Final de sequestro: Sobre o “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”

Publicado no volume O País na Janela. Três anos de independência informativa: Novas da Galiza 2002-2005. Lugo: A Fenda Editora (2005), pp. 23-25

Já há anos que o vocábulo “normalización” da língua foi sequestrado por sectores do poder político e intelectual galego, com bons benefícios. Mas parece que com o Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega (PXNLG) a nau sequestrada da língua entra no seu trajecto terminal, pilotada por planificadores temerários. Nesta crítica do PXNLG foco-me apenas em duas questõezinhas, como veremos totalmente marginais: (1) os próprios objectivos do Plano; e (2) o seu próprio desenho geral. Qualquer centena de medidas que saírem de objectivos e desenhos deficientes só poderá produzir resultados deficientes. Ou, antes, muito úteis para o alvo de enterrar com palavrório o assunto da língua por décadas por vir.

Entre os objectivos do PXNLG figuram garantir os direitos de “quem quiser” a desenvolver a sua vida em galego, e o de promover a expansão do idioma em âmbitos e funções sociais. Dificilmente estes objectivos podem ser considerados “normalizadores”: o direito individual a viver em galego já está reconhecido na legislação de há mais de 20 anos (o Estatuto e a Lei de Normalización). E a expansão de certos (certos) usos do idioma já está recolhida nessa mesma legislação e sustentada na própria dinâmica do país. Naturalizar um idioma não é isso, mas fazê-lo imprescindível e habitual para todos os âmbitos de uso de toda a gente, ou da imensa maioria (não só dos que “queiram”). Em todo o caso, um Plano verdadeiramente “normalizador” deveria estar desenhado para garantir o direito dos cidadãos “que quiserem” a utilizarem também o espanhol. Polo contrário, o PXNLG parte da minoração efectiva do português galego, violando assim o ditado do próprio Estatuto que o institui (descabeçado) como “lingua propia” da Galiza.

Em segundo lugar, o PXNLG ignora importantes bases sociolinguísticas que explicam o funcionamento das línguas em qualquer sociedade de classes burocratizada moderna. O Plano segmenta os usos linguísticos sociais praticamente em Sectores “verticais” por Conselharias, sobre os quais a Xunta vai intervir com inúmeras medidas. Mas a gente real não fala por sectores verticais: fala e escreve consoante o que se chamam domínios de uso com características comuns. E distinguem-se comumente dous tipos de domínios principais: o coloquial-informal, e o institucional-formal. Quer dizer: os indivíduos relacionam-se ou entre eles, ou com representantes das instâncias formais e institucionais (como clientes, administrados, pacientes ou discentes).

No seu anti-sociolinguístico zelo tecnocrático, o PXNLG reúne aberrantemente por exemplo os âmbitos institucional do ensino e informais da família e das redes de amizade entre jovens, no Sector Educación, Familia e Mocidade. Um calculado subproduto deste desenho é minimizar a questão central a qualquer plano de normalização: a transmissão intergeracional da língua na família, e a sua consequente manutenção nas redes de amigos. Um desenho realmente comprometido com o idioma teria priorizado este campo, em torno do qual se articulariam os demais. Porém, a área Família só contempla 9 medidas, das quais apenas 3 são específicas à intervenção no próprio grupo familiar. Não surpreende então que os “pontos fortes” e “pontos débeis” (“puntos débiles”) da situação actual do idioma no seio da família (pp. 70 e 71) sejam uma réstia de inconsistências. Entre os “pontos fortes” conta-se, por exemplo, que “O galego aumentou considerablemente o seu prestixio social nos últimos 25 anos” (?), enquanto um dos “pontos débeis” é a “Escasa valoración da lingua galega no seo familiar en termos de identidade, de utilidade e de prestixio social”! Quer dizer: o galego tem mais prestígio social, mas as famílias (a gente) pensam que não. Uma lógica conclusão possível é que o galego tem grande prestígio social entre as pessoas solteiras e os eremitas. Além, a concepção da utilidade da transmissão da língua na família é puramente instrumental, como veículo vagamente identitário e/ou cultural, não como recurso económico para o avanço social. Assim, um dos objectivos é “sensibilizar” as famílias para os filhos se instalarem no galego e que assim “poidan acceder despois a outros idiomas”. De forma semelhante, o Sector “Sociedade” reúne também âmbitos de uso pertencentes ao domínio informal, e outros ao domínio formal.

Um comentário do rosário de medidas propostas levar-nos-ia muito longe. Algumas são tão peculiares que dariam para uma dessas mensagens de humor que circulam pola Internet. Tomemos como amostra esta, dirigida aos turistas: “Editar uns folletos cuns mínimos rudimentos da lingua galega (conversación) e da súa historia. E incorporalos á cadea de promoción turística”. Minha cunhada trouxe-me um dia da ilha de Curação uma camisola azul barata com frases em papiamentu, como Bon tardi, Bon bini ‘bem-vindo’, ou Mi ta stimabo ‘eu te amo’. Por isso o papiamentu é língua nacional.

Em resumo: a atomização “vertical” na concepção dos usos linguísticos, e a falta de priorização de Sectores e medidas pretensamente apropriadas fazem do PXNLG um produto confuso e irrealizável. Como em todos os projectos incontinentes, algumas medidas se cumprirão, outras não. Por exemplo, pode-se dar o caso de que se cumpra a medida final para a Proxección Exterior da Lingua, “Facer do ballet galego Rey de Viana un embaixador da lingua galega en todos os seus espectáculos” (sic), enquanto fiquem sem ser cumpridas as orientadas a impedir a perda intergeracional do idioma. A concepção directora do Plano é que o português galego não é nem pode ser língua nacional, mas um direito voluntário. De facto, em muitos aspectos o PXNLG é o mais antitético imaginável a um projecto de “normalização”.

Polo contrário, haveria que olhar para aquelas sociedades onde a língua cumpre com efeito as três funções básicas: recurso económico para o avanço social nas sociedades de classes, recurso comunicativo para a coesão social, e recurso simbólico para a identificação colectiva. Neste sentido, o modelo mais próximo para a Galiza é sem dúvida aquele onde a língua é normal, natural e nacional: Portugal. Não pareceria tão difícil mudar o chip, se não fosse porque o chip espanhol da elite galega é muito forte. Quando se sequestra uma nau durante muito tempo, depois todo mundo esquece aonde se dirigia inicialmente. Às vezes os aviões sequestrados sobrevoam países até que se lhes acaba o combustível e aterram em qualquer lugar remoto. Este Plano está desenhado para aterrar em qualquer lugar, esfarelado, e ficar nos hangares para sempre.

A única moral linguística

Enviado a La Voz de Galicia e não publicado • Publicado em «Galicia Literaria», Suplemento Cultural de Diario 16 de Galicia, nº 123, 23 Janeiro 1993, p. II

Duvidei se contribuir uma vez mais a este longo debate para ouvidos desatentos: o que gira ao redor da «normalização» do idioma galego, e que o jornalista Carlos Luis Rodríguez toca de novo na sua coluna «Coma en Irlanda, coma en Irlanda», (La Voz de Galicia, 6-1-93, p. 9). Talvez seria mais assisado calar, e poupar-lhe algo de lenha molhada ao lume jornalístico. Mas esta vez a imodéstia também me atacou a mim, como interessado e estudioso da construção do «galego» como língua.

O artigo do Sr. Rodríguez adoece, paradoxalmente, do mesmo escoramento ideologizado que contêm os textos dos activistas em prol do galego. Quando o autor qualifica de «batalla inútil» as propostas normalizadoras das organizações de activismo linguístico, concebe o problema da fala na Galiza como uma luta entre «línguas». Quando os activistas deploram a falha duma planificação linguística decidida, ignoram assim mesmo a grande conquista já realizada polos detentores do poder político e do saber técnico: a invenção do «galego» e o seu firme controlo simbólico. Que mais se poderia esperar das elites políticas, é algo que segue a se me escapar.

Continue reading “A única moral linguística”