O “bajón” das línguas

“Estaba yo en un pub [en Coruña] … Y de repente le digo [al chico]: ‘Ah, no sabía que eras el primo de Tal’. Y me dice: ‘Sim, sou o primo de Tal’. Y digo yo (‘¡Habla gallego!’). Y me dio un bajón…”.

Marta López, concursante do Gran Hermano espanhol, 2011.

     Essa tarde fresca de sábado convidei o meu amigo X. a tomar o cafezinho de sobremesa no meu andar no centro da cidade. Falámos, como outras vezes, de perspetivas de trabalho: A ele ofereciam-lhe possibilidades de melhora e traslado, mas não sabia se ir para Compostela, para Porto ou para São Paulo; eu queria fazer uma estadia de investigação fora; o meu colega G.F. da Universidade Eduardo Mondlane de Moçambique trabalhava no mesmo campo. Talvez aí.

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A crise da língua e um futuro possível

Publicado em Novas da Galiza 90, 15 de maio – 15 de junho de 2010, p. 20

Na crise sociolinguística atual da Galiza convergem desde há aproximadamente ano e meio vários processos: (1) A evidente perda de falantes e de usos do idioma, refletida, por exemplo nos dados mais recentes do Instituto Galego de Estatística; uma estimativa própria sugere que, a este ritmo, os usos do galego passariam a ser minoritários nuns três ou quatro anos. (2) A legislação regressiva em Política Linguística, com a supressão fulgurante das Galescolas, a eliminação da prova escrita obrigatória em galego para o acesso à função pública, a redução de ajudas à tradução e, de maneira singular, o chamado Decreto de Plurilingüismo no sistema educativo não universitário. E (3) um debate público sobre a língua no qual, apesar das aparências de resistência, se pode detectar a cedência do galeguismo perante as formulações minoritárias do españolismo, nomeadamente com a relevância crescente (mesmo para criticá-la) da fantasmagórica noção de “imposición del gallego”.

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Corrupção, consenso e política linguística

Publicado no Portal Galego da Língua • Em Vieiros

     Em textos anteriores (“Língua, Mercado e liberdade”, “O conflito linguístico só tem uma saída”, “Contra a utilização dos ‘direitos linguísticos'”, “Bilinguismo zumbi e crise sociolinguística”) tenho apontado que a história da política linguística na Galiza se deve examinar como a articulação de três dicotomias entrecruzadas: o âmbito público frente ao privado; a dimensão individual frente à coletiva; e os direitos frente aos deveres. Hoje, a máxima expressão desta dialética múltipla na crise sociolinguística é o conflito entre deveres públicos coletivos a respeito da língua e direitos privados individuais, por exemplo os “direitos” dos e das estudantes do nosso sistema educativo.

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O jogo institucional da língua

Em Xornal de Galicia • No Portal Galego da Língua • Em Diário Liberdade • Em A Zona Velha

«Agora ben, o galego xa non é o portugués, e iso ocorre dende finais da Idade Media. Calquera reintegracionismo é un forzamento da Historia, e como dicía Tony Negri calquera forzamento da realidade é terrorístico».

(Xosé Luis Méndez Ferrín, presidente da RAG, em entrevista no Xornal, 6/2/2010, edição digital)

     Nunca antes, com excepção da polémica de 1986 sobre o dever de conhecer o galego eliminado da Lei de Normalización Lingüística (LNL), foi tão claro o processo que dei em chamar por primeira vez, há agora 20 anos, a institucionalização do galego. Por institucionalização não quis nem quero dizer uma difusão “normalização”, mas a redução da língua a um objeto de tratamento jurídico, e o seu submetimento à dinâmica institucional, reflexo da política. Num contexto de verdadeira crise sociolinguística (crise de usos e de transmissão), o debate atual sobre as Bases para o decreto de plurilingüismo no ensino (em diante, Bases) manifesta transparentemente esta institucionalização totémica, com curiosas ramificações discursivas.

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Anxo Lorenzo, demite

Publicado em Vieiros • No Portal Galego da Língua

     Anxo Lorenzo, demite. O teu Decreto não vai ter o “consenso” que procuras, e que explicava a tua aceitação do cargo. Se demites ficarás bem contigo mesmo. Demonstrarás o fiasco em que te meteste, e sobretudo uma grande humanidade. Sabes que o novo Decreto não será o que precisa o galego.

     Sabe-lo por formação: nem tu nem alguns dos teus referentes académicos o permitiriam para Catalunha, por exemplo. Não essencializo as línguas: falo da lógica sociolinguística. Pensarás que o novo Decreto é um ponto intermédio, e até procurarás justificações pedagógicas. Mas, se páras a refletir uns instantes no meio do que imagino como uma densa agenda, aventuro que tu próprio poderias conceber uma situação e um futuro mais tranquilo, “normal” (essa normalidade de deixar de se preocupar de certas questões para investigar outras importantes) se a legislação estabelecesse simplesmente que “O galego ou português [ou português, sim: sou-che lusista] é a língua do sistema educativo da Galiza”, e que as regulações educativas caminhassem nessa direção.

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Consenso sem senso

Publicado no Xornal de Galicia, na edição em papel e na web

     Perante a atual crise da língua da Galiza, existem basicamente duas amplas posições para a mobilização social, articuladas em torno de plataformas e manifestos. Um bloco, com alguns matizes internos, chama a um novo “consenso” dos partidos hoje parlamentares, baseando-se no que de positivo para o galego pudesse ter (dizem) o quadro constitucional español e estatutário. Dentro deste campo, o manifesto Galego, Patrimonio da Humanidade reclama do Partido Popular um “retorno” a esse consenso, e chega a valorar positivamente a sua gestão sobre o galego de décadas anteriores. A plataforma ProLingua nasce com o mínimo denominador comum da defesa do cumprimento “íntegro” da Lei de Normalización Lingüística (LNL) de há 26 anos (a mesma que diz normalizar que também o español, afinal do ciclo de ensino obrigatório, se conheça na Galiza “en igualdade de condicións” que o galego, curiosa meta para uma lei de “normalização” da língua dominada) e do Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega, PXNLG (o mesmo que foi desenhado para cobrir os desejos apenas de “quem quiser viver em galego”). E a plataforma Queremos Galego também apela ao “consenso” e à “unanimidade” do PXNLG e da Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias,  e a uma política linguística “progresiva”.

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Sim, mas, que Pergunta prefere a Língua?

Publicado em Vieiros

O novo Secretário Geral de Política Linguística, Anxo Lorenzo, declarou em mais duma ocasião que “O principal problema [do Velho Decreto sobre o galego no ensino] é que non está apoiado por todas as forzas políticas” (Encontro Digital em La Voz de Galicia, 29 de maio de 2009), ou que “El bipartido aprobó un decreto sin el acuerdo del PP” (entrevista em EL PAÍS, 23 de maio de 2009).  Frente a outras opiniões de Lorenzo, esta parece uma avaliação transparentemente política, não técnica (sociolinguística), porque não se sustém numa interpretação das relações entre a conduta dum partido (o apoio do PP ao Velho Decreto esvaeceu-se no último minuto) e a posição (apoio ou apatia) que a massa social votante desse partido possa suster. Como sociolinguista, Lorenzo não poderá acreditar que o PP estava enganado a respeito da posição da sua massa social votante durante meses de gestação do Velho Decreto, nem, muito menos, que esta posição do eleitorado do PP mudasse coletiva e radicalmente num dia.

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A Grande Miragem circular

Publicado em Vieiros

Periodicamente, surgem à palestra pública das minorias que lêem, e que lêem sobre cultura, notícias em torno das afrentas ao “galego”. A pseudo-polémica social alimenta a incapacidade histórica colectiva de articular-se em verdadeira in-dependência (que é etimologicamente sinónimo de autonomia), se é que na realidade a Galiza como invento alguma vez a teve, e não foi, em troca, o germolo “espiritual” e social de España, desde o mito do patriótico Apóstolo até ao actual Regime das Autonomias, passando pola política galeguista de Fraga Iribarne ou polo filme Raza de Francisco Franco. Só este papel explica, por exemplo, que a Matriarca literária duma “nação oprimida” (Rosalia de Castro), a mesma que o galeguismo recuperou como símbolo nos anos 1960, se estudasse com toda naturalidade nos livros de texto oficiais da fascista “nação opressora”. So este papel explica que o mesmo dia dum Apóstolo Patrono de España seja o dia duma Pátria galega.

Desde polo menos os anos 1970, as hemerotecas e os arquivos sonoros e audiovisuais estão cheios de documentos de pessoas visíveis no mundo cultural galego que testemunham uma dupla trajectória de significados, aparentemente contraditória mas perfeitamente compatível: (1) por uma parte, o laio pola “perda” do galego e, polo tanto, os protestos contra as barbaridades jurídicas e políticas de España (leis recorridas ou impugnadas, declarações monstruosas, políticas linguísticas laminadoras); e por outra, (2) a confiança, porém, de que o caminho da “normalización lingüística” é o adequado, de que há signos positivos na literatura, nas artes, na cultura em geral, no ensino, até na empresa… A circular auto-justificação perante esta aparente contradição é fácil: Precisamente porque o caminho está bem traçado (discurso 2), dão-se os ataques de España (discurso 1); e precisamente porque os ataques se dão (discurso 1), devemos continuar no caminho bem traçado (discurso 2). E esta lógica absurda auto-alimenta-se, num eterno solipsismo característico da cultura galega desde tempo imemorial. Um parece estar a ler sempre os mesmos textos, as mesmas diatribes e protestos, as mesmas louvanças e proclamas, num contexto social invariável, imóvel e por isso terrivelmente pacífico. Assistimos, verdadeiramente, ao triunfo do ideal centralista da Galiza como uma Arcádia (espanhola mas galega, sem dúvida; até muito galega, como deve ser: espanholamente galega) onde nada de relevância social acontece (só lumes, vacas loucas, terramotos e piche) e, quando decerto acontece (como de Fevereiro a Julho de 1936), massacra-se exemplarmente com metralha, e pronto. A morte, não as letras: trata-se da morte.

Mas pouca gente parece parar a pensar que, se esta é a dinâmica do campo cultural galego excepto no breve parêntese prévio ao Massacre Galego também chamado Guerra Espanhola, e se colectivamente as elites não mudam de rumo, talvez seja porque algo está errado na concepção canónica do conflito nacional, “España contra Galiza”, que é a que o nacionalismo galego apresenta como mitologia explicativa final de todos os nossos males. Quando as próprias elites galegas geram tanto as políticas “em favor” do galego (um irrealizável, descabido, hipócrita e portanto unânime Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega, por exemplo) quanto os instrumentos “em contra” do galego (as nomeações conflituosas, as cedências, as políticas marginadoras de parte do campo cultural galego), talvez a explicação mágica seja que, além das suas vontades políticas sustidas por um imaginário ideológico herdeiro do pretenso galeguismo de resistência durante o Franquismo, na verdade o seu papel estrutural não seja outro do que a definitiva construção nacional de España (sim, com Eñe, com esse profundo eñe subsidiado no que pensam sempre os políticos e as editoras). Evidentemente, estas elites não estão a construir a España de Pelayo ou de José Antonio, mas a España galega originada no mito do Apóstolo biface e mantida ano após ano nos Dias da Pátria onde se proclama com toda a impunidade a necessidade do uso do galego enfrente dum arcebispo, da representação do Reino de España e dos seus exércitos.

Porque, não nos enganemos, as três forças políticas parlamentares na Galiza na altura são herdeiras do galeguismo da pós-guerra. O abano ideológico do galeguismo da pós-guerra era amplo, e está todo representado, com contadas excepções, em sectores dos seus sucessores naturais do BNG, o PSdeG-PSOE, e o PP de Galicia. Não há qualquer cousa de extraordinário nisto, porque, por definição, a perpetuação no poder acarreta a exclusão sistemática –até por vias dum regulamento eleitoral aberrante desde qualquer concepção democrática racional– dos rivais potenciais, isto é (por exemplo), do in-dependentismo no seu sentido mais frontal: o da auto-nomia na gestão (quer dizer, a auto-gestão) dos recursos económicos, culturais e simbólicos, na organização social e territorial, no estabelecimento dum quadro de relações laborais emancipador, na implementação, simplesmente, da liberdade social na medida em que esta pode ter lugar dentro dum Estado.

O que pode gerar quanto à língua, portanto, uma classe de elite galeguista que continua sem ver o seu papel na construção final de España? Mais do mesmo. O que se pode esperar de uma classe política que é capaz de impor legislação progressiva em matéria urbanística ou de direitos das mulheres mas refusa entrar nos salões de aula “concertados” onde professorado e estudantes urbanos escacham a rir do “galego” enquanto os curas e monjas destas madrassas recebem mensalmente os seus quartinhos da Xunta pagos por nós? O que se pode esperar dum governo público que, por enquanto, ainda hoje, numa cultura amplamente subsidiada, continua a negar com toda a impunidade uns miseráveis euros a modestas publicações e grupos culturais activistas por mor dos “ç” ou dos “ão”, como se estas letras fossem as inimigas da Patria (sem acento), como aconteceu à revista Novas da Galiza? Pode-se esperar, singelamente, mais do mesmo: um incessante e cansativo tira-puxa dialéctico, uma perda geral de energias na ilusão de diálogo, uma constante reavaliação da “correlação de forças” entre um e outro campos linguísticos, e, em resumo, uma perpetuação da Grande Miragem da língua, enquanto cada decreto da Xunta continua a levar a assinatura de Juan Carlos I de Borbón e o arcebispo católico de España dialoga ritualmente com a Presidenta do Parlamento galego e não se encontra um livro português de cultura geral nas bibliotecas. O que se pode esperar, em definitivo, da política linguística dum pedaço do governo español (porque a Xunta é España) que em 30 anos, com todo o aparelho mediático e institucional, com todo o dinheiro e todos os subsídios, foi incapaz (se é que o procurava) de ensinar até a ortografia española do galego nas escolas, isto é, a mesma lógica ortográfica da língua socialmente dominante?

Não sei o que se pode esperar, mas sei o que não se pode esperar: Nunca uma instituição espanhola vai normalizar Galiza como Galiza. Normalizará Galiza como “España” exclusivamente e exclusoramente, até ao ponto de que antes ou depois Galiza deixará de ser Galiza em galego, se continua esperando a salvação das instituições espanholas. Não o disse eu (eu quase nunca digo nada novo: apenas observo e documento o que leio). Disse-o António Gil Hernández em 1991, por exemplo. E já choveu. E continuará a chover sobre esta formosa e vacacional Arcádia, tangallegacomoelmarisco.

Último texto sobre a Língua

Publicado no Portal Galego da Língua • Em Vieiros

Levo algum tempo procurando imaginar o meu último texto sobre a língua (não jogarei com o sentido do título: simplesmente, “derradeiro” não é eufónico). Espero que esta seja a oportunidade. Peço desculpas por referir-me a mim próprio, mas é do que ignoro menos.

Durante anos, escrevi muitas palavras sobre a língua, às vezes sem saber exactamente porquê. Suponho que era arrogância, e uma ânsia infantil. Estou ciente de que nem todas as palavras eram minhas: tudo está já dito, em diferentes ordens e com diversas ênfases. Agora é imperativo resumi-lo, e, para as pessoas que quiserem, agir em consequência. Não citarei nenhum autor ou autora, em parte por preguiça, em parte por não deixar de citar outras pessoas. Que cada um(a) se reconheça no que digo, ou não.

A ideia elementar é que a Língua é sempre uma questão de classe, e que, enquanto houver classes, haverá sempre alguma questione della lingua. Que não se saiba isto é terrível sintoma da descerebralização maciça. E que outras intelectualidades noutros países não abordem a questão é responsabilidade delas. Mas, na Galiza, país existente e para muitas pessoas nação desejada, a responsabilidade das elites chegou longe demais. Penso que repeti muitas vezes que não há tempo. Não resta tempo histórico, sobretudo quando as elites distorcem as prioridades, demitindo até do seu trabalho pago. Por isso só resta a maior coerência possível. Lembremos, então, o Processo e os resultados actuais.

Durante trinta anos, o chamado isolacionismo demonstrou o seu fracasso até para construir a sua miragem de língua independente na Galiza. Atribuir vontade deliberada a todo o sector seria excessivo. Mas o resultado é que a sua glorificação das falas e do (inexistente) poder linguístico do “Pobo” deu como produto um fantasma, e muito, muito discurso auto-alimentado.Para alguns dentro do sector, este era precisamente o objectivo: espanholizar definitivamente a Galiza. Quanto aos outros, ou “picaram” na trapaça ou preferiram não querer saber o que se avizinhava, porque os corpos vão envelhecendo, envelhecendo, e, nalguma altura do trajecto, um descobre que não deve desaparecer da cena sem fazer ou dizer algo pola Pátria. Aqui e alhures, o sacerdócio sempre uniu mais do que a religião.

Por sua parte, um sector do único movimento linguístico-cultural galego actual, o chamado reintegracionismo (o isolacionismo já não é movimento), continua a arvorar também a diferença linguística como salvação. É um grave erro, porque acredita que a consciência comum sobre cada Língua se forma sobre a base de um par de formas ou sons particulares. Esta posição ignora que a Língua, no capitalismo, é um instrumento necessariamente totalizador. Ou há Língua, ou não há. E na Galiza não resta tempo para que continue sem havê-la. Alguns reintegracionistas continuam a querer fazer língua, mas frequentemente a fazê-la mal. A diferença entre esta posição e a “normalidade” linguística é que na “normalidade” é a Língua que faz e constitui os falantes, e sobretudo os escreventes. Poderemos rebelar-nos e demonstrar com as nossas práticas cada idiossincrasia falante ou escrevente, sim, mas isto pouco adianta: a Língua, como Solução Final, é um dispositivo de categoria social, não individual.

Até aqui, a superfície da diagnose. Serão argumentos brutais, mas não são novos. A questão, a verdadeira questione della lingua, é o que terá a ver tudo isto com a emancipação da gente. Porque só se se reconhecer um inegável esforço de muitas pessoas durante tantos anos por pretender fazer Língua e Cultura, haverá que lhe procurar a este esforço um sentido, enquadrável dentro de um projecto soberanista mais amplo. E o sentido de muitas acções para (pretensamente) construir Língua simplesmente não existe. Muitas são iniciativas esporádicas, recorrentes, e desligadas de qualquer concepção emancipatória. São miragens de auto-satisfação: sacerdócio série B. A imposição (imposição, sim: a Língua é sempre uma imposição) da Língua portuguesa na Galiza só tem sentido se se conceber como sintoma de uma poderosa resistência. Por exemplo: é incompatível proclamar defender a língua submetida (na versão que for) de um país submetido e, simultaneamente, ser monárquico. Ou “democrata”. Ou liberal. Isto é tão incompatível como combater o desflorestamento mas não o genocídio. Porque, em ambos casos, há uma distorção das noções de emancipação e soberania. Mas já vemos que o Discurso hegemónico sabe tornar essa incompatibilidade em necessidade, tornar os assuntos culturais em prioritários e os materiais em acessórios.

Durante séculos, a Galiza foi, tem sido, e é uma formação social mantida na maior das pobrezas, ignorâncias e decrepitudes. Como consequência (ou como causa), esse “Povo” que tantos glorificam manifestou e manifesta alguns dos valores mais retrógrados imagináveis. Calculo que outros “Povos” também são assim, mas não faço parte deles, e não é o meu papel assassiná-los: tenho direito é primeiramente de assassinar o “meu” próprio “Povo”, como ele, por definição, me assassina a mim.

A Galiza é uma formação social real composta por redes de relação, leis e trocas materiais. E, na sua maioria, aceitou passivamente por ignorância o ditame da Ciência Filológica Galega sobre a existência da “lingua galega”, como os ignorantes fundamentalistas aceitam, por exemplo, a mentira deliberada do criacionismo divino. (Outros ignorantes aceitamos outros dogmas, sim). O “Povo” aceitou isto, talvez, não só por inseminação ideológica, mas por inferioridade social e cultural, e por infantilismo. Depois de séculos de verdadeira castração mental (não é metáfora), uma grande parte da “Galiza” chegou a acreditar que os povos realmente machos devem ter Língua Própria, e que qualquer cousa distinta seria derrota.

A única alternativa soberanista racional é dar volta a tudo isto. Se queremos “normalidade”, não se pode deixar a língua nas mãos do “Povo”, e muito menos nas mãos e computadores das “suas” elites (incluo-me, como parte do privilégio). Para elites, já temos os exércitos. Foi Pessoa que sentenciou essa aberração de “A minha pátria é a língua portuguesa”, não é? Substituamos “portuguesa” por “galega”, ou “galego-portuguesa”, e a aberração é comparável. O Povo e as elites são as duas faces da Pátria, e esse é o problema. Cada Pátria imposta preexiste e é eterna: uma inescapável mácula mental. Mas a Língua é um instrumento material totalitário e contingente: a sua forma não conta, o que conta é o seu poder. Então, para que inventar uma forma nova da Língua? Por isso, e por muito mais, o Povo galego, e igualmente as suas elites, estão deslegitimados pola história para fazerem nada deliberadamente com a língua: que a falem, que a escrevam e que a leiam em todo momento, que a naturalizem para sempre expulsando de vez o verme mental de España, sim. Mas que não a altarizem como essência da Pátria, ou continuaremos perdidos.

A alternativa à Pátria é a soberania da gente e da mente. E isso acarreta deixar a língua em paz, e submeter-se a ela para esvaziá-la de sentido. O racional é submeter-se à língua que tocar, seja esta a que for. Má sorte (ou boa, ou indiferente) que a língua que tocou na Galiza tem sons e letras absurdos e se chama portuguesa! Podemos trocar-lhe o nome e fazer o exercício de submissão mais deglutível ou risível (as empresas conhecem bem o efeito placebo de trocar-lhe o nome a um mesmo produto para vender mais). Mas isso pouco adianta se esquecermos o objectivo da soberania da mente. Libertar-nos do estigma da língua para começarmos a pensar é prioritário. Só assim poderemos compreender intimamente que qualquer forma de miséria humana, por exemplo, é muito mais importante do que a manobra infantil de querermos impor um acento ou uma terminação sobre um conjunto de símbolos.

Para mim, já tudo está dito. Ocasionalmente, poderei ainda sentir ânsia de querer escrever sobre os últimos acontecimentos patéticos relativos à língua do país. Nos próximos meses, e até anos, haverá actos, e declarações, e políticas encaminhadas a alimentar a cortina de fumo da língua: Afinal, os profissionais da propaganda têm o seu trabalho que cumprir. Haverá pseudo-polémicas sobre um incontinente e falacioso “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”. Haverá liortas, e exclusões, e vitimizações, e vitimismos, e cleptocratismo, e miragens, e declarações altissonantes, e louvanças, panegíricos, martirologias, grosserias, e até alguns argumentos racionais. Haverá flagrantes ataques de España contra a língua portuguesa da Galiza. Por haver, até continuará a haver duros ataques tácticos de galegos espanhóis contra a “lingua galega” que eles próprios inventaram: dirão, de novo, que se está a asfixiar a liberdade de usar o espanhol. E então todos os sacerdotes de todas as cores sairão às palestras jungidos em defesa da única língua para eles possível, da “Lingua Galega”, sem pisar-se mutuamente as túnicas. E será o fim da “polémica”. Periodicamente, haverá também conversões linguísticas: haverá quem vê por fim a outra Luz normativa, a outra forma da Força (sobretudo a luz ciciante da Força Verdadeira, que é a vermelha), e brandi-la-á por primeira vez com esperança nas suas mãos, na sua fala, nas suas terminações, nos seus escritos. Em resumo, continuará a haver mares de palavras sobre a língua na Galiza. No entanto, o “Povo” sem inteirar-se. E os visitantes extraterrestres (“estrangeiros”) continuarão a admirar-se ou a rir de tanta energia para nada.

Para nada? Bom, eu não sei (como poderia saber?) se de tudo isto algum dia sairá por fim o catalizador social que acabe de vez com a besta e nos permita pensar. Suponho que sem a soberania mental e real da gente, sem a independência, será impossível. Independência quer dizer que cada pessoa e a gente vai fazer o que queira, e se associar livremente com quem queira, e tentar manipular a única Língua como queira. Independência significa que, no momento que houver qualquer forma de exploração, submissão, opressão, dominação, de qualquer pessoa ou grupo sobre outros, não haverá independência. Só na independência e na soberania da mente poderíamos combater a Língua noutros termos, desde outras atalaias de razão e de acção. No entanto, o racional e modesto é reconhecermos todas as formas que está a tomar a derrota, abraçarmos definitivamente a esmagadora realidade da língua talvez mal chamada portuguesa com todas as suas letras, e das falas nossas com todos os seus sentidos, e por fim (quem quiser) dedicar-se a tentar compreender em verdade a existência da miséria, da guerra, da doença e do assassínio: a existência do Capital.

Talvez este texto tenha comentários e críticas. Se houver, agradeço-os de antemão. Mas, contra o meu costume habitual, e lamentando-o, desculpem-me se eu não responder: não há tempo.

Encruzilhada da língua

Publicado em Vieiros

O movimento linguístico-cultural galego está na altura numa encruzilhada mais evidente do que jamais antes na nossa história sociolinguística. O movimento linguístico-cultural, que leva anos ultrapassando na prática (polas suas iniciativas, o seu dinamismo e o seu compromisso activo) a actividade institucional e pára-institucional que promove a fragmentação cultural da Galiza, debate-se entre uma lealdade a certa tradição essencialista e diferencialista, e a absoluta e inevitável submissão à lógica das Línguas Nacionais na sociedade ocidental, burocratizada, capitalista, de classes. Não há vias intermédias na recuperação da língua como veículo de coesão social, de reconhecimento identitário, e de chamado “avanço” material dentro da lógica do mercado de símbolos. Estejamos ou não estejamos na Europa, o português é que está na Europa, minoritário dentro do Estado Espanhol, mas dominante quantitativamente na Galiza. Sobejam mais argumentos, mais definições, mais filologizações do conflito sociolinguístico, mais apelações às essências. A nação constrói-se, as classes constroem-se, as percepções sobre a língua constroem-se, as práticas linguísticas, culturais e literárias constroem-se. As redes de elites constroem-se, e, sobretudo, ré-constroem-se. Estamos a entrar, definitivamente, numa nova geração da língua, onde é fundamental a renúncia aos mitos e às letras, porque o tempo joga dia a dia contra nós, contra todos e todas os que, por origem, adscrição, vontade ou trâmite profissional fazem e fazemos da língua objecto, via, motivo, instrumento de trabalho e de acção.

A encruzilhada em que se debate o movimento linguístico-cultural galego é singela de descrever: Ou é promovida, regularizada, oficializada e naturalizada uma visão e versão do português galego que recolha elementos de uma recente tradição que teve e ainda tem o seu lugar na nossa resistência (basicamente, a proposta actual representada pola Associaçom Galega da Língua), ou abraça-se com o inevitável temor do novo a unidade linguística internacional como a única maneira de construirmos Língua Nacional. E há fortes valores ligados com cada uma destas opções, valores em oposição que sempre jogaram um papel fundamental nos movimentos sociais galegos. A nação não é uma declaração de intenções, mas uma prática teimosa e insidiosa de classificar-nos. A nação é o conjunto de práticas onde se reproduzem as formas do domínio. E seria absolutamente ingénuo procurarmos construir Língua Nacional sem construirmos os protocolos da classificação que a Língua implica. Devemos estar, em todos os níveis, em igualdade de condições contra a Lengua Española e o que simboliza, e junto a outros países, nomeadamente o mais próximo a nós, Portugal. Devemos construir e manifestar a nossa identidade cultural a respeito de Portugal e do Brasil, não da Espanha. Porque na história das nações o “nós próprios” nunca existe: só existe a diferença. Mas só se pode fazer isto se é com as mesmas regras e instrumentos simbólicos de jogo que o nosso país paralelo, os mesmos procedimentos de inclusão e exclusão, de intelectualização (a tradição é a invenção dela mesma polas letras), de lenta cocção da cultura. O mesmo tipo de símbolos, de máquinas produtoras de metáforas, o mesmo tipo de rigor arcano da linguagem. Devemos renunciar ao populismo como método.

É evidente qual postura defendo eu: a renúncia decidida a construirmos uma língua “distinta” na Galiza só porque e para que seja “distinta”. É inútil e nocivo lutar contra a língua. Mas reconheço, sem dúvida, a legitimidade do diferencialismo representado hoje pola posição actual da AGAL e algumas associações de base. Eu sou sócio da AGAL, a única associação profissional da língua existente na Galiza, com mais de vinte anos de vicissitudes, como tudo quanto se move. Precisamente polo seu carácter, é a AGAL que representa a tábua de salvação para muitos dos que ainda praticam a norma linguística institucional na Galiza. E é dentro da AGAL que se deve fazer a reunião de sectores. Eu sou contra a proposta actual da AGAL a respeito da língua, mas é essa e não qualquer outra proposta a que quero contestar. Porque é essa a encruzilhada real do projecto emancipador do movimento linguístico-cultural galego: ou língua portuguesa, ou língua portuguesa com algumas diferenças. O resto das práticas linguísticas e culturais disgregadoras que se dão na altura já são posições. E, como posições (institucionais ou pára-institucionais), o seu papel dinamizador e mobilizador cultural está a extinguir-se.

Mas o regresso de sectores na altura institucionalistas é possível. Intuo que grande parte do movimento linguístico-cultural estaria disposta a renunciar à defesa retórica da noção de “lusofonia”, se isto fosse necessário para o regresso da lucidez política a uma parte considerável da intelectualidade agora institucionalista, prisioneira de um discurso que não pode controlar. Este é, portanto, um convite ao raciocínio: Quando estão em jogo a necessária lucidez política para a unidade, e a cultura do país polo que se diz trabalhar, nunca é tarde para abandonar voluntariamente uma íntima e inconfessada sensação de derrota.