Publicado em Çopyright 66, 7 Novembro 1998 • Em Non! – crítica & intervenção
Na sociedade ocidental actual os três objectos (língua, corpo, estado nacional) que fazem referência a três âmbitos fundamentais da pessoa (o simbólico, o fisiológico, o social) sujeitam-se a um jogo entrecruzado de analogias com as quais entendemos e construímos um âmbito por meio do outro. Os três (língua, corpo, estado) são espaços minuciosamente territorializados e articulados polo discurso. Os discursos quotidianos, com as suas visões fortemente enraizadas de “como são as cousas”, constroem as nações-estado em termos orgânicos, como seres vivos cujas partes devem coerir, a risco de ficarem mancados: como uma árvore a que se lhe não podem cortar pôlas, como um corpo que não deve perder membros ou fetos. As línguas são também concebidas como realidades orgânicas que nascem, crescem, vivem, reproduzem-se e morrem, e que são mesmo invadidas por colonos alheios (“impurezas”) que as infectam e até as fagocitam. Os vírus das línguas são os “estrangeirismos”, os vírus dos estados são os “terrorismos”, os terroristas dos corpos são os vírus. O inimigo duma língua é outra língua, o inimigo dum estado é outro estado, o inimigo do corpo masculino é o corpo feminino.
Perante as ameaças a estes espaços basilares do indivíduo ocidental, as elites dos estados produzem as técnicas de intervenção apropriadas para cada campo: polícias contra os terroristas, vacinas contra os vírus, leis linguísticas contra os barbarismos e irregularidades orgânicas da Língua, leis médicas contra os corpos das mulheres.
O discurso unificador destas realidades já se tornou sem dúvida em sentido comum instalado propagandisticamente desde os centros de produção ideológica, nomeadamente os mídia. Porém, a própria intenção unificadora deste discurso intertextual que tenta integrar realidades ontologicamente não homólogas (uma língua é um sistema cognitivo, um corpo é um organismo vivo, um estado nacional é uma estrutura institucional) acarreta contradições ideológicas que abrolham diferencialmente quando a unicidade dos objectos se põe em questão.
Por exemplo, o discurso das elites dos estados nacionais rejeita o exercício da autodeterminação política que poderia levar à independência dum povo, mas aceita com bons olhos a aparente autodeterminação das línguas. Mais especificamente, aceita-se programaticamente (e até se promove) a suposta autodeterminação linguística (o “galego”, o “valenciano”) na medida em que, dentro dum único Estado Nacional, fique uma só Língua que o simbolize. Assim, unidas pola razão máxima da Língua, pola sua força simbólica coesiva, e, sobretudo, polos mecanismos dum mercado unificado, as línguas periféricas podem e mesmo devem proliferar, como variantes sociais da Língua Única. É inegável que esta é a situação actual das línguas do Estado Espanhol, simples satélites simbólicos e comerciais da língua estatal, o espanhol.
O controlo do estado estende-se ao próprio corpo, nomeadamente ao corpo das mulheres e à sua capacidade reprodutiva. Aqui a autodeterminação do corpo, consistente especialmente no exercício do direito à reprodução e ao auto-usufruto, é também negada polos discursos ideológicos e impedida polas leis como uma ameaça à vida, que é propriedade do Estado. Por exemplo, o corpo colonizado da mulher é capaz de produzir mais colónias, isto é, fetos e meninhos. Para o Estado a possível perda deste rico recurso material justifica a imposição de medidas coercitivas e repressivas contra as mulheres que ousem autodeterminar-se abortando parte do seu próprio corpo. Toda nação-estado contempla sempre o crescimento racional (da Língua, das fronteiras, da riqueza económica, da população) como um positivo índice de progresso. O nascimento dum meninho como território-satélite perpetua a dependência colonial da mulher, pois é esta que investe mais esforço para tornar esse território em produtivo, rendível para o Estado aproveitar os seus recursos no futuro. A mulher que aborta é uma terrorista económica que atenta contra o corpo da nação.
Quanto ao controlo sobre o usufruto do corpo, o discurso sobre as “drogas” está intimamente unido à medicalização do social. Aqui também a autodeterminação dos corpos é negada: o Estado prescreve as drogas legais e declara ilegais quaisquer incursões não autorizadas no próprio corpo. As drogas são também vistas como veículos para outros inimigos paradigmáticos, os vírus. Amiúde, os vírus mais mortais entram com as drogas através de agudas agulhas no corpo social, e impõem uma sintaxe diversiva na ordem quotidiana. O disciplinamento das drogas (que, além, podem afectar o desenvolvimento dos fetos propriedade do Estado), é paralelo ao disciplinamento dos vírus com custosas drogas legítimas (o AZT para a SIDA, por exemplo).
Do mesmo jeito, a invasão dos estrangeirismos (“lusismos”, “anglicismos”) no corpo nacional da Língua é freada com a aplicação de remédios ortográficos, meticulosamente impostos sobre os textos heréticos polo farmacêutico linguístico de turno segundo prospectos de uso chamados Gramáticas Normativas. A intervenção chega até à purificação asséptica do corpo textual, e o disciplinamento chega até à expulsão dos dissidentes linguísticos fora das instituições educativas, como a expulsão dos independentistas para outras nações-estado, como a expulsão das mulheres para o Lavadoiro simbólico e real da sociedade.
A Nação, ente mental que nos rege e nos define, gera tanto os seus dispositivos defensores (as vacinas) quanto os seus próprios atacantes (os vírus). O terrorismo político é um produto viroso dos laboratórios militares da Nação para justificar a vacina dos GAL ou a cura homeopática por meio dos Espíritos de Ermua. A doença independentista, como a doença reintegracionista, é mantida artificialmente para justificar a função médica de polícias e normativizadores linguísticos. A mulher é inoculada periodicamente polo sémen ideológico do estado militar para que cure do vírus independentista da sua própria sexualidade. E as línguas são inoculadas com as necessárias doses de vacinas de estrangeirismos bons (“castelhanismos”) para que fagocitem os estrangeirismos maus (“lusismos”). Como o Estado Espanhol para Euskal Herria, o único estado nacional possível para a mulher é o Homem, o único estado nacional para o “galego” é o Espanhol.
O código genético é a sintaxe do corpo, o código penal é a sintaxe da nação. A Gramática e a Ortografia (cartografias normativas do corpo e da mente) tornam-se na expressão da Ordem Nacional sobre o físico, o social e o cognitivo. A sintaxe do Estado só permite uma oração principal (Espanha) e favorece muitas subordinadas (“Galicia”). A sintaxe da família só permite um Núcleo nominal, o homem. A mulher é sempre um adjectivo. Se cada corpo humano é um estado nacional, cada mulher que aborta orações subordinadas é uma terrorista, cada grafema lusista é um tumor político na Língua Nacional.
E o Rei (cuja denominação científica no prospecto gramatical galego é, significativamente, “El-Rei”), este Rei e todos, simboliza o monoglótico princípio masculino. El-Rei é o princípio activo da fórmula, os demais somos excipiente. A monarquia é a máxima encarnação da ordem militar, da ordem médica, da ordem familiar, da ordem de palavras: da Ordem Alfabética. Não esperemos que a letra Alfa, esse A derivado do pictograma duma masculina cabeça de touro, deixe de estar nunca à cabeça da ortografia nacional, deixe de ser nunca o cabeça de família. O começo do fim do Estado Nacional que levamos na cabeça é tatuar a história com graffiti, autodeterminar-nos com palavras proibidas e actos ilegais mas eticamente legítimos, esses que nunca produzem benefícios.