Publicado em Vieiros
Por recomendação dum amigo, estou a ver estes dias a série de quatro documentários The Century of the Self (“O Século do Eu”), de Adam Curtis, o mesmo documentalista do magnífico The Power of Nightmares sobre a invenção propagandística do “terrorismo islâmico”. Na série sobre o self, Curtis revela a poderosa implicação das ideias de Freud, Reich e outros psiquiatras na mercadotecnia comercial e política de massas nos EUA, no Reino Unido, e (por extensão imperial) eu diria que em todo o mundo conhecido, que é aquele aonde chega o cadáver de Michael Jackson. No episódio três, Curtis explica a viragem face ao mais atroz individualismo que deu uma inesperada vitória a Ronald Reagan em 1980 nos EUA e inaugurou o mal chamado “neo”-liberalismo que hoje sofremos.
Incapaz o movimento político jovem dos EUA de lutar contra o Estado com as mesmas armas de pólvora do Estado, a meados dos anos 1970, sob as ideias de Reich sobre a auto-expressão (“sê tudo quanto podes ser”), tornou-se face ao o que libertários ou situacionistas aqui chamariam uma “revolução interior”. Surge então um novo cidadão desclassado, desidentificado, paradigmaticamente etiquetado como “hippie”, que daria como fruto depois essa curiosa raça de pessoas que levam uma camisola com a legenda “EU <CORAÇÃO> ♥ QUALQUER COUSA”, enorme paradoxo da mimese gregária para reclamar algo individualmente. Surge um novo consumidor de batas rosas ou azuis de Inditex, camisolas personalizadas, modding de computadores e carros, blogues e inconfundíveis estilemas. Frente à caduca identidade de classe, surge assim a poderosa miragem do lifestyle, do estilo de vida, que pervade como nunca até a escolha de voto. Surge o novo eleitorado, basculante e mutante.
Agora, até a língua se reclama desta perspetiva individual (“EU amo o galego”), o qual não vejo como a melhor tática propagandística e política. Mas deve ser o signo dos tempos, o mesmo, exatamente, que levou ao poder a um inexato Feijóo por um mangado de votos também inesperados. Feijóo, como Reagan no seu momento, apelou a um setor de jovens profissionais não necessariamente conservadores que levavam imprimido no coração, na mente e na carteira o emprendedorismo mais individualista, essa necessidade de ser, contra toda a lógica da genética social humana, “diferente”, singular, inimitável: o Novo Ser da Nação Facebook, essa enorme pátria de novos escolhidos que pervagam, como o seu judeu fundador Mark Zuckerberg, em lugar de polo mundo físico, pola Rede.
Nada do que acontece com a língua na Galiza está desligado deste processo geral de fragmentação. Feijóo ganhou, com apoio dos liberais e neofascistas externos, porque apelou a esta era do indivíduo, rompendo os discursos sociais anteriores da direita e da menos direita. E, como Reagan (talvez também com a sua mesma ineptitude inteletual), Feijóo começa a desmontar o discurso e a lógica social, quase trinta anos mais tarde, como tudo quanto fazem acontecer na Galiza. A ideia é que o Estado pesa sobre as tuas costas, que a “liberdade” inunda até os teus atos mais mundanos, e que então, no fundo, o líder é o protetor dessas “liberdades” contra as obscuras forças da consciência social. Daí ao fascismo há pouco. Porque, na realidade, ninguém mais que os poderosos têm consciência de classe. É-lhes absolutamente necessário fragmentar-nos socialmente aos outros por qualquer motivo, para elas preservarem os privilégios. Exatamente assim fragmentam e desintegram a Galiza as novas elites do PP com a escusa da língua. Nunca antes como agora se patenteou o poder desintegrador da língua que inventou o eñe como símbolo de conquista.
Reduzida à escolha puramente individual, que é o que pretendem estes indivíduos, a língua própria pode cessar de ter o seu papel coesivo, o que, queiramos ou não, nos reúne, até a aqueles que manifestam odiar o galego ou importar-lhes um figo: têm-na dentro como uma presença constante a ranhar a consciência. Porque a língua é uma realidade superior. Não uma deusa essencial, não uma rígida “instituição” saussureana, mas uma longuíssima prática social e humana, um fio para engrançar incríveis hipertextos muito mais criador do que o Facebook. A nossa língua produziu o portento das cantigas que continuam hoje nos motivos populares: apenas isso justificaria sabê-la, falá-la, memorizar os poemas em lugar dum estúpido politono. Polo contrário, a língua española, aqui, só produziu desagregação de classe, puro conflito, imitação de inalcançáveis metrópoles poeirentas, tristes desejos de ser o perfeito burguês que só os burgueses podem ser. A língua española, aqui, produziu apenas incultura de verão, fantasmas e mitos mal assimilados, infantis admirações por um mundo literário tão remoto como a tundra, e uma espécie de melancolia de errarmos na própria terra perdidos na desnecessária sintaxe dos pequenos impérios. Objetivamente, a língua española sempre foi mal negócio para a Galiza. Agora, porém, querem fazê-la bom negócio um feixe de facinorosos que bem poderiam, em lugar de aproveitar-se das línguas, emigrar com o seu vendido séquito à Corte, onde o seu acentinho agreste jamais lhes permitiria nem chegar a secretários.