O “bajón” das línguas

“Estaba yo en un pub [en Coruña] … Y de repente le digo [al chico]: ‘Ah, no sabía que eras el primo de Tal’. Y me dice: ‘Sim, sou o primo de Tal’. Y digo yo (‘¡Habla gallego!’). Y me dio un bajón…”.

Marta López, concursante do Gran Hermano espanhol, 2011.

     Essa tarde fresca de sábado convidei o meu amigo X. a tomar o cafezinho de sobremesa no meu andar no centro da cidade. Falámos, como outras vezes, de perspetivas de trabalho: A ele ofereciam-lhe possibilidades de melhora e traslado, mas não sabia se ir para Compostela, para Porto ou para São Paulo; eu queria fazer uma estadia de investigação fora; o meu colega G.F. da Universidade Eduardo Mondlane de Moçambique trabalhava no mesmo campo. Talvez aí.

     Recebi um toque no telemóvel: chamada perdida e correio de voz. “Tem um-ha-men-sa-ge no-va”, pronunciou exatamente a operadora eletrónica. Era Z., que contava que hoje havia concerto de Uxía, que a chamasse se tal. “Uxía Senlle ou Ugia Pedreira?”, perguntou X. “Senlle, Senlle. Uxía com x”. Consideramo-lo, mas não prestava: já tínhamos outros planos de música.

     Aproveitei para mudar o tom do telemóvel. Desta vez ia escolher um MP3 de hip-hop. Não sabia se um de Deus Que Te Crew sobre uma velha língua proletária, dizem, ou o absurdo tema Enfermeiro dos cariocas De Millus & Du Loren. No entanto, X. folheava um convite para um próximo ato num centro cultural sobre Lois Pereiro, assassinado pola colza.

     X. esperava um email importante, e pediu-me o netbook. “Merda, diz ‘Atualização de software’, que fago?”. “Cancela, já o farei eu”. Eu pus-me a descarregar uns continhos de Machado de Assis no meu flamante Kindle novo. X. devolveu-me o netbook com o Facebook ainda aberto na sua página: estava cheio de símbolos Gosto, Gosto, como faz impulsivamente ele. Depois zapeámos um pouco a TV, mas tudo era aborrecido: G2, RTPi, Canal Globo… triviais programas de sábado.

     Ainda havia tempo para ir à FNAC, perto do restaurante escolhido. Como surpresa de aniversário atrasado, comprei para X. o DVD d’O Contador de Histórias, com a magnífica Maria de Medeiros. Para mim próprio levei o último da série Northern Exposure, legendado na minha língua.

     Queríamos cear cedo para não lutarmos por uma mesa e apanharmos depois bom lugar também no concerto. Tomámos revolto de grelos, um pouco de polvo à grelha, pescada, tudo com um godelho Guitián Barrica que entrou bem. Queijo e marmelo, marrom glacê de Ourense. Cheios.

     Ao chegarmos ao pub já começavam a ocupar-se as mesas. Esperávamos que Abe Rábade não esquecesse obsequiar ao mundo com a sua ínigualável versão íntima de Camarinhas. Eu pedim uma densa 1906; o meu amigo, um caipirinha. Enchia o ar do local um antigo poema de Vinícius.

     O meu amigo apontou para um grupo próximo: “Homem, aí está a minha prima, vou-cha apresentar”. Por que não?, pensei. Afinal, sempre presta conhecer gente nova: o tempo vai matando. X. voltou com ela, apresentou-nos, e aproveitou para ir à casa de banhos. A moça parecia agradável, aberta, cosmopolita. Por algo estava no mesmo lugar, para o mesmo evento. Na verdade, de perto soava-me a sua cara.

     “Ah, creio ter-te visto por aí. Logo és prima de X.?”, perguntei, por começar.

     “Sí, bueno, una de sus muchas primas”, sorriu. “La más joven, creo…”.

     Confesso que me deu o que alguns chamam um grande “bajón”: Falava-me espanhol, castelhano, com esse sotaque tão alheio!…

     “Ah…”.Não soube o que dizer. Trocámos umas palavras sem sentido, cada um no seu idioma, até que, felizmente, voltou X. e ela se reuniu com o seu grupo.

     O concerto foi extraordinário, como esperável. Só quando terminou, eu saím ansioso para fumar um cigarro deambulando pola praça. Tudo naquele dia fora perfeito excepto uma cousa: Sob o frio seco da noite, confuso, fiquei a pensar por que essa moça agradável que parecia aberta como eu, cosmopolita como eu, internacionalista, no século XXI, com tudo quanto a nossa língua lhe poderia dar, teimava em falar castelhano aí, no seu próprio país, na cidade, no centro de Madrid.

Camarinhas_por_Abe_Rabade

“Camarinhas”, por Abe Rábade, em YouTube

One Reply to “O “bajón” das línguas”

  1. hehehe, bom artigo Celso. Gostei e dá para pensar cousas importantes… como o papel a jogar polas línguas nesse mantra que se diz s-é-c-u-l-o-XXI, onde há mais conflitos vivos desde o XIX dos que poda parecer.

    Saúde.

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