A ideia de que só a plena reintegração do galego na lusofonia, incluída a forma gráfica, salvará o idioma da sua perda acelerada está bem estendida entre o ativismo reintegracionista. Quase diria que opinar assim é senha de identidade. O postulado tem duas versões: 1) a plena reintegração é condição suficiente; 2) a reintegração é necessária, mas não suficiente. Quisera argumentar por que esta visão é imobilista, e por que a reintegração formal na lusofonia seria sobretudo lógica (e nesse sentido, historicamente necessária), mas duma lógica diferente à hegemónica hoje; quero argumentar também que o galego se pode salvar em qualquer das suas visões e formas desde que, precisamente, se abrace essoutra lógica.
Podemos continuar a pensar que a maioria da gente pratica uma língua e uma fala, e transmite-a, em função só do desejo do que na sociedade de classes se entende com “avanço social”. Neste sentido, é claro que o galego (esta forma de português da Galiza) leva as de perder. Embora existam contradições inerentes aos processos sociolinguísticos entre lealdades culturais ou simbólicas e práticas materiais (por exemplo, defesa e amor da produção cultural e folclórica galega, mas transmissão da língua espanhola às crianças), o discurso crítico sobre a língua tende a interpretar que, dalguma maneira, deveria haver um isomorfismo entre as posições, isto é: a aderência ao simbólico galego (festivais de folk, Tanxugueiras…) é um sintoma de que não tudo está perdido e também o idioma se pode recuperar. De maneira contrária, a crescente espanholização cultural seria interpretada como um sintoma do declínio inevitável do uso do galego, numa visão mimética do papel do superestrutural no estrutural. Na verdade, porém, a espanholização é sintoma de alienação não polo que representa o formal da língua espanhola, mas pola perda de autonomia nas práticas, pola submissão a valores alógenos, não autógenos.
Se repararmos, da mesma maneira é possível concebermos uma Galiza culturalmente muito lusificada (recepção das TVs e rádios portuguesas, mais ensino na escola, fluxo de músicas do sul, presença mediática de Portugal e Brasil, etc.) sem que isto tenha um reflexo na continuidade intergeracional do idioma, embora sim que formalmente o galego minguante poda estar mais reintegrado com a norma lusófona comum. De novo, o simbólico e o material podem correr por carreiros paralelos e diferentes, e às vezes entrecruzados, porque o que dá sentido à função do simbólico sobre as práticas (de fala e outras) não é o formal, mas o social. Vemo-lo, por exemplo, na reprodução dos padrões de dominação sociolinguística de variedades “galegas” (o galego-RAG) sobre a fala coloquial comum, apesar de que (aparentemente) a distância entre umas e outras é menor que a distância que há entre espanhol RAE e o mesmo galego coloquial.
Mas a interpretação comum de todos os ativismos linguísticos não vai por aí. Diz-se, por exemplo, que numa sociedade “normal” o normal é que os produtos culturais sejam na norma que é comum à língua comum de vários países: o espanhol, o inglês, o francês… então o português. O problema é que todos os exemplos que temos são de países nada normais, mas anormais, isto é, de sistemas que colocam a submissão, a dominação, a degradação humana e a violência por princípio e, como consequência, praticam a instrumentalização de absolutamente todas e quaisquer manifestações da atividade humana, e os códigos que cria, ao serviço desse submetimento, dominação, degradação e violência.
Acreditar que isto vai ser sempre assim é imobilista, em dous sentidos. Em primeiro lugar, e imobilista acreditar que é historicamente inevitável que o simbólico esteja ao serviço do material de maneira determinista. Em segundo lugar, é imobilista (e irreal) acreditar que esta relação consiste de maneira inevitável na transformação do valor do simbólico em valores culturais ou sociais, de jeito que a posse e exibição de formas de valor simbólico (línguas) se vai traduzir ora em ascenso ora em descenso social. O sociólogo Pierre Bourdieu propus de certo este circuito de transformações mútuas das formas de valor, mas no meu pobre conhecimento nem está provado que o circuito tenha funcionado absolutamente em nenhum mercado, nem está claro que as noções de base não materiais que ele utilizou, “capital cultural”, “capital social” e “capital simbólico” para acompanhar o material “capital económico” tenham passado nunca de ser aquilo que os críticos de Bourdieu (entre os quais antes eu não me contava) caraterizavam: simples metáforas.
Procuro dizer que há não só um imobilismo político, mas um fatalismo paralisante, em pensar que só pola reintegração na lusofonia o galego se salvaria de ser assimilado polo espanhol e o inglês. Esta visão parte da base que as pessoas não são agentes das suas práticas, mas simples piões num campo que os abala de lado para o lado, “cultural dopes”. A visão renuncia a imaginar outras relações entre o simbólico, o formal e o material, uma outra lógica, porque no fundo renuncia a trabalhar pola soberania. As ramificações economicistas da Lei Paz-Andrade, por exemplo, são não só imobilistas mas reacionárias. No capitalismo globalizado, os espaços de interação económica da lusofonia são espaços de exploração, onde também a Língua formal (portuguesa) se superpõe como signo e instrumento de dominação e classificação. O acesso a ela só “empodera” porquanto o indivíduo acredita auto-capitalizar-se, em lugar de reconhecer que simplesmente adquiriu uma destreza aderida ao seu potencial como força de trabalho mercantilizável: em lugar de reconhecer a alienação. Mas mascarar a alienação, como faz a visão “empoderadora” da língua, é exatamente o contrário de reconhecê-la para combatê-la. As propostas mercantilistas de reintegração linguística fazem exatamente isto: mascarar os princípios da dominação linguística.
Alguém retrucará que o isolacionismo faz três quartos do mesmo com as noções de “utilidade” do galego, e com o seu submetimento ao âmbito (real) do mercado linguístico hispanófono, não lusófono. Sem dúvida. Mas o meu interlocutor não é o isolacionismo, que como subcampo já deu amplas amostras de fracasso em oferecer uma alternativa emancipadora, e de cinismo em conservar os seus tristes privilégios nas aras da função sacerdotal de preservação da cultura rosaliano-castelánica. De facto, o meu interlocutor aqui nem é o reintegracionismo: é o soberanismo, que inclui por definição o soberanismo linguístico.
A alternativa à perda do idioma, como se pode imaginar, é visionar e começar a trabalhar por uma lógica diferente do valor da língua, homorgânica com o projeto geral de emancipação social. É hoje que não podemos imaginar um sistema educativo, por exemplo, onde a posse e controle da língua formal, ou a falta deles, não acarretem a constituição da criança em objeto de mercado, porque é o mercado, precisamente, que perpétua e inconfessadamente temos no centro da ideologia, desde as apresentações patentemente liberais até às possibilistas que há décadas que renunciaram a enunciar a palavra comunismo. Mas se o ativismo linguístico e social (sociolinguístico) é incapaz de enunciar o alvo, e, em troca, altariza as alianças em favor da Língua por cima do projeto sócio-económico específico (e há vários) que ilumina um lado desse L gigante, dificilmente podemos protestar polo facto de que, perante a mesma “oferta” de modelo sócio-económico-linguístico (de modelo de relação entre a ordem sócio-económica e a língua e a sua forma ou formas), a gente escolha a outra variante, a isolacionista (com todo o que acarreta), que lhe resulta mais familiar.
A alternativa é dirigir-nos, precisamente, a uma ordem sócio-económico-linguística radicalmente diferente. A alternativa consiste em des-pseudomercantilizar as línguas — isto é, em introduzirmos o que poderíamos chamar elementos sociolinguísticos de socialismo — em todos os âmbitos da prática diária, desde o ensino até os (extinguíveis) prémios até às medalhas polas perícias em falar ou escrever em ou de a nossa língua portuguesa, até as comparações com outros sistemas em posição dominante (espanhol, inglês) ou mesmo outros sistemas de escrita (não, cuidado: não pronunciei “binormativismo”).
Naturalmente, os detalhes do processo eventual de des-pseudomercantilização da língua são difíceis de estabelecer nesta altura. Pense-se, simplesmente, em abordar aqueles âmbitos e atividades onde, no atual regime do Valor, a língua está associada a ele ora como fazendo parte da destreza da força de trabalho (ensino de línguas, tradução e interpretação, serviços de atenção telefónica), como elemento do objeto de produção (livro, peça musical) ou como objeto em si (gramática, língua-alvo do ensino). Em cada um destes âmbitos, pense-se nas formas possíveis de eliminação do valor material de troca, e inclusive dos concomitantes (embora não trocáveis) valores simbólicos de prestígio. Pense-se, por exemplo, na eliminação dos prémios literários, na extinção dos papéis sacerdotais das pessoas “normalizadoras” das academias ou institutos de saber, pense-se no ensino como serviço universalmente gratuito (e sem salários), na tradução de material escrito também como serviço público também gratuito (que, de facto, já existe, p. ex. nos Serviços de Normalização das universidades), ou na gratuitidade dos livros e nas editoras (sim, diversas e livres) como serviços também da comunidade.
Em definitivo, trata-se de entender que o alvo é a soberania política e a igualdade real das pessoas, não a língua. De o caminho soberano ao socialismo estar bem enfiado, nas ideologias, nas propostas de base, no discurso de popularização das suas bases fundamentais, a língua deveria ir também bem enfiada, porque a soberania sobre o próprio deveria enfatizar (e portanto contribuir para resolver) a contradição, por exemplo, de abraçar o alheio por distorções (como as atuais) a respeito do seu papel na consecução dum lugar digno na sociedade. Esvaziado de conteúdo o valor pseudomercantil das trocas de fala (que são, com efeito, trocas no sentido sequencial, mas em absoluto no sentido de traspasso de valor), deveria ficar destacado o que é consubstancial à língua e à fala: a função de integração, de expressão comunitária, mesmo fortemente ideologizada (sem dúvida) em paralelo com a necessária ideologização da construção constante da sociedade que queremos.
Por sua vez, a destruição da correlação ideológica entre forma da língua e função de dominação e hierarquização poderia e deveria levar, no seu ensino, à compreensão da convencionalidade dos sistemas de escrita sem outro valor que o funcional de comunicar pessoas, e à naturalização do ensino das convenções formais comuns da língua portuguesa. É nesse sentido que o reintegracionismo será lógico numa outra ordem sociolinguística. Mas não devemos deixar de levar em conta que essa naturalização passa também por destranscendentalizar a variação que se der, a variedade, a alteridade idiossincrásica deliberada (a maior parte das vezes, trivial), isto é, a heteroglossia que não seria amostra duma “liberalização” da prática da escrita como índice da todopoderosa liberdade individual (semelhante ao “tuneamento” das roupas ou os cabelos), mas, polo contrário, índice da des-significação dos traços diferentes do “ético” no sentido estrutural, e preservação sólida do núcleo “émico” da norma linguística como veículo de comunalidade. Por exemplo numa ordem sociolinguística des-pseudomercantilizada a “falta de ortografia” inexiste como prática a disciplinar, e trata-se como imperícia pouco importante (se também trivial ou não poderá depender doutros fatores).
Avançar pola língua, hoje, avançar contra a corrente da perda do galego, rio acima até às fontes, implica exercer o máximo ceticismo perante as alianças discursivas sobre a língua, desconstruir as frases fáceis sobre a lusofonia (se até uma pessoa patentemente reacionária pode pronunciá-las, são duvidosas), porque a aparência da Língua Comum não pode mascarar o alvo da causa comum, comunal, comunista. O galego, o português da Galiza (na realidade, todas as línguas) ou é comunal ou não será língua própria, mas continuará a ser qualquer instrumento de submetimento sob qualquer etiqueta convencional. O galego só se salvará (como língua própria portuguesa que é, e na forma que for) se, frente aos utilitarismos, é língua identitária desta formação social, língua de relação horizontal, de transmissão intergeracional incontestada, de expressão do comunal, de criação sem hierarquias, de escrita funcionalmente comum mas sem juízos de valor, de transformação quotidiana da matéria, de transmissão não classificatória do saber: todo o contrário do que o “galego” institucionalizado e legitimado é hoje em dia.