A Morte do Sexénio (uma história)

     Hoje, na Universidade, alguém do meu corpo docente perguntou-me se eu tinha algum sexénio vivo. Precisava sabê-lo para colocar-me nalgum dos velhos lugares em que se baseia o saber universitário: os de acima, com vários sexénios vivos, e os de abaixo, seres asexeniados ou cujos sexénios, no nosso fértil eufemismo, não se chamam mortos não: não se chamam. Perguntaram-me isso, e ainda não sei como alguma gente é capaz de foçar nas intimidades dolorosas doutrem sem rubor. Porque eu tinha dous sexénios, sim, e os dous me morreram, e não é agradável lembrá-lo cada dia. Na verdade, seria mais duro admitir que nem sei se vivem, que há muitos anos que não os vejo. Concordemos, então, que para mim estão mortos. Sim, o meu segundo sexénio também morreu há tempo, e ainda hoje não deixo de tê-lo em mente. Para consolar-me, recorro à barbaridade que cunhei quando comecei a compreender para que servia ou não servia: que na realidade talvez nunca devesse ter nascido.

     Confesso que alguma vez acreditei que o meu primeiro sexénio tinha algum sentido. Sempre se ama mais o maior, não nos mintamos. Ele era fruto do meu esforço de repetir o pouco que aprendera no doutoramento, em revistas e livros que tampouco sabiam que eu não sabia o que dizia. Mas o nosso C.N.S., Comité de Nascimento dos Sexénios, foi sempre um ente generoso. Ao pouco tempo de eu começar a ser funcionário, concedeu-me que nascessem dous sexénios juntos, gémeos bivitelinos. Dous em um, como um Abraxas! Escrever um livro, plantar uma árvore, ter um sexénio! A vida estava plena. Mas o bi-sexénio morreu, ou desapareceu, os dous morreram, de pouco a pouco, sem eu o perceber, como se extinguem as cousas enquanto a vida passa polo teu lado.

     Deveria dizer que os meus sexénios eram maravilhosos, como tudo quanto sai do amor, mas não estou seguro, e sei que não serei compreendido. Ter um sexénio dá a satisfação do obediente cumprimento, mas também uma ânsia difícil de narrar. Porque durante anos alimentei a meta de dar vida ainda a um terceiro ser, uma pequena sexénia que eu observava a ponto de nascer, aguardando, chamando por mim em noites insones em que eu revia mentalmente no leito as minhas notas de trabalho, como manuscritas ovelhinhas a saltarem por cima de valados, de prateleiras da alta biblioteca, de companheiros e companheiras sem descendência. A minha sexénia quase nasceu num ano em que perdi a tecla do ponto final para um artigo no último minuto. Talvez compreendesse que, apesar da minha solidão, era melhor não procriar do que fazer nascer seres condenados a morrer. Afinal, pensei, como no igualitário reparto das almas possíveis do mundo que um deus cristão habilmente desenhara, se eu não pedia ao C.N.S. a minha sexénia, outra semelhante nasceria da mente dum companheiro ou companheira que a precisasse mais. Nunca saberei se foi assim, mas nisso fio, porque deus e o C.N.S. são infalíveis. E assim, embora renunciasse à terceira procriação e sentisse a lenta perda do passado, fiquei contente de ser tão solidário.

     Mas agora querem saber se tenho sexénios vivos, e não sei a que responde tanta insídia. Por acaso não é suficiente a dor para que tenham que lembrar-ma? Querem ensinar-me que na realidade o meu desleixo e renúncia, que são o mesmo, não têm lugar na ordem em que habito?  Já, já sei: se me morrem as begónias da casa, como vou saber cuidar dos meus sexénios?  Ah, se pudesse reverter a eterna roda da excelência, teria-os doado com prazer a alguém que soubesse alimentá-los, mantê-los sãos, nas suas caixinhas transparentes, com as pequenas bocas triangulares como a cabeça de deus reclamando a sua mantença em doses estudadas, o seu relatório triturado, o seu artigo cozido, a sua firme bibliografia como a fibra necessária para que a defecação infantil seja ordenada.

     Hoje estou triste, porque não compreendo a que vem a insistência. Nunca voltarei a ser aquele professor feliz que ria a contemplar as mãozinhas dum sexénio. Nenhuma política poderá restaurar aquele cândido esplendor, aquele júbilo. E já vou velho para cometer a imprudência de fazer nascer a minha última sexénia. Bom… espero. Porque às vezes há erros humanos, erros de paixão polas letras e a palavra, e qualquer noite, sem proteção, arrebatado, me sai um texto, um livrinho… E ao me perguntarem de novo se tenho algum sexénio vivo, poderei responder com o responsável orgulho que corresponde à minha classe:  “Sim, claro! Uma sexénia! Olha a sua carinha no iPhone! Verdade que é preciosa?”.