Publicado em A Nosa Terra
Eu fum um meninho burguês, como se ainda existissem dous grandes bandos que se dividem o nosso escasso território. Conhecim a voz do galego através de gentes inevitavelmente subordinadas que aturavam a minha insolência de rapaz e cuidavam da minha curiosidade espanhol-falante. Para mim, o verão na casa da praia era o estrangeiro, onde homens escuros desafiavam o mar cada alvorada com gamelas e vozes numa linguagem dura como pedra e mulheres roxas cruzavam a estrada deserta levando a cabra a pastar e homens lunáticos que se chamavam Jacinto iam sempre apanhar uma pouca de erva e lembravam-nos que o mundo, daquela, era pequeno e consistia sobretudo na tarefa cotiã de apanhar uma pouca de erva, de pescar umas rinchas, de turrar dos bois polo alcatrão quente da estrada ainda solitária, como uma negra cobra dormida ao sol de Julho. Assim era a vida então. Eu era um meninho burguês, de cidade chula no Sudoeste da Galiza, um burgo que apodrecia como melhor sabia na sua mestiçagem entre galega e cubana e nacional-sindicalista. Esse era o meu mundo de verdade. Galiza era o estrangeiro.
Sem decatar-me, fum aprendendo a voz que rascava os meus ouvidos com a sua aridez, a mesma voz que às vezes eu imitava às brincadeiras, junto à praia, com os meus amigos urbanos que ainda andam a fazer cultura e miséria espanhola por aí. Os esses, as gheadas, as nasais soavam-nos estranhas, sem compreendermos que os estranhos éramos nós, porque o genuíno era a aridez do sal na mar louca de Setembro e a terra como fica depois de colheitar o milho cheia de canhotos secos e o rinchar dos carros de bois que sementavam ilhas de bosta no asfalto quente da miragem de Julho. O demais a nossa limpeza, a nossa segurança, os nossos lazeres de meninhos urbanos a espoliarmos a brancura da foz dum rio ainda imaculado, a começarmos o extermínio do mar e da terra como larpães descerebrados isso era o falso, o homicida, o astuto e ladino e o que não tem nome, ainda que então não o soubéssemos e tudo consistisse no calor duma tardinha de Julho, debaixo da parra, ou passeando com a minha mãe caminho de Helena a da Fruta, para voltarmos à casa com uma cesta de vinte pesetas de maçãs maduras e pequenas e com verme.
Não sinto culpa do passado, mas tristeza da minha ignorância e da ignorância das gerações que nos precederam em construirmos um espaço falacioso nas cidades, onde se acocha um monstro de línguas viles que acaba por devorar também os seus próprios criadores. Sinto nostalgia do que não fum porque não pudem, por circunstância ou sorte. Mas reconheço também que uma pessoa tem o direito de recobrar a voz que nunca tivo. Como eu, muitos sabemos agora que a barreira que nos separava dos Nativos, dos Outros, a quem observávamos na distância como seres misteriosos, refocilando-se em práticas primordiais que nós associávamos com cheiro a sal e bosta e foucinhos oxidados pendurados do cinto, era mais imaginária do que real, e que no fundo por detrás dos ódios e das vassalagens entre aldeanos e senhoritos, entre “paduanos” e “ye-yés”, como nos acusávamos mutuamente falávamos a mesma linguagem, igualmente silenciada polas argúcias contra-natura do nacional-sindicalismo.
Agora, tantos anos mais tarde, é já difícil saber quem era o paduano e quem o senhorito, se de cada vez que baixávamos à praia a recebermos as gamelas carregadas de peixe ainda choutando entre as bancas tínhamos que reverter o rito de vassalagem e pedirmos deles, os trabalhadores do mar duro e as mulheres vestidas de preto, a nossa mantença em espécies que nós jamais poderíamos extrair. É difícil precisar onde recaíam as desvantagens quando eles compreendiam a nossa linguagem mais do que nós a de eles. Quando nós só podíamos ver, nas sobremesas abafantes do Julho junto ao mar ou polos caminhos ladeados de milho que triscava com o vento, uma paisagem e um território de meninhos onde reproduzirmos em jogos a estrutura das guerras coloniais; enquanto eles, os Nativos, viam e encontravam na terra algo mais (penso eu) sobre o qual, por decência, não quero especular.
Reencontrar a voz que nos escapou de rapazes, falar como antes só costumávamos escutar falar, é uma das estratégias que temos para concorrermos com a deturpação da identidade. Outros Urbanos optam por pretenderem que sempre falaram assim, que sempre eram galegos. Ainda outros negam que o conflito entre ser galego ou não sê-lo, entre ser paisano ou senhorito, exista agora ou tenha existido nunca, e reivindicam o seu direito a construírem uma Galiza dificilmente reconhecível, de fronteiras incertas como a geometria das bordas do universo. Seja como for, todos nós, os meninhos burgueses, revelamos hoje nas nossas várias atitudes um candor e uma sinceridade infantil que nos exime. Há algo tenro na nossa denegação, escusa ou justificação das cousas. Porque é como se estivéssemos a dizer, cada um desde a sua epistemologia pessoal, desde a sua explicação da micro-história, que os séculos tinham a razão: que Galiza existia, fixa-te tu, não como uma paisagem, senão como uma dureza e uma soidade, um território aberrante como todos os países verdadeiros.