Publicado no Portal Galego da Língua
Assistim ontem a parte do interessante I Fórum da Língua organizado polo Movimento Defesa da Língua, com a presença de numerosos colectivos luso-reintegracionistas do país. Estivem como público nas sessões sobre ensino obrigatório da língua, e sobre locais sociais. Uma das preocupações condutoras do que ali se falou referia-se, naturalmente, à questão central do luso-reintegracionismo: como espalhar o uso da língua! Isto foi explícito na intervenção de Ignácio Orero, o representante da Fundaçom Artábria na mesa sobre locais sociais: ele perguntou retoricamente pola (inexistente) “fórmula mágica” para promover a ré-galeguização. A experiência comum relatada por várias associações é que a tímida transmissão do idioma entre os jovens espanhol-falantes ou neo-falantes que acodem aos locais se dá por “osmose”, e que uma “osmose” semelhante se dá também entre os próprios activistas da língua nos locais, que vão incorporando-se ao luso-reintegracionismo gradualmente, por pura “naturalidade”.
Com efeito, esta “osmose” é parte consubstancial no processo de naturalização social do idioma. Mas, em que consiste exactamente este processo, do ponto de vista sociolinguístico? Como se pode incidir nele? Como se pode acelerar a transmissão no trabalho de base?
Para abordar este processo, é fundamental compreendermos, focarmos e privilegiarmos a noção de rede social ou retícula social, e compreendermos também o valor da língua como recurso transmitido socialmente. Uma rede social é um conjunto de pessoas ligadas por relações sociais mais ou menos habituais, e conectada com outras redes por linhas mais ou menos fortes ou débeis de relação também social. Cada pessoa faz parte de múltiplas redes sociais interligadas. Teoricamente, cada um(a) de nós pode ser concebido/a como o centro de uma rede, que conecta com outras. Frente à noção de grupo, que destaca o indeterminado (um “grupo” é como um conjunto de pontinhos movendo-se soltos dentro dum círculo, dum “conjunto boleano”), a noção de rede destaca a relação e a troca e circulação de recursos: materiais (como objectos, bens) e simbólicos (valores culturais, ideologia, língua). Uma rede pode ser vista, assim, como um conjunto de pontinhos (pessoas) ligados por linhas que simbolizam a sua interacção mais ou menos habitual ou mais ou menos frequente. A maior interacção entre as pessoas, maior reforçamento das linhas de relação. E, enquanto o solapamento de “grupos” consiste na sobreposição desses círculos, desses “conjuntos boleanos” a que algumas pessoas “pertenceriam” e outras não (como se “pertencer” a um “grupo” consistisse em levar um boletim de identidade no cérebro), a ligação (mais ou menos débil ou forte) entre redes descansa no agir dos indivíduos em mais de um esquema de relações bi-direccionais. Contrastem-se estas duas representações dos “grupos” e das redes:
A transmissão da língua e da cultura ao longo destas redes só ocorre e só pode ocorrer a meio das práticas sociais, que são sempre, práticas de intercâmbio de algo: actividades conjuntas, conversas, o empréstimo dum objecto cultural (livro, revista, música, software), que adquire assim um valor simbólico: não é só o livro físico o que se troca, mas o que contém, e até parte da história do seu itinerário de circulação. Por exemplo, amiúde estamos tentados a aceitarmos mais facilmente um objecto cultural que chega de uma pessoa “de confiança” do que o mesmo objecto se chegasse dum desconhecido ou dum “adversário”, porque o objecto transporta com ele o simbolismo duma cadeia de relações. Certas seitas religiosas sabem isto muito bem!: deixam-che na casa um livrinho, que nem lês, mas que é pretexto simbólico para a breve conversa que tivestes na porta e para futuras conversas esperáveis sobre o mesmo pretexto. A Opus Dei totemiza o seu Camino como objecto de troca, e nos grupos dos partidos marxistas circulava e/ou circula o Livro Vermelho de Mao, o Que Fazer, o Marta Harnecker…
A “osmose” na naturalização social da língua é fruto, portanto, da circulação de recursos (incluída a língua) entre participantes duma rede social, e da sua eventual passagem para outras redes. Por isso, a presença de materiais lusófonos e lusógrafos nos locais sociais (já não materiais “galegos”, mas galego-portugueses) é, como veremos, crucial para a transmissão do reintegracionismo.
Acho que é fácil, portanto, compreender a função da circulação de recursos quando estes são materiais. Ora bem, como entra especificamente o recurso e prática da fala neste processo? Visto que a fala não é “material” (as palavras têm uma base física acústica, claro, mas não são permanentes), como se “distribui” então a fala ao longo das redes? E para que serve?
Com efeito, quando eu falo em galego-português (“galego reintegrado”) não transmito materialmente nada: depois de escutar-me, o meu ouvinte não “possui” materialmente nada novo. Se era dominantemente espanhol-falante, não deixa de ter esta competência em espanhol. E, sim, se era também galego-falante, aspectos da minha competência –um uso linguístico, uma construção, um pedaço de calão– podem ser assimilados por ele/a, e repetidos posteriormente. Mas nada disto é material. Em função de que processo social, então, podem estes actos de fala contribuir para espalhar o idioma entre falantes não habituais, se, afinal, a escolha de um ou outro idioma vai continuar a ser um acto individual? Um livro em português que nos emprestaram há que devolvê-lo, e contribuir assim para o reforçamento das relações de rede. Mas, uma conversa escutada em português há que devolvê-la também?
É aqui onde entra a noção de prática social, e da fala como prática. Frente a um acto individual (como escovar-se os dentes, por exemplo), uma prática social é um acto que manifesta valores colectivos, sempre interpretáveis no contexto (modernidade ou “tradição”, utilidade ou inutilidade, camaradagem ou hostilidade, normalidade ou anormalidade, urbanidade ou ruralidade, resistência ou acomodação, poder ou subalternidade), manifesta também ideologias e fragmentos de identidade(s), relaciona indivíduos e portanto cria e reforça redes, e (de maneira fundamental) cria expectativas sobre as próprias formas das relações futuras, incluída a língua utilizada. Por exemplo, se certa conversa de grupo se desenvolveu maioritariamente em galego, a língua associa-se de maneiras subconscientes a outros componentes da situação: as pessoas, o lugar, o momento, o tema, o tom ou “humor” geral, os objectos manipulados como recursos (bebida ou comida, revistas), etc.
Neste sentido, é frequente –e por isso é fundamental para a naturalização do idioma– o facto de a língua utilizada numa primeira interacção com uma pessoa ser com frequência a língua dominante dessa relação, quer dizer, desse fragmento de rede. O interlocutor associa aspectos da prática do falante com o contexto, e também com aspectos da “identidade” do outro falante e da sua “ideologia” (dos valores que dão certo tipo de coerência aos seus actos). Certo, a “identidade” não pré-existe: não somos o que “somos”, mas o que fazemos que somos (“somos” muitas cousas à vez, mas fazemos-ser algumas destas cousas selectivamente). E, certo, a “ideologia” não se vê: faz-se também, através das práticas. Mas, precisamente por isso, na mente do nosso interlocutor (que é onde se constrói o social), geram-se expectativas não só sobre como nos vamos comportar no próximo encontro (que práticas vamos levar a cabo), mas também sobre quais serão as próprias práticas sociais mais adequadas dele ou ela. E assim, em encontros posteriores, o que se vai “trocar” entre as pessoas vão ser também as palavras que se ajeitem a essas expectativas de conduta. Inclusive nos casos em que ambas pessoas sejam no fundo (por extracção linguística) espanhol-dominantes, se a sua primeira conversa foi em galego, é muito possível que esta prática do galego se mantenha entre eles… se o contexto continua a ser favorável.
Mas, o que fazer precisamente para que esse contexto continue a ser favorável? Porque, o que acontece numa situação bastante gueotizada do galego, é que as ligações entre o conjunto de redes jovens galegófonas e o conjunto de redes sobretudo hispanófonas são muito débeis. Quer dizer: Existe uma “fronteira” na ordem sociolinguística que consiste em que amiúde as práticas galegófonas dos locais sociais e outros âmbitos restritos não transcende para outros âmbitos porque não há suficiente fluidez e sobreposição de redes: numa cidade, os poucos jovens galegófonos reintegracionistas são simultaneamente membros da mesma associação cultural, do mesmo grupo de amigos, do mesmo grupo político. Fazem-se, portanto, redes densas (e intensas), mas pouco ligadas com outras. Os contactos com outros tipos de pessoas são mais débeis e ocasionais. E, embora a prática monolingue continue fora da rede “guetoizada” por parte dos indivíduos, não existe Aí Fora (fora das paredes do local social) suficiente densidade de práticas galego-falantes como para produzir a “osmose”. Por contra, os outros “guetos” dos jovens espanhol-falantes que se reúnem noutros lugares não são tão guetos: as suas práticas (a língua) encontram-se e contribuem para consolidar outras redes sociais: familiares, profissionais, do mundo público, e, sobretudo, da grande rede social que é o imaginário colectivo de “España”.
A questão fulcral, portanto, é como ampliarmos gradualmente as mais escassas redes jovens onde domina o galego, e conseguirmos que a fala e os recursos de língua associados (escrita, música, cinema, software) ultrapassem essa fronteira invisível. A questão não é só que os locais sociais cresçam por dentro, mas que as suas práticas e significados saiam fora. Estas duas gráficas poderiam representar idealmente o começo do processo:
Em circunstâncias favoráveis, com o estabelecimento de novos contactos pola rede lusófona, a prática da fala deveria estender-se. Nas circunstâncias mais desfavoráveis, não aconteceria nada novo. Mas uma cousa é evidente: a fluidez entre redes não pode ser negativa para a lusofonia, pois em geral a prática monolingue entre essas redes está tão assente que, a partir desses centros de irradiação da língua, não haveria risco de experimentar o processo contrário (assimilação ao espanhol).
Para favorecer este processo ideal, a circulação de recursos que acompanha a fala lusófona deve ser suficientemente cativante para os membros das outras redes como para que, de pouco a pouco, poda ser alternativa efectiva às culturas anglófona e hispanófona dominante. Deve produzir-se uma identificação crescente entre estes recursos lusófonos e o imaginário da “Galiza”, e, mais ainda, da “Galiza jovem” (e mais ainda, duma Galiza internacional!), sem por isto exigir uma total viragem na adscrição social (identificação) dos neo-falantes. O negativo “efeito gueto” reforça-se quando determinada prática (a fala lusófona) vai indefectivelmente unida a uma dada “ideologia” e a uma dada “identidade” que se tornam em contra-senhas de adscrição. Por exemplo, quando um neo-falante potencial não compartilha aspectos importantes das “ideologias” e “identidades” dos seus interlocutores numa rede galegófona fechada, e quando estes valores estão ferreamente unidos à prática da língua, pode ser mais fácil para o neo-falante potencial assinalar e destacar o seu posicionamento não mudando de língua: mantendo-se no espanhol. E, de maneira complementar (ainda que poda soar paradoxal), em circunstâncias específicas a prática monolingue em galego sem fissuras perante um neo-falante potencial pode não ser a melhor táctica para um necessário reconhecimento mútuo e posterior convergência na lusofonia: falar a linguagem da outra pessoa às vezes transcende falar numa língua dada, e certos usos muito pontuais e simbólicos do espanhol podem favorecer uma inicial linguagem comum.
Em conclusão, é tarefa das associações de base e locais sociais desenharem as tácticas concretas para a consolidação, alargamento e ligação das redes lusófonas habituais, também fora dos locais. Para começar, precisa-se, acho eu, duma quantidade maciça de materiais lusófonos e lusógrafos atraentes que veiculem as relações sociais, face a obter-se uma maior visibilidade da língua como referente natural das culturas urbanas. É importante, por exemplo, que destes materiais se vá destilando e utilizando a necessária linguagem específica (o calão jovem) que veicule novas relações de rede. Estas utilizações simbólicas das gírias luso-brasileiras, inseridas na fala galega e até no espanhol, invocam inconscientemente um distinto imaginário.
E para isto também se precisa, sem dúvida, da articulação efectiva com outras redes lusófonas sólidas ali onde se dão com toda naturalidade: em Portugal (por pura proximidade geográfica e social). O intercâmbio de actividades e visitas de pessoas com outros locais sociais e associações de base de Portugal, por exemplo, seria um bom instrumento para as associações contribuírem para a construção dum novo imaginário com base real (não apenas mítica), talvez mais efectivo do que qualquer umbiguista acto minoritário no que estão ou estamos os de sempre.
Apesar de que dalgumas perspectivas se queira negar, do que estamos a falar é em definitivo do contributo “de abaixo” para a construção duma língua nacional, até quando por ideologia se recuse chamá-la assim. Porque uma língua nacional não é a língua duma “nação”: é uma língua internacional. Evidentemente, sem trabalho de elite “de acima” por parte das instituições, partidos e “grupos” (quer dizer: redes!) dirigentes, nunca haverá língua nacional neste país. Mas, se por acaso se está a caminhar nessa direcção, quando a situação madurar (digamos, daqui em vinte anos), se não houvo antes caldo de cultivo “de abaixo”, poderá existir tal vazio de língua portuguesa nos grupos mais jovens que se encontrará maioritariamente ainda mais resistência a ela do que agora.
Mas esse é um segundo capítulo por escrever. Se há interesse, também o podemos debater.