Em GalizaLivre, 11 de janeiro de 2011 • Em Encontro Irmandiño
Recentemente seguiste de perto o debate sobre política linguística entre sectores vinculados à UPG e outros ao IGEA ou o quintanismo. Que balanço tiras das suas propostas?
Na verdade, eu diria que houve e há mais polémica (inclusive pessoal, agre, insultante) do que debate de fundo sobre qualquer nova proposta realizável de política linguística. E também não entram em jogo apenas esses dous setores mencionados, embora tenham destacado, polas confluências de posições intelectuais, académicas e políticas, num país como o nosso onde há tanta sobreposição de redes dos campos diferentes. Digamos que a “conversa” a várias vozes continua, mas não acho que se esteja a tirar muito em limpo. À partida, eu não concordo com a necessidade dum “novo discurso sobre a língua” por esses vieiros, e muito menos com base no deficiente texto do IGEA, como tenho criticado em três textos recentes. Mas devemos entender que nesta tentativa de revezamento do “discurso”, em contra do que se afirma, há uma parte de operação política, também apoiada mediaticamente, que talvez chegue a ter um sucesso parcial.
Na minha opinião, o texto do IGEA vai, de novo, a reboque do discurso dominante sobre as línguas em conflito, como está a acontecer desde o magnificada e sonora formação dum minúsculo setor social espanholista que foi tão útil para o PP eleitoralmente. Não esqueçamos que logo a seguir daquela pequena manifestação em Compostela, e mesmo antes, notórias figuras dos campos político, cultural e intelelectual em geral (também da UPG e da MNL) fizeram repetidas declarações de “respeito” pola língua espanhola, de defesa do “bilinguismo” e da competência em espanhol consagrada na legislação, etc. etc. Isto era e continua a ser totalmente desnecessário para o galeguismo: há outras maneiras de enquadrar o papel do espanhol na sociedade galega que, sem representarem cedências (ou convicções?), tampouco sirvam de escusa para o espanholismo encenar interesseiramente as suas demonizações do “nacionalismo”. A partir daí, chegou o contra-discurso sobre a “imposição” do galego: debates e publicações de “resistência” onde, de novo, se excluíram vozes nas aras dum (frágil, já estamos a ver) reagrupamento contra o Inimigo. Na terceira fase, o galeguismo entrou no carro discursivo das bondades do “plurilinguismo”. E nas mesmas andamos, ou andam: jogando a perder com um intuito de “reenquadramento” do “bilinguismo”, como se acreditassem cegamente nos discutíveis argumentos de George Lakoff e do seu think-tank The Rockridge Institute sobre o papel das “mudanças de quadro” ou frame em política.
Em resumo: são Feijoo e Lorenzo que estão a marcar a agenda discursiva sobre a língua. E não admira: Lorenzo foi colocado onde está por um setor do galeguismo (o grupo Galaxia) de filosofia perfeitamente compatível com a opinião do IGEA. Portanto, sou sumamente céptico sobre o que puder sair dum debate que parta das bases do texto do IGEA. De positivo, vejo pouco, e muito de risco de fragmentação do que dou em chamar, com licença, o “contínuo galeguista” (em oposição a “espanholista”) que vai desde um setor do PP até ao hegemonismo linguístico politicamente soberanista (e reintegracionista). Com outras bases de partida, bastante diferentes, horizontais, poderia ver-se se um debate centrado e gerido mais cooperativamente pudesse começar a produzir efeitos positivos nas práticas linguísticas, que é o que conta. Mas, olho, entre os discursos e as práticas está o lugar estrutural da política linguística institucional, e não vejo na polémica atual qualquer fórmula mágica para desviá-la do seu alvo de minorização definitiva do galego, alvo que tem poderosos interesses económicos por trás. Por enquanto, não vejo isso na polémica discursiva, que ignora totalmente estas bases.
Vemos que está a calar o discurso da posta em valor da língua através da economia: importáncia no PIB, competitividade na «potência emergente» do Brasil, etc… Mas que é o que se está estendendo realmente, o discurso da língua «útil» ou o do utilitarismo?
É certo que a dimensão económica, até mercantilista, da língua portuguesa e galega, está a cobrar mais relevância ultimamente na Galiza, polo menos no discurso jornalístico. Há duas leituras em conflito disto, ligadas a dous projetos sociais e económicos incompatíveis. Por uma parte, a mercantilização da língua continua a ser mais uma amostra do caráter invasivo do valor, que constitui e até define o indivíduo no capitalismo. Isto não é novo. A língua é signo, instrumento e veículo do que a pessoa tem, e portanto do que é. Isto é insidioso e, numa ordem social igualitária, calculo que não teria lugar. Sei que esta dimensão económica utilitária da língua é criticada como um aspeto negativo e rejeitável do unitarismo linguístico galego-português-brasileiro, isto é, do que no século XX se conheceu como “reintegracionismo” e ainda se chama assim, para entendermo-nos. Mas sei também que certas posições “isolacionistas” que, por reação, reivindicam o “pequeno” como essência da galeguidade são populistas e falaciosas. As línguas não são grandes nem pequenas: veiculam, numa formação social determinada, mais ou menos poder e capital simbólico, social e económico, em determinadas condições de acesso e distribuição desse poder e capital, e essa é a questão.
Por outra parte, na segunda leitura (uma leitura inevitavelmente reformista, esta sim, pragmática e possibilista) parece que por fim se está a compreender que sem capitalização real o galego não tem nada a fazer no quadro económico e jurídico em que ainda se insere, e com um adversário tão poderoso como é a língua espanhola. E a política linguística até agora perpetrada na Galiza, com o seu concorrente modelo de língua, manifesta um patente fracasso quanto à capitalização do galego, menos para um limitado segmento social, nomeadamente os campos cultural e político, em continuada simbiose. Esse modelo não faz uma língua com futuro, isto é, uma língua socialmente hegemónica transmissível entre gerações graças às suas três funções básicas: relacional, identitária, e utilitária.
Quando em política falamos arredor da língua é mui raro que se analisem ou denunciem relaçons de dominaçom mais lá do bilinguismo entendido como galego/espanhol. Apenas as feministas fôrom capazes de sinalar outro tipo de dominaçons que se dam na linguagem como espaço de poder. De que mais formas a língua é empregada como instrumento de dominaçom?
Bom, não só as feministas destacaram esses outros aspetos da dominação pola linguagem: há bastante escrito também sobre língua e classe ou língua e etnicidade, por exemplo. Em qualquer caso, todas as línguas são plurilíngues, no sentido em que são as suas variedades específicas as que cobram valores e funções como os indicados acima. Os signos sociais reais são também estas variedades, não só essa abstração da Língua, com L maiúsculo. Mas é certo, como sugerides, que nas ideologias linguísticas quotidianas imperam visões monoglóticas polas quais se personalizam as línguas como agentes indivisíveis e se criam narrativas de confronto semelhantes às que dizem explicar as guerras entre “países”. Assim, dalguma maneira, tende a ver-se o bilinguismo social (isto é, a presença de duas línguas numa sociedade, com as formas de conflito que isto tomar) como a soma de duas realidades monolíngues, e isto não é assim. De facto, chegar a essa conceção é o objetivo do espanholismo, que observa como a “sua” pretensa comunidade de falantes cresce e espera a ser “maioria” para aplicar, desta vez sim, a parefernália dos “direitos linguísticos coletivos”. Se continuam a perder-se usos do galego, em cinco anos ou mais cedo teremos acima esse panorama da “maioria espanhol-falante”, e o ativismo linguístico vai ter um grande problema em explicar por que os “direitos linguísticos coletivos” são diferentes para uma maioria galego-falante e para uma maioria espanhol-falante. No fundo, esta crise da língua surge em parte por uma manipulação do discurso ativista por parte do espanholismo, como tenho apontado em ocasiões. Mas, como dizedes, a dominação linguística não consiste só no confronto entre “línguas”. Em termos da construção, gestão e acumulação da violência simbólica, “galego/português” e “espanhol” não são o único que existe: existem as suas respetivas variedades formais, legitimadas, “a língua dada”, como se tem chamado, que compartilham o mesmo espaço de poder contra as falas diárias, locais, irregulares, deslegitimadas por definição pola posição estrutural subordinada dos seus utilizadores.
Além disso, claro, a dominação dá-se por complexos processos comunicativos na fala diária. A dominação, o controle, o poder e a autoridade, que são processos relacionados mas diferentes, podem exercer-se (deliberadamente ou não) polo uso dum dado registo (ou idioma), mas também pola escolha duma estratégia retórica, pola “facilidade de palavra”, por uma ironia incontestável, pola exibição certeira dum dado factual (o “saber”, adquirido diferencialmente), polos mecanismos de tomada e manutenção da palavra, polo humor, polas categorias semânticas empregadas (linguagem sexista, classista, racista, heterossexista, etnicista), etc. Em geral, ali onde há relações desiguais (e, na interação diária, sempre há elementos disto), a fala é um veículo muito eficiente para manifestá-las e construi-las. E a fala é especialmente eficiente porque muito amiúde estes mecanismos de dominação nem são percebidos polas pessoas que os exibem nos encontros (por exemplo, “machos alfa” com acumulação de capital social e simbólico), de maneira que escapam –felizmente para os seus testosterónicos produtores– a esse onipresente auto-questionamento entre cristão e marxista-leninista que conduz a um Melhor Progressista, que é uma variante do Melhor Cidadão burguês. Por exemplo, a própria polémica sobre a língua na Internet a que nos referimos antes apresenta esses elementos de sexismo tradicionalmente caraterístico do galeguismo: a imensa maioria dos participantes são varões, o discurso da sociolinguista Pilar García Negro (quem, curiosamente, num artigo em Xornal ligou conceptualmente o informe do IGEA a “vender-se como as mulheres prostituídas” com o seu jogo de palavras “bilinguismo prostitutivo”) é apresentado como emocional e “excessivo”, de Gloria Lago diz alguém que é “tão feia por dentro como por fora”, etc. Mas aqui, na Galiza, estas questões estudam-se pouco porque não interessam à Sociolinguística Nacional (também construída, a propósito, pola dominação no “debate”): interessa só saber se “o galego”, esse objetinho semelhante a uma foca em perigo, se vai salvar ou não.
No ámbito do que chamamos amplamente «galeguismo», tés adoptado amiúde posturas iconoclastas: refugas do patriotismo, de hinos e bandeiras, etc. Pensas que é possível articular um discurso nacional e galego nessas coordenadas?
Em que coordenadas? Nas aparentemente iconoclastas ou nas ortodoxas? 😉 . Eu não me qualifico como patriota (do Dicionário Estraviz, “pátria” é provavelmente o vocábulo mais odioso), mas acho que compreendo (com um certo grau de cómoda compaixão, confesso-o cinicamente) o que querem dizer as pessoas que se proclamam “patriotas”. Agora a sério, penso que o respeito mútuo é suficiente para podermos confluir em certos espaços de ideias. Sim, penso que é possível e necessário para a sociedade galega articular um discurso nacional soberanista (cívico, social, não essencialista) onde sejam mutuamente compatíveis os sentidos de “pátria” e “esta gente e este pedaço de Terra cujos recursos são da gente”, por exemplo. O soberanismo é uma legítima expressão do alvo humano de liberdade coletiva, de igualdade e de auto-gestão. É esse alvo coletivo, e não as autodefinições, que deveria reunir a gente. A articulação desse necessário discurso comum, então, deveria surgir por justaposição de vozes congruentes — não por efeito dum inerentemente ineficaz dogma — , isto é, como numa assembleia contínua onde cada grupo e cada pessoa dizem o que acreditam pensar a bordo dum só barco que vai para, mais ou menos, o mesmo lugar. Frente a isto, queiramo-lo ou não, a vocação totalizadora de signos como os hinos ou as bandeiras precede-nos: nós não decidimos o seu sentido. Certos símbolos totalizam de tal maneira inevitável esse projeto comum que distorcem o sentido da auto-determinação coletiva e, por definição, não podem representar “a gente”: quando uma cousa significa o Todo, não pode significar simultaneamente a síntese consensuada das vontades (síntese, digo, não trapicheio). Os hinos e as bandeiras são uniformes, e, no meu dicionário particular sobre essa utopia que os humanos levamos na cabeça, o coletivo é exatamente o contrário do uniforme.
Tu eras colaborador habitual de Vieiros. Como vés o panorama informativo galego após o encerramento desse portal de referência para todo o galeguismo?
Acho que há um divórcio notável nos canais de receção de informação de diversos setores sociais, talvez divididos por linhas de classe e geracionais. Não sei nada do tema, mas intuo que a gente de mais idade tende a receber a informação dos jornais em papel e da televisão, enquanto a gente mais jovem e/ou já educada na era informática recebe-a ou procura-a na Internet. Este é o meu caso (não compro jornais, apenas recebo o Novas da Galiza), e na Internet sempre se podem procurar fontes galegas ou lusógrafas: a vossa própria web, Diário Liberdade, Novas da Galiza, MundoGaliza, a versão mais “tolerante” de Xornal, o Portal Galego da Língua, o Público de Portugal, as mal chamadas “redes sociais”, etc. Mas é certo que muita desta informação não “sai à rua”, isto é, não passa para esse papel cinzento que ainda se toca nos bares e se leva no trem, e este contato físico e presença visual do galego escrito no meio dos atos diários e no interior das casas é muito importante para a existência real duma língua. De maneira que, na minha opinião, embora a possibilidade de obtermos, filtrarmos e avaliarmos criticamente informações variadas em galego-português seja agora maior do que nunca, o panorama da incidência real desta gestão das informações eletrónicas na construção linguística e cultural coletiva não é nada bom.
Ficamos muito obrigadas pola entrevista. Por último, podes engadir qualquer cousa que consideres de importância e que esquecêssemos.
Não, já falei demais! Obrigado eu a vós.