Com as línguas cortadas

Publicado em Çopyright 10, 30 Julho 1996

UM

A realidade compõe-se de um número impreciso de mundos concêntricos de verdade e falsidade, todos eles cruzados por frechas de linguagem, o único material que nos resta para exprimirmos a complexidade e o assombro. Onde começarmos é sempre a tarefa mais inumana, quase impia, pois em articularmos um desses espaços de realidade por meio da linguagem ignoramos os outros. Isto é o que me acontece hoje, forçado a converter em território plano de palavras as multíplices dimensões dos signos do social. O quem sou, o quem me defende realmente detrás deste triste discurso, é talvez a questão acessória: o perigo é aceitarmos a estrita limitação do texto, a sua falácia, como se a razão de o texto não nos revelar a verdade fosse simplesmente uma carência nossa, não a carência imanente dos objectos.

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“Recrimíname un lusista”: Postura política e ortografia

Publicado em Galicia Literaria. Suplemento Cultural de Diario 16 de Galicia, 3 Julho 1993, p. IV

As palavras, como outros instrumentos de expressão do social (os símbolos, os hinos e mesmo os números), carregam-se involuntariamente com o seu uso de conteúdos imprevistos. Poucos usuários da linguagem são alheios aos deslocamentos semânticos que imbuem às palavras de atributos apenas inicialmente sugeridos. A reflexão vem a conto duma coluna de Isaac Díaz Pardo (La Voz de Galicia, 17/6/93) titulada «Recrimíname un lusista». O artigo é uma resposta a outro recente de Xavier Vilhar Trilho nas páginas de Diario 16 de Galicia sobre a decisão de Díaz Pardo de se apresentar nas listas do PSOE nas recentes eleições. Este terceiro texto meu tenciona, sem entrar no fundo de ambas colaborações, relacioná-las através da interpretação desse singelo titular: «Recrimíname un lusista».

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A ambiguidade

Escrito em Berkeley, EUA • Publicado em A Nosa Terra

Há pouco dizia-me uma amiga que os meus escritos eram ambíguos demais e, polo tanto, fascistas. Talvez isto seja porque a linguagem possui um defeito irresistível que é a nossa arma e a nossa perdição: confere um falso sentimento de certeza. Em realidade as palavras, supostas representações de conceitos, situam-se em pontos diversos dum imaginário espaço sem fronteiras. Mesmo é frequente que uma palavra ocupe mais dum lugar figurado simultaneamente. Mas um hábito nosso bipolar e maniqueu, que nos ajuda a dar-lhe sentido à irregularidade social, tende a assignar-lhes às palavras conteúdos absolutos, a afastá-las a um lado ou outro da conveniente mas arriscada dicotomia verdade/falsidade.

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