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«Agora ben, o galego xa non é o portugués, e iso ocorre dende finais da Idade Media. Calquera reintegracionismo é un forzamento da Historia, e como dicía Tony Negri calquera forzamento da realidade é terrorístico».
(Xosé Luis Méndez Ferrín, presidente da RAG, em entrevista no Xornal, 6/2/2010, edição digital)
Nunca antes, com excepção da polémica de 1986 sobre o dever de conhecer o galego eliminado da Lei de Normalización Lingüística (LNL), foi tão claro o processo que dei em chamar por primeira vez, há agora 20 anos, a institucionalização do galego. Por institucionalização não quis nem quero dizer uma difusão “normalização”, mas a redução da língua a um objeto de tratamento jurídico, e o seu submetimento à dinâmica institucional, reflexo da política. Num contexto de verdadeira crise sociolinguística (crise de usos e de transmissão), o debate atual sobre as Bases para o decreto de plurilingüismo no ensino (em diante, Bases) manifesta transparentemente esta institucionalização totémica, com curiosas ramificações discursivas.
Por uma parte, o rejeitamento geral ao texto das Bases em si parece grande: as posições da RAG e do Consello da Cultura Galega (CCG) questionam-no como tal documento. Mas, por outra, parece que Feijóo está a ganhar a batalha do enquadramento do “consenso”, vocábulo profusamente repetido nos textos também institucionais da RAG e do CCG. Isto é preocupante, pois reforça a ideia de que não havia “consenso” com o Decreto do bipartido ainda vigorado. E, por último, tanto o texto da R. A. Galega quanto o do C. C. Galego apoiam-se repetidamente no mesmo argumentário sobre a importância crucial de a aprendizagem do castelhano ficar bem garantida.
Tanta contradição não é tal, e não admira, pois lembremos o singular enquadramento legislativo deste debate: Trata-se de derrogar um Decreto de uso do 50% de galego no ensino que nunca se chegou a aplicar plenamente provando se era aberrante, no quadro duma Constitución Española que obriga a conhecer o espanhol, duma LNL profundamente preocupada com a aprendizagem do espanhol “em igualdade de condições” que o galego, e em referência a um Plan Xeral de Normalización (sic) da Lingua Galega que é apenas um “guia orientativo” (Anxo Lorenzo dixit) para garantir que, quem quiser, possa “vivir en galego”. É isto “normalización” (do galego), ou contemplamos sorridentes o sequestro do vocábulo? Não se vê tal preocupação, na legislação, pola capacitação social efetiva do conjunto da cidadania na chamada (e juridicamente declarada) “lingua propia”.
O debate, além, alimenta-se duma falsa aplicação da representatividade ao mundo do saber técnico e da política linguística. Nem a RAG nem o CCG são instituições representativas, como é em teoria um Parlamento. O seu respetivo grau de reconhecimento jurídico não evita que os procedimentos de seleção dos seus membros sejam, simplesmente, como os de qualquer outra entidade: por nomeações ou por propostas entre os seus membros. Por sinal do escoramento das suas posições, a RAG e o CCG apelam a um “consenso” em matéria de língua que nem no seu próprio seio aplicam, pois a visão de que o galego seja uma língua (um objeto estrutural, social e comunicativo) diferente do português nem é nem pode ser “oficial”. É oficial que a nossa língua é oficial, mas não que não seja a mesma que se fala alhures. Se a RAG e o CCG fossem representativos, reproduziria-se no seu seio o debate social sobre esta questão (como se faz, em maior ou menor medida, no mundo académico e inteletual, em instituições cívicas, no associacionismo de base e nos meios de comunicação).
O facto é que absolutamente nenhum membro de ambas entidades sustém publicamente a tese de que galego e português são a mesma língua (como fazem membros de entidades cívicas como a Mesa pola Normalización Lingüística, da Associaçom Galega da Língua, da Associação Cultural Pró-Academia Galega da Língua Portuguesa, de associações pedagógicas, das várias plataformas criadas recentemente, etc., etc.), e tal unanimidade não é casual, mas indica uma sujeição ao quadro jurídico de España que impõe a regionalização das “lenguas españolas”. O equivalente, no mundo das ciências, é que os proponentes da Teoria de Cordas tivessem colonizado unanimemente um Conselho de Física porque o governo dava esta teoria como a única verdadeira, e então que o governo desse essa teoria por verdadeira porque era unânime no Conselho de Física. Esta perversa retroalimentação chama-se o “efeito da teoria”, e está documentada, até com o fenómeno Al-Qaeda.
Fruto duma colonização semelhante da RAG e do CCG, os seus ditames respetivos incidem na tese da estrangeirização da língua própria. Aludem em ocasiões à possibilidade de “o portugués” ser ensinado dentro do Terço Estrangeiro, como língua “útil” mas “estranxeira”, renunciando assim, nas aras da lealdade institucional, a toda uma formação filológica que lhes ensinou a unidade da língua galego-portuguesa. Mas um setor “terrorista” da sociedade e da cultura, no que me incluo, não podemos admitir a consideração de uma variedade da língua própria como “estrangeira”, pois constitui um ataque contra outras variedades e incide numa falaciosa segmentação da língua que reduz o seu valor e o seu potencial de transmissão e de capacitação da cidadania. Ainda mais, por higiene, a etiquetagem de “estrangeira” deveria ser erradicada de quaisquer outras línguas do ensino, ou bem, por coerência, deveria ser aplicada a todas as que não são juridicamente a “lingua propia” (por exemplo, o español).
Mas a lógica do “consenso” é uma arma de dobre gume. Quando a forja do “consenso” galeguista (há anos chamou-se “concordia normativa”) requer a prévia aceptação acrítica do dogma da independência do galego como língua, então não se pode criticar que para o outro lado, o españolismo, o “consenso” requira a aceptação prévia do dogma do galego como “lengua (regional) española”, determinada juridicamente como tal, e portanto sempre subordinada ao castelhano. E nessas estamos, na mesma lógica do dogma: não a do diálogo razoável sobre a superação da crise sociolinguística e a lenta construção da hegemonia social do galego (por exemplo, por amável imersão linguística no ensino, como na Catalunha), mas a da exibição do poder institucional numa dinâmica que reduz a língua a objeto de troca e de percentagens. E –lamento ser de novo um advogado de ofício do diabo– por este caminho pode ganhar o tandem Feijóo-Lorenzo.
Poderá perder no relativo à manufatura precisa dumas Bases do Decreto ideologicamente rejeitáveis e tecnicamente lamentáveis, de verdadeira vergonha. Mas, em política, muito mais importante do que o efeito duma legislação que amiúde fica em águas de bacalhau é impor um enquadramento das questões que possibilite a perpetuação no poder ou a comodidade no cargo. Nem sempre se vota ou se ganha um cargo por tudo quanto se diz ou se deixa de dizer (por exemplo, por chamar ou deixar de chamar um setor cultural “terrorista”), mas por complexas afiliações simbólicas. Quisera errar, mas, ou os interlocutores legitimados neste jogo (entidades, “persoeiros” a quem convidam a palestrarem e a publicarem) dão uma valente viragem contra a regionalização do objeto Língua (na direção da unidade linguística galego-portuguesa), ou na Galiza temos língua real para dous telejornais e Feijóos e Lorenzos para mil primaveras mais.