Escrito em Berkeley, EUA • Publicado em A Nosa Terra
A minha geração nasceu do frio exílio das cidades. À noite baixávamos com fachos acesos por túneis improváveis, caminhávamos de espaldas à procura de sombras míticas descritas em tratados de luta, e ao sair críamos repartir o pão e a palavra dum combate que já mais havemos de ganhar. Por enquanto, esquecíamos na casa essa continuidade de pais que apesar das décadas se amavam, e, por vivermos sem lhe dar cara a um hábito que víamos alheio, no decurso da nossa ingenuidade perdemos a maneira de querer-nos. Durante anos cultivámos cegamente noites húmidas, beijos que sabiam cada vez mais a quotidiano pergaminho, essa inverniça tradição de saudar-nos em pares à entrada duma casa que inutilmente quigera reproduzir a nossa infância, e mesmo alguns cometemos a falta de crer-nos intemporais nos nossos filhos de cor imaginária. Agora, de novo em roupas de pouca consistência, com o peso de tantos manuscritos que fingimos, alheios no desesperado coração dum tráfico de dias, descemos como antes a figuradas tobeiras clandestinas onde o fumo desenha fantasmas que já nem sequer podemos reconhecer sem medo. Mas hoje não procuramos o Mito senão algum pretexto.
A minha geração é filha de palavras excessivas, duma prática de remota soidade, do método de amar-se infrutuosamente, e agora que o nosso universo vai ficando mudo vagamos por mares onde só os esqueletos de barcos familiares poderiam conferir sentido a este naufrágio. A nossa história é oceano duma só direcção. Polos telhados das nossas cidades asfixiadas eslui também em água um tempo de nos desconhecer, apesar de toda a intensidade que passou, com toda a insistência com a que remontávamos escadas de carinho, como se acima fôssemos encontrar uma privada êxtase e não este silêncio. Assim aprendeu a minha geração a negar o conteúdo absoluto das palavras, mas no intento não pudo deixar de sentir-se de todo sem raízes.
A minha geração e a gente da minha geração que pretende rivalizar contra as idades caminha marcada por ruelas de vinho derramado, às escuras como antes, sob a chuva como antes, circularmente condenada a utilizar o resto dos seus anos para compreender o quê fez, onde equivocou o gesto, por que agora escutam tão pouco as sombras que nos cercam. Alumiando insuficientes fachos que sem cessar tristes se molham, achegamo-nos a rostos inconstantes que cremos amistosos, só para sermos recebidos polo seu riso de pavura. Não temos outro recurso que o fracasso, outra saída que a nostalgia. Olhamos passar a história surpreendidos. E nas nossas alcovas agora abandonadas somente entra um vento lacerante que se arrasta, difícil de matar com o calor dum cigarro, com o alento dum vaso de genebra, com a última olhada para as colchas vazias onde às vezes, enganosamente, cremos detectar a concavidade quente deixada por um corpo.
A minha geração aprendeu a viajar também por dentro e, desde a lonjura certa que por vezes nos assola, a continuar em ausência habitando com outros as noites de procura compartida, a quentura duma conversa inconsistente, a irrealidade dos locais exageradamente povoados, o brilho afumegado nos olhos de alguém que por trás da fadiga da noite reflecte mais de trinta anos de derrota. A minha geração deixa esquecidas prendas e lugares, percorre passagens que lhe parecem inauditas, para admitir de imediato que éramos prosaicos, que não tinha sentido pretender sermos diferentes, que talvez já nos seja chegado o tempo de calar.
Por isso deixamos que os demais nos contemplem: uns, com estranheza de como pudemos existir; os mais velhos, sem poderem dar-nos a ajuda que eles não tiveram. A minha geração pertence a um ciclo de eras intermédias onde, ao cabo e demasiado tarde, havemos de compreender que nos tínhamos, dous a dous mas infinitamente, só a nós mesmos.