não-falar, que às vezes me pergunto por que não poderão já duma vez ser o mesmo; o mapa do poder, ou dos poderes, desenhado a golpe de ditames e intercâmbios mentres dormíamos ou singelamente admirávamos de espaldas uma reticente primavera; a tinta da minha impressora fadigada (quase digo «máquina de escrever», pero logrei voltar a tempo a este tempo); e, talvez o menos importante, mudou a minha própria leitura limitada dos feitos e das cousas.

Este texto sai hoje aqui a pedimento suficientemente explícito da Redacção de Gaveta. Nunca comprendim de todo certas afeições polo vazio, pero muito me temo que as respeito.

Em Mil altiplanos: Capitalismo e esquizofrenia, 2, Deleuze e Guattari aventuram que «é na língua própria na que um é verdadeiramente bilingüe ou multilingüe». Não sei se isto é mero jogo de palavras, mas, pode-se falar da língua sem fazer jogos de palavras? Penso que os autores nos recordam que falar não é só pronunciar, senão ter vozes, identidades invocadas, posicionamentos e atributos locais, situados nos encontros sociais, e que acham na fala um entre vários vieiros de expressão, uma saída, uma manifestação ou uma fugida do heteroglóssico universo interno que tantas vezes, desnecessariamente, sentimos como trampa. Invocar estrategicamente uma das nossas identidades por meio da fala é o poder que temos e o jogo que nos caracteriza como actores sociais, já não como indivíduos senão como divíduos: como vozes.

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