Da Nación à nació, e tiro porque me toca

Publicado em Vieiros

O discurso referido consiste em reproduzir literal ou indirectamente palavras emitidas ou escritas por outra pessoa ou pessoas. Nalguns dos seus tipos, a citação é introduzida com um dos verbos de dição, ou verba dicendi, do tipo dizer, comentar, perguntar, etc. A fórmula pactada entre o PSOE e CiU para o preâmbulo do novo estatuto catalão é um destes casos de discurso referido:

“El Parlamento de Cataluña, recogiendo el sentimiento y la voluntad de los ciudadanos, ha definido de manera ampliamente mayoritaria a Cataluña como nación. Esta realidad nacional tiene su traducción en el artículo 2 de la Constitución Española, que define a Cataluña como nacionalidad”.

A formulação contrasta com a aprovada polo parlamento catalão na proposta de Estatut, que incluía as expressões “La nació catalana…” e “Catalunya es una nació”. Vale a pena comentar brevemente as implicações e significados da nova fórmula pactada. Por que esta citação dos actos linguísticos do parlamento catalão?

O novo estatuto catalão deve ser aprovado agora polas Cortes espanholas, quer dizer, por “España”, não polo próprio sujeito catalão que redigira a primeira proposta. O acordo PSOE-CiU significa que “España”, como conjunto da cidadania do Estado, não se compromete com a auto-definição de Catalunha (conjunto da cidadania catalã) como nação. “España” só pode definir-se a si própria, como “Nación”, com maiúsculas (preâmbulo e artigo 2 da Constitución), e, como entidade indivisível, pode também definir os territórios que a compõem, como “nacionalidades y regiones” (dum ponto de vista social e histórico) ou “comunidades autónomas” (dum ponto de vista administrativo e jurídico). “España” sim que pode, porém, fazer constar (declarar) como se define uma parte da sua cidadania. Eis o sentido discursivo do acordo entre as partes.

Com efeito, a atribuição da definição de Catalunha como nação ao seu parlamento, não às cortes do reino, situa-se no polo “descrição” da dicotomia “descrição / definição”, como argumentou o governo espanhol. Por outras palavras: o preâmbulo descreve uma definição nacional. Reparemos que descreve também esta auto-definição de Catalunha como “real”, na expressão “Esta realidad nacional”.

Mas, o que acontece, por sua parte, com a caracterização nacional de “España” na Constitución Española? Talvez surpreenda saber que o vocábulo “Nación” só aparece duas vezes, e que o adjectivo “nacional” aparece apenas 5 vezes em 169 artigos: nas expressões “soberanía nacional” (art. 1.2, soberania que recai no “Pueblo Español”), “territorio nacional” (art. 19), “Patrimonio Nacional” (art. 132.3), “interés nacional” (art. 144) e “política económica nacional” (art. 148.13). Por sua parte, o adjectivo “estatal” aparece 13 vezes. Evidentemente, todos os usos de “nacionalidad” se referem ao estatuto jurídico dos cidadãos espanhóis, e “internacional” às relações entre o Estado Espanhol e outros estados. Por outras palavras: na Constitución Española, “nacional” parece ser sinónimo de “estatal”. A força jurídica de ser “Nación” deriva das competências auto-atribuídas ao Estado, não da palavra em si, nem na auto-definição.

Quanto ao jogo discursivo “descrição / definição” da “Nación Española”, também o preâmbulo da Constitución é descritivo, e também é um exemplo de discurso referido. O Título Preliminar começa, imediatamente antes do preâmbulo:

“DON JUAN CARLOS I, REY DE ESPAÑA,
A todos los que la presente vieren y entendieren, sabed:
Que las Cortes han aprobado y el Pueblo Español ratificado la siguiente Constitución.”

Quer dizer, o chefe do estado constata e faz saber que o parlamento e senado espanhóis aprovaram que “La Nación Española, deseando establecer la justicia, la libertad y la seguridad…”. Como no caso do Estatut, é o parlamento correspondente que define o país como uma nação, e o “povo” que o ratifica. A Constitución descreve estes factos.

Pragmaticamente (e argumentativamente) o procedimento para definir “España” como uma nação na Constitución é o que se chama uma pressuposição existencial: não se afirma que “España es una nación”, mas pressupõe-se (dá-se por certo) este facto “real” a meio do artigo definido “La”, que abre o que se chama uma expressão referencial definida. Quer dizer, “La Nación Española” faz-se existir no mundo real polo simples facto de mencioná-la como uma entidade singular identificável e distinta de outras. Da mesma maneira, na proposta inicial de Estatut, “Catalunya” faz-se existir como nação polo sua menção na expressão “La nació catalana…”. Este procedimento eliminado, de facto, era mais forte argumentativamente do que a definição ‘X é Z’ (‘Catalunya es una nació’), pois uma aseveração pode ser questionada explicitamente como verdadeira ou falsa. Finalmente, uma diferença entre Constitución e Estatut é que, no acordo PSOE-CiU, há uma exenção de responsabilidade, por parte de “España”, da definição da “realidad nacional” de Catalunha, tenha esta auto-definição a força veritativa que tiver (seja “verdadeira” ou “falsa”) e a força jurídica que eventualmente poderá ter.

Em conclusão, se o acordo PSOE-CiU prosperar, a diferença entre Estatut e Constitución não residirá na questão da descrição/definição nos respectivos preâmbulos, como às vezes se argumenta. Sim que o vocábulo “nació” desaparece do articulado, o qual parece coerente com a identificação “nación=estado” que se dá na Constitución, visto que, segundo a fórmula pactada, a única identificação possível do vocábulo catalão “nació” é o vocábulo espanhol “nacionalidad”. Contra o que declarou Zapatero, não parece, portanto, que esta “España” possa chegar a ser juridicamente uma “nación de naciones”, em espanhol, mas só uma “Nación de nacions/nacións/nazioak/etc.”, em todas as “lenguas españolas”: um Estado Nacional composto de “nacionalidades”. Cada cidadão poderá dizê-lo livremente na sua língua, mas a semântica política dominante é a da língua espanhola.

Em termos discursivos, o acordo PSOE-CiU sobre esta questão é uma solução inteligente. E em termos políticos, parlamentares e de propaganda pública (permito-me opinar), ainda mais: representa uma derrota do nominalismo efectista (aquele que só aspira a um “reconhecimento” abstracto da “realidade nacional” na língua doutrem), um reforçamento da forma unitária do estado monárquico (que impede a autodeterminação), e uma tentativa de caneio total a ERC. Nunca se deve infraestimar a inteligência de parte do nacionalismo espanhol. Talvez no novo Estatuto galego se pudesse obter a mesma fórmula fantasmal (e os três partidos parlamentares tão contentes, que o jogo continua), se não for porque não está comprovado que o PP seja inteligente. Como outras vezes, talvez a compensação da previsível derrota do PP no parlamento de “España” seja a sua vitória na Galiza, impedindo o acordo. Se for assim, neste jogo da oca, “Galicia” não chegará a ser ambiguamente “nación” (que, além, não se sabe se está em galego ou em espanhol), embora todos saibamos que em Panlíngua Trescientos Millones “a nación galega” só deveria ser sinónimo de “una nacionalidad administrativa de la España indivisible”. Mas é que, por não acatar, o PP nem acata a peculiar língua espanhola.