Publicado em A Nosa Terra 1008, 15 Novembro 2001, p. 16 • Em NON! — cultura e intervenção
Regresso dos EUA logo de um mês de sofrer o carbúnculo mental e as rodas desinformativas do Pentágono expostas na CNN e na FOX News, Coca-Cola e Pepsi-Cola respectivas (ou vice-versa) para a nossa induzida sede mediática. A maquinaria económico-informativa desse país tem conquistado o pensamento público. O discurso sobre o “terrorismo” foi sequestrado habilmente polo poder para instaurar o medo e a vigilância mútua, o qual para nós não é nada novo. A consciência crítica é uma ilha esmagadora, e só se encontra na internet (onde aprendo os meus dados) ou na conversa. A CNN produz explícitas circulares internas onde se instrue aos informadores a desactivarem qualquer notícia sobre “danos colaterais” em Afeganistão com expressões do tipo “Porém, os talibã causaram mais de 4.000 mortes no maior atentado da história”, ou “Porém, a responsabilidade última destas mortes recai na rede assassina de Ben Laden” etc. etc. O Pentágono mercou por milhões de dólares os direitos de todas as imagens da região tomadas polo satélite civil Ikonos (muito mais preciso do que os satélites espias), para impedir a sua compra e difusão polas cadeias de TV. A imprensa reproduz fielmente as palavras do governo e infielmente as dos “terroristas”. Aqui (aqui é todo o mundo) também é assim, não nos enganemos: morre mais gente em Rússia ao ano de carbúnculo e EL PAÍS não enche as suas páginas multimédia sobre como não apanhá-lo de uma cabra russa que nos chegasse por correio. Terror, sim: sobretudo o da mentira e o disciplinamento.
O sociólogo dos média Robert McChesney explica como os meios informativos foram de pouco a pouco passando do profissionalismo das primeiras guerras fotogénicas à submissão nesta mal denominada “guerra contra o terrorismo”. Umberto Eco confirma em Der Spiegel as palavras de Berlusconi sobre a “civilização ocidental” frente ao “Islã”, reproduzindo mesmo contra as suas melhores intenções as dicotomias oficiais entre Nós os cristãos velhos e Eles os muçulmanos, que viriam a utilizar as “nossas” escolas. Ninguém comenta que os acontecimentos actuais são resultado directo de a gente acreditar em deus e no mercado. Ortega, Beiras, escutem, por amor desse deus: no capitalismo as eleições sempre se perdem.
Apesar da submissão geral, alguns intelectuais advertem do perigo duma possível e devastadora guerra mundial. Eis o elemento crucial que distingue este episódio do continuado conflito de Oriente Médio e Ásia Central. É evidente que se trata de violência polo controlo económico, do gás e das reservas de petróleo: calculam-se 50.000 milhões de barris em Kazhikstã (superiores aos 30.000 milhões da Arábia Saudi), que deverão ser conduzidos por um oleoduto cujo traçado mais directo passa por um Afeganistão dócil. Também se trata dum combate pola imposição dum dado modelo de “globalização”, e, como sempre, pola sujeição das mentes das pessoas à lógica da morte. Mas o preço a pagar é muito alto, tanto que poderia exceder os cálculos do establishment ocidental. Colin Powell, que orquestrou a Guerra do Golfo, aparece agora como “moderado” tentando impor contenção; por isso mesmo está desaparecido. Uma eventual extensão dos ataques a Iraque (quer dizer, a intensificação dos já vigorados desde há dez anos) poderia ser a escusa que procurasse o outro integrismo económico, o árabe, cuja rede de interesses na região excede toda descrição. Ou o nazismo judéu, que já prometeu responder com armas nucleares se o regime de Iraque atacava Israel com bactérias ou venenos. E no elo pré-tecnológico da cadeia, os anciãos paxtuns que cruzam a inexistente Raia seca desde Paquistão para se unirem aos paxtuns afegãos não o fazem em apoio do regime talibã: fazem-no contra um inimigo genérico, como o fizeram contra os impérios britânico, zarista e soviético, na procura da dignidade e a preservação da sua longa história. Não estou a ser essencialista das identidades, porque aborreço que no seu nome se cometa qualquer guerra, que supõe o máximo culto ao corpo (matar corpos alheios para conservar o próprio). Tento simplesmente explicar porquê atiram velhos fuzis kalaxnikof contra opulentas bombas BLU: sempre a mesma máscara da morte.
Estamos num ponto de inflexão na história da humanidade. Penso sinceramente que aqui o “nós” é pertinente, e não se refere a qualquer entidade nacional ou grupo cultural, como “ocidente” ou “o islã”, essas falácias. Refiro-me aos humanos. Estamos provavelmente no momento mais perigoso desde a invenção do machado de pedra. E não há dous lugares neste duelo, não há duas opções. Às vezes –confesso e admito– nas guerrinhas diárias, há dous lados, sobretudo um o do papel, onde se escrevem cousas de palavras, e outro o das balas, onde se mata totalmente. Mas diante desta guerra só há um lugar possível, uma única opção, a que habita no pensamento ético (marca primordial do humano), a opção que ilumina a nossa utopia razoada. Todo cérebro pode imaginar essa utopia da razão: isso é suficiente para persegui-la. A outra opção, a inconcebível, não é opção: é o vazio. Pode que o vazio atómico não devore todo mundo, e os restantes ressurjam ou ressurjamos após do fungo nuclear dos búnqueres da consciência com mais terror nos olhos e uma ingénua vontade suprema de não repeti-lo. Mas isso mesmo afirmou muita humanidade depois de Nagasaki e Hiroxima, os maiores atentados terroristas da história. E, já vêem: bomba sim, bomba também, a história é uma náusea infame que se repete. É hora de mudá-la, de sequestrar a Deus e os seus sinónimos antes de que nos abrasem a todos nestas torres gémeas de Kabul, neste cárcere de lume onde escrevemos poesia cegada pola burka, onde cozinhamos tristes alimentos e esquecemos, cada vez esquecemos o futuro que levamos na cabeça, por um pouquinho de moedas ou de aplausos.