Publicado em Vieiros
Não pertenço a qualquer formação política. Não acredito na democracia. O meu voto nunca deu a vitória a qualquer partido. Não sou politólogo. A minha formação teórica é escassa. Mas fum formado politicamente, lá polos anos 1970, quando ainda existia o ideal comunista e libertário, na convicção de que o que conta são os projectos e os factos, não as individualidades. Infelizmente, a história eleitoral do Reino e da Galiza deu-nos amostras da facilidade com que a gente, órfã de si própria, faz abrolhar como fungos mini-Francos eternizados no poder: Jordi Pujol, Felipe González, Manuel Chaves, Francisco Vázquez, José Castro ou o último Iribarne são apenas alguns exemplos de homens (todos homens) que se aportronaram em diversos Conselhos Directivos de España durante décadas, verdadeiros funcionários da gestão do capital, fieis emuladores do patriarcal princípio monárquico que nos rege. Não sei se as suas gestões na perpetuação da injustiça social foram piores do que outras soluções teriam sido. Mas os itinerários de todos estes homens foram e ainda são exemplos de uma triste, quase histriónica versão da figura do político. Nenhum colectivo humano deveria permitir que uma geração inteira de jovens cresça sob a sombra de um líder no poder durante décadas. Essa ideologia do indivíduo e da testosterona foi sempre caldo dos alçamentos. Nenhuma pessoa que ordene durante tantos anos pode ser trigo limpo. A nossa história e presente monárquico atestam-no.
Não vou fazer qualquer chamamento explícito a qualquer voto. A minha mente e a vossa inteligência não o permitiriam. Mas o que está em jogo no 19 de Junho não é a Galiza, senão a necessária queda das estátuas. A figura que ainda se impõe diariamente sobre nós representa a trajectória das armas. Representa uma tétrica silhueta chinesa sobre a parede do quarto antes do sono. A sua palavra molesta, moldada por um inominável pensamento, invoca os anos mais escuros de todas as pré-guerras, quando se coze o ódio que só favorece sempre os poderosos. O último Iribarne escuda-se no símbolo do macho derrotado entre a manada, a proferir os seus derradeiros estertores ideológicos. O último Iribarne é fiel produto de uma terra penosa que deve morrer.
Antes havia, tínhamos (que estranho soa esse “nós” inclusivo) um ideal. Lembro férteis conversas de unidade com homens (sempre homens) então progressistas, que agora se disputam um pedaço de voto ou uma prebenda oficial. Um, que uma vez há muitos anos me chamou “cristão” (a mim?) quase como um insulto, agora segue fielmente o seu particular messias marxista, cego ao retrocesso que tal isolamento significa. Outro, que dirigia com grandes barbas as nossas reuniões de célula clandestina, é agora pontual analista eleitoral para a direita. Outro que admirava com saudades os generais comunistas do 36 acompanha o último Iribarne nas suas viagens coloniais às Américas. E assim por diante, até cobrir a imensa nómina dos vencidos.
No entanto, foi esquecendo-se a razão utópica que mora irremediável no interior do cérebro humano. E por isso agora periga até o simples derrubo colectivo das estátuas. Já sabemos que botarmos abaixo um homem e um emblema não significa instaurarmos qualquer utopia. É um singelo acto de cordura, uma necessária ablução mental. E, infelizmente, este mês não haverá muitas maneiras para fazer isto. Nomeadamente, só há uma. Já haverá tempo noutros meses para derrubarmos outras estátuas, serrando-lhes as pernas com efeito, como se precisa. Porque, se não acabarmos com esta efígie, um outro mini-Franco e um novo projecto económico, ainda mais brutal, abrolharão em pouco tempo das entranhas da primeira. Quase ninguém fala disto, mas esse projecto chama-se Feijóo, e o seu mundo é perigoso. Engana-se quem pensa que, nesta circunstância concreta, a coerência ideológica de votar no ineficaz (sempre), e portanto de perder a oportunidade do derrubo, revelaria ainda mais contradições no Sistema. Um voto é um aberrante gesto cúmplice, já o sei. Mas às vezes não é louco votar polos traidores. Sobretudo quando, simultaneamente, a pureza ideológica tampouco consegue construir na base a sociedade civil que se precisa.
Por isso, o último Iribarne merece desaparecer pola esquina direita da televisão quando esta percorra os escanos de simples deputados e aí esteja ele, decaído, talvez a perguntar-se pola origem do seu fracasso, a perguntar-se quando começou ele a ser um fantasma de si próprio: Na Falange? Em Palomares? Quando sequestrava a palavra impressa como um triste trapeiro? Num majestoso Parador erguido a vinte metros da miséria? No Paço de Meirás, com o seu pai Francisco Franco? Manipulado polo rei Juan Carlos? À sombra de Arias Navarro? No sangue brutal de Gasteiz? Na crise das vacas loucas? Asfixiado de piche? Onde está o gérmen do longo fracasso do último Iribarne? Por que lhe será tão patética a derrota? Por que aceitaria ser sempre um títere? Quem dos seus o traiu, Pai, como a um Cristo contra-natura? O último Iribarne merece desaparecer do televisor como um apagado mamute, em silêncio, em tons de cinza, sem estátuas a cavalo, sem intensas fotografias, sem amigos, sem controle dos seus próprios actos, recolhido no seu erro.
O Verão anseia uma notícia agradável. Talvez não seja assim, porque afinal só a História escreve os textos. Mas, nalgum momento, será fácil esquecer o último Iribarne. Até para os seus lacaios será um alívio.