Publicado no Portal Galego da Língua
1. Na Galiza, em galego
No passado 8 de fevereiro houve em Compostela algumas manifestações de diverso tipo em favor do galego, com motivo duma outra manifestação autorizada em favor do espanhol e contra o bilinguismo, isto é, contra a política educativa bilíngue da Xunta da Galiza. O lema coreado e escrito duma das concentrações, impulsada polo grupo Nós-UP (mas a autoria não é o tema) era Na Galiza, em galego ou variantes (Na Galiza, sempre em galego, Na Galiza, só em galego). Mas, o que quer dizer realmente este lema?
Evidentemente, a sua forma significa algo diferente de Na Galiza, en galego / En Galiza, en galego / En Galicia, en galego / En Galicia, en gallego / Na Galiza, em galego-português ou Na Galiza, em português. Mas não é o meu objetivo contrastar aqui as variantes: é necessário praticar um certo exercício de abstração. A expressão Na Galiza, em galego contém apenas um lugar definido, um idioma, e a preposição “em”, repetida em duas estruturas paralelas mas de natureza muito distinta. A expressão diz simplesmente: ‘Num dado lugar, num dado idioma’. Não há agente (quem), ação (o que), tempo (quando), nem modo (como). Como noutros lemas propagandísticos, também não há um porquê nem um para quê, pois se supõem sobreentendidos para quem receber a mensagem. A narrativa está altamente incompleta, e isto convida a construi-la.
É o próprio paralelismo das construções com “em” que liga ambos objetos, lugar e língua. O “em” de “Na Galiza”é obviamente locativo: existe um lugar que na expressão se denomina “a Galiza”, e neste lugar algo acontece ou acontecerá ou deveria acontecer, alguma cousa referida ao idioma. A preposição também seleciona “a Galiza” entre outros possíveis lugares existentes. Esta seleção é interessante, pois, frente a um singelo Em galego, resulta mais débil. “Na Galiza” pressupõe a obviedade de que há outros lugares onde também acontecem cousas “em” outros idiomas. Mas, se a propaganda está dirigida à gente de “a Galiza”, esta menção é argumentalmente desnecessária, a menos que com a forma “Galiza” se deseje destacar que é esse, e não “Galicia”, o imaginário que se deseja construir. A cousa complica-se, porque então a propaganda só está dirigida à gente que se quer deixar construir como membros de “a Galiza”, não “Galicia”, que é o referente bivalente e mais amplo.
Quanto ao “em” de “em galego”, o seu valor é muito diferente do anterior. Sugere translação, manifestação, realização: “em” anuncia a forma, denominada “galego”, em que algo é, poderia ou deveria ser feito. Existe alguma cousa interior (linguagem?) que pode admitir várias realizações. Contrastem-se, por exemplo, “Ela só fala russo” e “Ela só fala em russo”. Na primeira expressão, o objeto da ação é o idioma: a ação de ela falar é consubstancial com o seu idioma russo, o único que possui. No segundo caso, o objeto da ação fica omitido, mas sobreentende-se que é a própria fala: ‘Ela só produz fala numa forma que é russo’. É a fala que poderia ter mais de uma realização, como expressão contingente da linguagem.
Na concentração, um jovem gritava o lema alternativo Na Galiza, só em galego, que me surpreendeu por redundante como convocatória à ação: se é “só”, o “galego” não pode ser fruto duma realização opcional “em”. Por exemplo, o lema propagandístico monolinguista que surgiu nos EUA nos anos 1980 contra a visibilidade da língua espanhola e dos latinos era English Only, não In English Only: só inglês, isto é, singelamente inglês, a língua dada. English Only aproxima-se assim da necessária tautologia da língua única, e passa a significar ‘English’. O lema dum conhecido panfleto espanholista do período Franquista (talvez espúrio, pois nele constava o ter sido imprimido em “A Coruña”) era Hable español, no sea bárbaro, não Hable en español. Por tudo isto, parece-me que a versão tautológica do lema que nos ocupa seria algo assim como Na Galiza, galego. Por enquanto, nem Na Galiza, em galego nem Na Galiza, só em galego se aproximam da força da tautologia pola qual a língua dum país é a única possível, mas ambos lemas aludem à opcionalidade.
Tentemos resumir. Por uma parte a preposição “em” converte o socialmente dado (a língua) numa realização opcional. E, sobretudo, a ausência de agente, ação e tempo, como mínimo, faz do referente “a Galiza” uma categoria política e superestrutural talvez hipotética ou futura, não uma realidade social atual. O lema sugere um diretivo (que se façam as cousas de uma dada maneira), mas não é dirigido explicitamente nem a instituições nem a pessoas. Em forma e portanto em conteúdo, Na Galiza, em galego lembra mais o lema duma campanha institucional de política linguística (que indica, por exemplo, tanto o que se deve fazer quanto o que se está a fazer), do que uma autoconvocatória social de base para o uso do idioma no país.
2. As vozes da propaganda
Como estamos a ver (espero!), a propaganda em favor dum idioma pode tomar múltiplos matizes, com várias intensidades de convocatória segundo as suas formas, vozes e protagonistas. Existe propaganda impessoal sem agente (Na Galiza, em galego, Sem pêlos na língua), propaganda do “tu” ou do “você” (Hable español, Fala galego), propaganda do “eu” (a camisola com a imagem dum perceve e o texto Falo galego), propaganda da terceira pessoa (seria A Galiza fala galego), e propaganda do, na minha opinião, muito mais poderoso “nós”. Foquemo-nos agora neste procedimento.
Se repararmos, importantes emblemas de resistência cultural na Galiza continham a voz do “nós”, em regime de auto-referencialidade e de auto-convocatória. Posso lembrar, por exemplo, as duas principais revistas do período republicano, Nós e A Nosa Terra, ambas recuperadas durante o Franquismo. Está também a letra do hino (“a nossa voz”, “o nosso rouco som”), que se cantava nos mesmos atos e com o mesmo valor de oposição do que outros dous hinos civis: as canções adaptadas “Venceremos nós” (chamado comumente “o venceremos”, do espiritual negro “We Shall Overcome”) e o “Não nos hão mover”.
É com esta voz do “nós” que nasceu artesanalmente na Galiza, lá nos remotos anos 1970, o equivalente da propaganda atual dos banners da Internet ou dos “passa-o” dos telemóveis. Nasceu nas ruas Aranda e Falperra de Vigo, nos obradoiros de Edicións Castrelos e de Serigrafía Gallega, onde se imprimiam os populares autocolantes para carros e janelas que, como os GZ de agora, eram marcados símbolos de resistência. O primeiro e mais conhecido era FALEMOS GALEGO (em maiúsculas), que como o intertextual XA FALAMOS, continham o produtivo “nós”. De maneira interessante, XA FALAMOS, no mais puro estilo da publicidade moderna, estabelecia um diálogo cúmplice e otimista com FALEMOS GALEGO, e acarretava uma rica ambiguidade que destacava o sucesso da ação coletiva. XA FALAMOS podia entender-se como resposta à petição inicial (‘Não faz falta que se peça, porque muitas pessoas já somos galego-falantes’) ou como resultado efetivo da petição (‘Agora, graças a FALEMOS GALEGO, já o falamos’). Por último, XA FALAMOS sugeria, polo sentido implícito de “falar” como ‘dizer as cousas ocultas em alto’ (“Aí falaches!”, ou Habla, Pueblo, Habla) o ressurgimento da consciência galega coletiva. E havia um terceiro autocolante, GALEGO NA ESCOLA, que, como Na Galiza, em galego, era um chamado anónimo (não coletivo) a que outros, as instituições, fizessem algo polo idioma.
Em contraste com esta voz de base dos autocolantes, nos anos 1980, durante o governo de Fernández Albor, uma campanha institucional do “tu” empregava a voz da autoridade. Num cartaz a poucas tintas via-se o perfil em contraluz duma jovem grávida, a olhar para o ventre. A imagem ia acompanhada com o texto Fálalle galego, creio lembrar que na parte inferior, em alongados carateres de pau. Potencialmente efetivo, o diretivo com “tu” não foi acompanhado por quaisquer políticas reais para impedir a perda do idioma (além disto, aventuro-me a opinar que na Galiza qualquer imperativo explícito que vem de fora cria mais receios do que adesões). De corte semelhante, nos anos 1990, fora o irreal (e portanto hipócrita) En galego estás no mundo, da mesma época do que o igualmente irreal e ineficaz O galego é útil, cuja contradição interna de sentido levaria demasiadas linhas explicar.
A força do “nós” esteve presente e continua a está-lo em muita da propaganda política ou comercial mais mobilizadora e galvanizadora, aquela que apesar do tempo não esquecemos. Está, por exemplo, no recente Yes, We Can do candidato presidencial do Partido Democrata dos EUA Barack Obama, que resultou eleito; no Ja som sis millons ou Som uma nació do nacionalismo catalão (aqui Somos uma nação, frente a Galiza não é Espanha; pós-facto, acabo de lembrar que também existe Catalunya is not Spain, com um destinatário muito diferente); nos hinos capitalistas jovens We Are The World da Coca-Cola ou No estamos locos, sabemos lo que queremos da Pepsi-Cola; ou no atual Vivamos como galegos da publicidade de Gadis. A listagem da propaganda do “nós” que marcou um fito e pervive na memória poderia continuar.
3. Uma interpretação
Num fundacional artigo de 1927, “The Theory of Political Propaganda” (The American Political Science Review, vol. 21, núm. 3. pp. 627-631), o sociólogo Harold D. Lasswell definia a propaganda como “a gestão das atitudes coletivas a meio da manipulação de símbolos significativos” (p. 627), onde “atitude coletiva” não é em qualquer caso uma “entidade supra-orgânica e extranatural” (ibidem), mas um agregado de tendências e decisões individuais. As relações entre as atitudes e ações individuais e a conduta coletiva (recolhida no “attitudes” de Lasswell) é tema crucial da sociologia que, por outra parte, eu não saberia abordar aqui. Mas parece evidente que na propaganda, frente à voz impessoal (Na Galiza, em galego), ao diretivo em “tu” (Hable español, ou Be All That You Can Be, convite publicitário do exército EUA), e ao individualista “eu” (cujo paradigma é a camisola com I <CORAÇÃO> NY, mimeticamente adaptada a muitos idiomas e temas), a voz em “nós” tem um potencial social que acho, além, acái aos nossos valores culturais de maneiras não aproveitadas pola esquerda ideológica.
A ambiguidade inerente do referente do “nós” (frente ao “eu” ou o “tu”), e mais do nosso “nós” habilmente vazio quanto ao género (o “nosoutros/as” que exclui o interlocutor, também existente em zonas, parece um decalque do espanhol), faz possível a reunião da gente sem uma comunhão unânime (por outra banda, impossível, e patentemente indesejável exceto para os totalitarismos). Por sua parte, o “eu” fragmenta o grupo e reduz o poder da persuasão: para convencer, o emissor do “eu” deve possuir caraterísticas admiráveis ou imitáveis, e/ou grande poder simbólico; a simples agregação de “eus” que emitam, por exemplo, Eu falo galego, não garante um contágio coletivo. E, na minha opinião, a constante da estrutura social galega tradicional não é a fragmentação individualizada, mas a interrelação, concretamente a organização das relações sociais num contínuo de redes hierarquizadas, não em blocos sociais ou geográficos discretos afastados. Quanto à propaganda do “tu”, ela invoca a autoridade das instituições, sempre remotas e adversárias para nós. E a propaganda impessoal não acrescenta nada novo à própria voz neutra do discurso galego tradicional (“É-che o que hai”, “Depende”), e portanto arrisco-me a opinar que não é emocionalmente cativante (há casos notáveis, evidentemente, como o impessoal mas inesquecível Nunca Mais). Fica a voz do “nós”, de novo, com a sua maior força persuasiva e perlocutiva. Mas, como anotação à margem, evidentemente não todo o uso do “nós” é automaticamente efetivo. Na política, hoje apenas a formação Nós-UP o reclama na sua marca de registo, mas o sufixo “Unidade” resta-lhe força: um “nós” social nunca pode ser unânime; e reclamar algo não equivale a detentá-lo. Sinto-o também, mas o lema Todos somos Anxo Quintana não só é mentira, mas também “todos” é “nós” são mutuamente excludentes. E no desafortunado Chegou o momento. Empezamos, o que diz começar é evidentemente o próprio PP, em auto-referência (o PSOE e o BNG levam quatro anos fazendo governo): o “nós” do PP é um “nós” setorial, não social.
Curiosamente, a esquerda política e cultural parece ir esquecendo os valores sociais coletivos (não setoriais) do “nós” para se focar numa voz neutra (política, não social), a do referente imaginado “Galiza”, como se o tecido social necessário para a nação e para a nação linguística já estivesse construído e só restasse dar o grande salto à estrutura política. E, curiosamente, nestes tempos é a direita linguística que pretende clonar a esquerda galeguista e apropriar-se do “nós”, em entranhável contradição com a sua ideologia. Na contramanifestação españolista do 8 de fevereiro, cada pessoa berrava absurdamente Queremos elegir (ou Queremos elixir). Isto é um impossível oximoro, porque para cada pessoa que estava aí os direitos linguísticos coletivos não existem. Só existem os direitos individuais. Se cada uma destas pessoas da direita linguística españolista fosse coerente deveria berrar ¡Quiero elegir! Para isso, permito-me recomendar, não fazia falta reunir-se com outras. Será que talvez, no fundo, até para essas pessoas individuais os direitos grupais, inconfessadamente, existem. Se é assim, é óbvio que o seu “nós” puramente setorial não é o nosso “nós” social.
Por último, quisera aventurar que a propaganda mais efetiva é ainda a que contém simultaneamente um “nós” e um diretivo explícito. Quando o imperativo procede do próprio coletivo que se autoidentifica como tal, em permanente autogestão, e se dirige a ele próprio, parece mais difícil escapar individualmente à obviedade do chamado. E, num processo de retroalimentação, é a própria forma linguística da propaganda que constrói tanto o referente coletivo quanto o objeto Língua. Ambos elementos (auto-referencialidade e diretivo) reúnem-se nas singelas formas Falemos e Escrevamos, sem qualquer “em”.