Publicado em A Nosa Terra 623, 26 Maio 1994, p. 28
Paul Éluard disse: há outros mundos, mas estão neste.
O nosso país é já dous países: um país com semi-língua e um país com língua própria. O país com semi-língua tem limites precisos, Norte e Sul, é como uma borda, como a membrana duma célula, como uma contínua periferia. Porém, o país com língua própria mora dentro do outro, e também fora, em zonas irregulares e cambiantes, em redes esporádicas que medram, constituindo territórios fugazes cada vez mais sólidos, sedimentando-se na consciência colectiva de falar. O país com semi-língua é reconhecível desde fora, tem marcas registadas, hinos e bandeiras, vistosos líderes registados, estabelece relações com outros mundos registados, limita. Porém, o país com língua própria não limita, é errante, não tem hinos, nem privilégios, e os seus poucos líderes são pobres líderes, líderes falsos que talvez desejariam só ser líderes registados do outro país, do país com semi-língua.
O país com língua própria medra dentro do outro como o tecido dum cancro, como uma doença necessária, como o que é em realidade um cancro: vida nojenta e imortal. Como o cancro, o país com língua própria estende-se por metástase, não respeita fronteiras, conspira obscuramente, primeiro por se defender do extermínio e, logo, por se infiltrar de noite como um comando de ratos e espargir-se até que morra ou se transforme o país da semi-língua. Os falantes da língua própria perturbam a ordem e o consenso, precisam fazê-lo para sobreviver, são resistentes. Como o foram alguns falantes de semi-língua no seu tempo, os falantes e escreventes da língua própria são a suja vanguarda além da qual, contrariamente à política, já não pode haver vanguarda. No seu lunático excesso, falam de dessecar um rio inteiro, de levantar pontes de palavras que cruzem oceanos. Por isso os falantes e escreventes da língua própria são tristes megalómanos.
Polo contrário, os habitantes do país da semi-língua estão suficientemente cómodos com a sua marca registrada, mas não de todo cómodos. Se não for pola presença de alimárias infiltradas, os habitantes da semi-língua reproduziriam os seus actos lingüísticos quotidianos como simples lesmas, sem a satisfação burguesa desse pruidinho de miolos que dá o justificar que, mira ti, as cousas da língua não estarão tão claras, pero eu fago só o correcto. Por isso, os habitantes da semi-língua precisam dos outros, dos ratos apestados, para se sentirem humanos e no Centro da História, as suas mãos unidas ao luar do novo lubre, admirando em apertado círculo infantil como crescem os ressumantes frutos duma árvore enorme dourada de medalhas.
O nosso país é já dous países: um país com semi-língua e um país com língua própria. Os nossos dous países coexistem, combatem, sobretudo na cidade e nas aulas, dentro de nós, no território grosseiro dos papeis, nas escassas planícies que, entrementes, nos concede o monstruoso ressurgir de Europa.
Os nossos dous países têm nomes enormemente semelhantes que significam cousas enormemente diferentes.