Prólogo para o livro de Mário J. Herrero Valeiro No limiar do silêncio (poemas da estrangeirice)

Prólogo para o livro de Mário J. Herrero Valeiro No limiar do silêncio (poemas da estrangeirice),
VII Prémio de Poesia Espiral Maior, Espiral Maior, Corunha, 1999. Pp. 7-12

“E vi os mortos, como quando a figueira lança os seus figos verdes, entre as águas que estavam debaixo do firmamento, águas negras, e a lua como sangue, denso granizo e neves do espaço tenebroso. E as estrelas do céu e as águas que estavam por cima do firmamento caíram na terra, e eis que havia um grande terramoto, e rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, e foram abertos os livros. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Os homens e as mulheres caíam cegamente pela boca, e o sol tornou-se negro como um livro que se enrola, e todos os pequenos e grandes montes e ilhas se moveram dos seus lugares. Abalada de um grande vento, a luz terrível subia e girava, puxando violentamente mortos brancos que ficavam presos pelos deslumbrados e arrastados lábios ao céu que se tornou como um saco de silício. E os seres aniquilados beijavam essa colina, e em baixo o céu retirou-se, e fez separação, e estalavam as cúpulas vermelhas”.

Helberto Helder, A Máquina de Emaranhar Paisagens

Conheci uma parte de Mário J. Herrero Valeiro há vários anos, uma tarde em que entrou no meu escritório de servidor do Estado na Universidade da Corunha, agora feudo económico e político da Opus Dei, para falarmos da língua e a essência do poder. Rapidamente mencionei-lhe todas as poucas citações que conheço e falei-lhe tudo o pouco que creio saber: que a Língua sempre mata, que não somos inocentes. Por cortesia, Mário não me explicou que já conhecia todas essas profundas citações e que já sabia tudo isso. Então nos separava e ainda nos separa apenas a terrível geometria dos Estados: eu continuo a ser um fiel servidor das suas seitas, Mário quisera sê-lo.

Continue reading “Prólogo para o livro de Mário J. Herrero Valeiro No limiar do silêncio (poemas da estrangeirice)”

O galego-português e a lógica social da escrita

Publicado em La Voz de Galicia, 12 Outubro 1999, p. 16, dentro da fugaz série de artigos “Debate: A normativa do galego”

Quixera contribuir a este debate sobre, basicamente, as relações entre a fala e a escrita no nosso país. São reflexões gerais aplicáveis às sociedades alfabetizadas, que ilustro com o nosso caso.

Em primeiro lugar, eu penso que é necessário entender que o problema da língua escrita é pouco importante em comparança com sangrantes realidades como um nível de desemprego dos mais altos de Europa (um 40% entre as mulheres galegas), a desfeita económica e ecológica, ou a cleptocracia galopante. Mas a questão do controlo da língua não está desligada destes problemas, claro, e prova disto é que são os mesmos poderes os que, desde há já várias décadas, são parcialmente responsáveis tanto da desfeita económica quanto da provincialização crescente das culturas galegas, nas aras duma modernidade que só mostra o seu rosto mais cruel.

Continue reading “O galego-português e a lógica social da escrita”

O Corpo, a Língua e o Estado Nacional

Publicado em Çopyright 66, 7 Novembro 1998 • Em Non! – crítica & intervenção

Na sociedade ocidental actual os três objectos (língua, corpo, estado nacional) que fazem referência a três âmbitos fundamentais da pessoa (o simbólico, o fisiológico, o social) sujeitam-se a um jogo entrecruzado de analogias com as quais entendemos e construímos um âmbito por meio do outro. Os três (língua, corpo, estado) são espaços minuciosamente territorializados e articulados polo discurso. Os discursos quotidianos, com as suas visões fortemente enraizadas de “como são as cousas”, constroem as nações-estado em termos orgânicos, como seres vivos cujas partes devem coerir, a risco de ficarem mancados: como uma árvore a que se lhe não podem cortar pôlas, como um corpo que não deve perder membros ou fetos. As línguas são também concebidas como realidades orgânicas que nascem, crescem, vivem, reproduzem-se e morrem, e que são mesmo invadidas por colonos alheios (“impurezas”) que as infectam e até as fagocitam. Os vírus das línguas são os “estrangeirismos”, os vírus dos estados são os “terrorismos”, os terroristas dos corpos são os vírus. O inimigo duma língua é outra língua, o inimigo dum estado é outro estado, o inimigo do corpo masculino é o corpo feminino.

Continue reading “O Corpo, a Língua e o Estado Nacional”

A ausência de linguagem

Publicado em A Nosa Terra 840, 23 Julho 1998, p. 31 • Non! – crítica & intervenção [ligação não operativa]

Nunca se poderá destacar suficientemente a instrumentalidade da apropriação da língua e da palavra na sociedade capitalista para a dominação social. Embora os sociolinguistas não o saibam, a primeira divisão entre as gentes que estabelece o capitalismo não é entre aqueles que falam a Língua A e aqueles que falam as Línguas B ou C, mas entre aqueles poucos que possuem uma linguagem e aqueles muitos que simplesmente são utentes duma língua, ou duas, ou três. A complexidade das condutas diárias é reduzida por políticos e sociolinguistas a cifras de “falantes” que “escolhem” uma língua (ou “Língua”) ou outra, e é curioso constatar que esta “escolha” se constitui num visível signo científico dos grupos sociais, como se houver algo inerentemente transcendental em proferirmos sons para comprar pão na loja da esquina ou para comentarmos sobre os vizinhos. Os “povos”, assim, são dirimidos em grupos de “falantes”, e estes grupos são assignados a cifras visualizáveis. A territorialização da gente em populações sociolinguísticas emula outras territorializações sociais, como amostra dos complexos protocolos inerentes ao capitalismo para impedir a emancipação, isto é, o reconhecimento próprio e mútuo das pessoas como forças activas na essencial procura da utopia.

Continue reading “A ausência de linguagem”

Literatura Zonal

Publicado n’O Pica-folla, Maio 1998

Imagino que, duma vez mais, será a minha uma das poucas vozes discordantes a respeito de como se vê o idioma galego e a cultura feita na Galiza. Não me importa muito, estou afeito. Não me importa “ter razão” ou “estar errado”: o que me importa é como se vai impondo o silêncio sobre as mentes, e importa-me, ainda que for, apenas porque parte da minha nutrição perante a desídia quotidiana é duvidar da obviedade das cousas. Se esse libertador exercício de debate interno se nos nega, pouco nos resta já. Por isso, vencendo o crescente cepticismo que ameaça com descebralizar-me ainda mais, aceito o convite a contribuir para esta celebração, espero que crítica, do chamado “Dia das Letras Galegas” de 1998.

Continue reading “Literatura Zonal”

Exilados sem querê-lo

Publicado em Çopyright 24, 15 Dezembro 1996 • N’A Nosa Terra 761, 16 Janeiro 1997, p. 27

Por primeira vez na minha vida, olhando para a corunhesa rua São Andrés desde a janela da sala, tive a clara sensação de ser um exilado, um habitante dum país inexistente que desfaz a linha das fronteiras como uma enorme e suave língua geológica. Não me refiro a essa alienação que muitos sentimos às vezes por vivermos numa Galiza indistinta, rota, apenas suturada temporalmente pelos esforços pontuais duns poucos resistentes que sabem que morrerão no esquecimento: os marinheiros que trocam uma esmola de sardinhas por pneus queimados nas estradas, os poucos políticos que com constância percutem nos volumosos muros interiores das instituições espanholas, os insubmissos ou os desorientados que desde a Praça da Quintana de Compostela contemplam com nostálgica heroína nas veias o crescimento das Pátrias oficiais como grandes aves de artifício. Refiro-me a outra e confessadamente estranha sensação: a de ser um visitante temporal na Galiza chamada moderna, enquanto outro país sem bordas nem monarcas que também poderíamos chamar a Galiza, ou Portugal, ou longa língua de terra onde todos os Setembros vão morrer de idêntica maneira os sargaços, fica em parte oculto por uma névoa de séculos e em parte oculto pelo discurso dos mais fortes.

Continue reading “Exilados sem querê-lo”

Pátria e Língua, por última vez

Publicado com alterações sem solicitar em A Nosa Terra 736, 25 Julho 1996, p. 27

Toca-nos um novo 25 de Julho, uma nova celebração colectiva de identidade. Bom, sejamos claros: uma nova celebração minoritária de valores absolutos: Pátria, Língua, Identidade. Nunca poderei desbotar da minha pele a inquietude e náusea que me produz a palavra “pátria” (mais concretamente, Patria, sem acento), recitada dos catecismos fascistas espanhois durante miserentos anos de incultura. Porém, reconheço também que às vezes as Pátrias e outros construtos são úteis para distorsionarem tacticamente um sentir colectivo. Suponho que esta contradição entre a náusea e o fingido compromisso deverá viver comigo enquanto siga sendo necessário procurar formas efectivas de resistência. Mas, em que consistem, aqui e agora, estas formas efectivas de resistência?

Continue reading “Pátria e Língua, por última vez”

Corunha, a cidade sem língua

Enviado a A Nosa Terra; não publicado

Rodeada polo Passeio da Luz Universal do invito alcaide, que rompe a unidade histórica da terra com o oceano, a majestosa cidade da Corunha esconde entre as ruelas provisórias de Monte Alto, dos Castros, dos Malhos, um silêncio infinito. O que se conhece desde fora da Corunha é a epiderme assoalhada da praça imperial de Maria Pita, dos jardins onde os limpos passeantes traduzem o domingo em conversas sorridentes no idioma único que nos legou Espanha. Mas no interior dessa casca civil e luminosa, nos bairros decaídos do Orzã, apenas a uns passos da palavra, impõe-se o som escuro e rouco dos desamparados, aquele que não consiste em línguas mas em derrotados sonhos de poderem descer, nalgum momento da sua vida, às cândidas praias construídas com areias dum país que já não é nós mesmos. A Corunha é o epítome da glossolália, o falar em línguas em trance proletário para um deus que não nos atende. Percorrer a rua de Hércules, a encosta de Santo Tomás, as vielas de Trabajo, Libertad ou Progreso é um exercício de amargor. A língua pública dos cartazes, dos sinais, das precárias tendas de alimentos, revela-nos estarmos dentro de Espanha. Na beira-rua os rapazolos jogam com palavras de telefilme a construírem casas de cartão, a emularem os enormes enxames de chabolas onde se reproduzem em caló os ciganos, numa sorte de experimento de cultivo realizado pola supremacia branca.

Continue reading “Corunha, a cidade sem língua”

Abismos do discurso

Publicado em Çopyright 1, 18 Maio 1996

É mais fácil imaginarmos o discurso como uma tarefa cooperativa onde “nós” -uma colecção de sujeitos humanos desconexos- nos esforçamos pela harmonia. Mas o nosso próprio esforço revela a natureza muito distinta da fala. O discurso é um terreno movediço, uma área perigosa de projecções, onde nos mimetizamos em corpos animados que enactuam a biologia como enactuam a História. O pavoroso silêncio do não-dito e puramente imaginado esvoaça sobre as conversas, enquanto o silêncio do não-dito mas temporariamente compartido fornece apenas um débil e cambiante apoio para a assembleia de palavras e olhadas inconclusas.

Continue reading “Abismos do discurso”

O mercado linguístico e o futuro da escrita

Publicado em A Nosa Terra 712, 8 Fevereiro 1996, p. 26

O meu colega Xosé Ramón Freixeiro convida de novo a reflexionarmos sobre as relações entre fala e escrita no nosso país, isto é, sobre as opções gráficas para o idioma (“A voltas coa norma lingüística na procura dun necesario pulo normalizador”, A NOSA TERRA 706, pp. 26-27). Basicamente, Freixeiro propõe um acordo que elimine as pequenas diferenças entre as normas majoritárias nas instituições (as do Instituto da Lingua Galega-Real Academia Galega, ILG-RAG) e as chamadas “de mínimos”. Tomo-me a liberdade de recolher a oferta de Freixeiro para sugerir, de primeiras, que a sua proposta (que está já na mente de bastantes utentes da escrita do galego) não resolve os vários problemas de fundo. Quero explicar em que me baseio para pensar assim. Começo cada apartado com umas afirmações gerais sobre as relações entre fala e escrita nas sociedades alfabetizadas.

Continue reading “O mercado linguístico e o futuro da escrita”