Publicado no Portal Galego da Língua • Em Vieiros
Levo algum tempo procurando imaginar o meu último texto sobre a língua (não jogarei com o sentido do título: simplesmente, “derradeiro” não é eufónico). Espero que esta seja a oportunidade. Peço desculpas por referir-me a mim próprio, mas é do que ignoro menos.
Durante anos, escrevi muitas palavras sobre a língua, às vezes sem saber exactamente porquê. Suponho que era arrogância, e uma ânsia infantil. Estou ciente de que nem todas as palavras eram minhas: tudo está já dito, em diferentes ordens e com diversas ênfases. Agora é imperativo resumi-lo, e, para as pessoas que quiserem, agir em consequência. Não citarei nenhum autor ou autora, em parte por preguiça, em parte por não deixar de citar outras pessoas. Que cada um(a) se reconheça no que digo, ou não.
A ideia elementar é que a Língua é sempre uma questão de classe, e que, enquanto houver classes, haverá sempre alguma questione della lingua. Que não se saiba isto é terrível sintoma da descerebralização maciça. E que outras intelectualidades noutros países não abordem a questão é responsabilidade delas. Mas, na Galiza, país existente e para muitas pessoas nação desejada, a responsabilidade das elites chegou longe demais. Penso que repeti muitas vezes que não há tempo. Não resta tempo histórico, sobretudo quando as elites distorcem as prioridades, demitindo até do seu trabalho pago. Por isso só resta a maior coerência possível. Lembremos, então, o Processo e os resultados actuais.
Durante trinta anos, o chamado isolacionismo demonstrou o seu fracasso até para construir a sua miragem de língua independente na Galiza. Atribuir vontade deliberada a todo o sector seria excessivo. Mas o resultado é que a sua glorificação das falas e do (inexistente) poder linguístico do “Pobo” deu como produto um fantasma, e muito, muito discurso auto-alimentado.Para alguns dentro do sector, este era precisamente o objectivo: espanholizar definitivamente a Galiza. Quanto aos outros, ou “picaram” na trapaça ou preferiram não querer saber o que se avizinhava, porque os corpos vão envelhecendo, envelhecendo, e, nalguma altura do trajecto, um descobre que não deve desaparecer da cena sem fazer ou dizer algo pola Pátria. Aqui e alhures, o sacerdócio sempre uniu mais do que a religião.
Por sua parte, um sector do único movimento linguístico-cultural galego actual, o chamado reintegracionismo (o isolacionismo já não é movimento), continua a arvorar também a diferença linguística como salvação. É um grave erro, porque acredita que a consciência comum sobre cada Língua se forma sobre a base de um par de formas ou sons particulares. Esta posição ignora que a Língua, no capitalismo, é um instrumento necessariamente totalizador. Ou há Língua, ou não há. E na Galiza não resta tempo para que continue sem havê-la. Alguns reintegracionistas continuam a querer fazer língua, mas frequentemente a fazê-la mal. A diferença entre esta posição e a “normalidade” linguística é que na “normalidade” é a Língua que faz e constitui os falantes, e sobretudo os escreventes. Poderemos rebelar-nos e demonstrar com as nossas práticas cada idiossincrasia falante ou escrevente, sim, mas isto pouco adianta: a Língua, como Solução Final, é um dispositivo de categoria social, não individual.
Até aqui, a superfície da diagnose. Serão argumentos brutais, mas não são novos. A questão, a verdadeira questione della lingua, é o que terá a ver tudo isto com a emancipação da gente. Porque só se se reconhecer um inegável esforço de muitas pessoas durante tantos anos por pretender fazer Língua e Cultura, haverá que lhe procurar a este esforço um sentido, enquadrável dentro de um projecto soberanista mais amplo. E o sentido de muitas acções para (pretensamente) construir Língua simplesmente não existe. Muitas são iniciativas esporádicas, recorrentes, e desligadas de qualquer concepção emancipatória. São miragens de auto-satisfação: sacerdócio série B. A imposição (imposição, sim: a Língua é sempre uma imposição) da Língua portuguesa na Galiza só tem sentido se se conceber como sintoma de uma poderosa resistência. Por exemplo: é incompatível proclamar defender a língua submetida (na versão que for) de um país submetido e, simultaneamente, ser monárquico. Ou “democrata”. Ou liberal. Isto é tão incompatível como combater o desflorestamento mas não o genocídio. Porque, em ambos casos, há uma distorção das noções de emancipação e soberania. Mas já vemos que o Discurso hegemónico sabe tornar essa incompatibilidade em necessidade, tornar os assuntos culturais em prioritários e os materiais em acessórios.
Durante séculos, a Galiza foi, tem sido, e é uma formação social mantida na maior das pobrezas, ignorâncias e decrepitudes. Como consequência (ou como causa), esse “Povo” que tantos glorificam manifestou e manifesta alguns dos valores mais retrógrados imagináveis. Calculo que outros “Povos” também são assim, mas não faço parte deles, e não é o meu papel assassiná-los: tenho direito é primeiramente de assassinar o “meu” próprio “Povo”, como ele, por definição, me assassina a mim.
A Galiza é uma formação social real composta por redes de relação, leis e trocas materiais. E, na sua maioria, aceitou passivamente por ignorância o ditame da Ciência Filológica Galega sobre a existência da “lingua galega”, como os ignorantes fundamentalistas aceitam, por exemplo, a mentira deliberada do criacionismo divino. (Outros ignorantes aceitamos outros dogmas, sim). O “Povo” aceitou isto, talvez, não só por inseminação ideológica, mas por inferioridade social e cultural, e por infantilismo. Depois de séculos de verdadeira castração mental (não é metáfora), uma grande parte da “Galiza” chegou a acreditar que os povos realmente machos devem ter Língua Própria, e que qualquer cousa distinta seria derrota.
A única alternativa soberanista racional é dar volta a tudo isto. Se queremos “normalidade”, não se pode deixar a língua nas mãos do “Povo”, e muito menos nas mãos e computadores das “suas” elites (incluo-me, como parte do privilégio). Para elites, já temos os exércitos. Foi Pessoa que sentenciou essa aberração de “A minha pátria é a língua portuguesa”, não é? Substituamos “portuguesa” por “galega”, ou “galego-portuguesa”, e a aberração é comparável. O Povo e as elites são as duas faces da Pátria, e esse é o problema. Cada Pátria imposta preexiste e é eterna: uma inescapável mácula mental. Mas a Língua é um instrumento material totalitário e contingente: a sua forma não conta, o que conta é o seu poder. Então, para que inventar uma forma nova da Língua? Por isso, e por muito mais, o Povo galego, e igualmente as suas elites, estão deslegitimados pola história para fazerem nada deliberadamente com a língua: que a falem, que a escrevam e que a leiam em todo momento, que a naturalizem para sempre expulsando de vez o verme mental de España, sim. Mas que não a altarizem como essência da Pátria, ou continuaremos perdidos.
A alternativa à Pátria é a soberania da gente e da mente. E isso acarreta deixar a língua em paz, e submeter-se a ela para esvaziá-la de sentido. O racional é submeter-se à língua que tocar, seja esta a que for. Má sorte (ou boa, ou indiferente) que a língua que tocou na Galiza tem sons e letras absurdos e se chama portuguesa! Podemos trocar-lhe o nome e fazer o exercício de submissão mais deglutível ou risível (as empresas conhecem bem o efeito placebo de trocar-lhe o nome a um mesmo produto para vender mais). Mas isso pouco adianta se esquecermos o objectivo da soberania da mente. Libertar-nos do estigma da língua para começarmos a pensar é prioritário. Só assim poderemos compreender intimamente que qualquer forma de miséria humana, por exemplo, é muito mais importante do que a manobra infantil de querermos impor um acento ou uma terminação sobre um conjunto de símbolos.
Para mim, já tudo está dito. Ocasionalmente, poderei ainda sentir ânsia de querer escrever sobre os últimos acontecimentos patéticos relativos à língua do país. Nos próximos meses, e até anos, haverá actos, e declarações, e políticas encaminhadas a alimentar a cortina de fumo da língua: Afinal, os profissionais da propaganda têm o seu trabalho que cumprir. Haverá pseudo-polémicas sobre um incontinente e falacioso “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”. Haverá liortas, e exclusões, e vitimizações, e vitimismos, e cleptocratismo, e miragens, e declarações altissonantes, e louvanças, panegíricos, martirologias, grosserias, e até alguns argumentos racionais. Haverá flagrantes ataques de España contra a língua portuguesa da Galiza. Por haver, até continuará a haver duros ataques tácticos de galegos espanhóis contra a “lingua galega” que eles próprios inventaram: dirão, de novo, que se está a asfixiar a liberdade de usar o espanhol. E então todos os sacerdotes de todas as cores sairão às palestras jungidos em defesa da única língua para eles possível, da “Lingua Galega”, sem pisar-se mutuamente as túnicas. E será o fim da “polémica”. Periodicamente, haverá também conversões linguísticas: haverá quem vê por fim a outra Luz normativa, a outra forma da Força (sobretudo a luz ciciante da Força Verdadeira, que é a vermelha), e brandi-la-á por primeira vez com esperança nas suas mãos, na sua fala, nas suas terminações, nos seus escritos. Em resumo, continuará a haver mares de palavras sobre a língua na Galiza. No entanto, o “Povo” sem inteirar-se. E os visitantes extraterrestres (“estrangeiros”) continuarão a admirar-se ou a rir de tanta energia para nada.
Para nada? Bom, eu não sei (como poderia saber?) se de tudo isto algum dia sairá por fim o catalizador social que acabe de vez com a besta e nos permita pensar. Suponho que sem a soberania mental e real da gente, sem a independência, será impossível. Independência quer dizer que cada pessoa e a gente vai fazer o que queira, e se associar livremente com quem queira, e tentar manipular a única Língua como queira. Independência significa que, no momento que houver qualquer forma de exploração, submissão, opressão, dominação, de qualquer pessoa ou grupo sobre outros, não haverá independência. Só na independência e na soberania da mente poderíamos combater a Língua noutros termos, desde outras atalaias de razão e de acção. No entanto, o racional e modesto é reconhecermos todas as formas que está a tomar a derrota, abraçarmos definitivamente a esmagadora realidade da língua talvez mal chamada portuguesa com todas as suas letras, e das falas nossas com todos os seus sentidos, e por fim (quem quiser) dedicar-se a tentar compreender em verdade a existência da miséria, da guerra, da doença e do assassínio: a existência do Capital.
Talvez este texto tenha comentários e críticas. Se houver, agradeço-os de antemão. Mas, contra o meu costume habitual, e lamentando-o, desculpem-me se eu não responder: não há tempo.