Prólogo para o livro-catálogo da exposição Berta Cáccamo. Pintura 1999, Galeria VGO, 26-11-1999 – 5-1-2000. Vigo: Galería VGO, pp. 12-13.
Muito antes que a linguagem fosse isto tal como a conhecemos, quero imaginar que povoavam as estepes e os escassos rios clandestinos onde abrevavam os humanos formas geométricas primordiais, traços preliminares do sentido. À tarde, quando desce um sol equatorial e caem as capas vermelhas do céu sobre o cansaço que produziu a caça, alguém teria subido ao cimo da montanha preta a contemplar lá embaixo o itinerário das formas, dissimuladas no mato, a aboiarem no ar como suaves naus pré-históricas a pouca altura das ervas da savana, ou a pousarem na superfície da lagoa à maneira de borbulhas mansas. Então, iluminada por uma enorme empresa de futuro, conhecendo já intimamente os ciclos das luas e a vastidão das possessões da sua espécie (o mundo), essa mulher antiga que subira até ao cimo da montanha teria proferido os primeiros tipos de palavra como réplicas das formas que admirava. E para ela o óvalo do fruto foi uma vogal seguida de uma consoante suave. A linha ubíqua dos ramos das árvores, do curso dos rios, do quebrado rego vermelho deixado pola presa ferida, foi uma vogal delgada que saía da necessária dor de matar um animal humilde. E com o súbito troar que precedeu a chuva, a curva das nuvens foi uma sucessão vibrante nesse final da boca onde aninham os medos e cresce à noite a mancha duma ânsia e ela procura por toda a obscuridade os olhos fitos doutro corpo para amar-se. E, assim, nas formas preliminares do sentido surgiram simultaneamente a voz, os ícones e o gesto, que são a mesma matéria e fazem parte da mesma matéria do assombro que buscamos.
Toda a noite choveu sobre o cimo da montanha e a mulher antiga abraçou-se a outro corpo a quem instruiu na paciente tarefa de pronunciar as formas: o óvalo, a linha, as capas sinuosas que são como serpes ou rios contíguos com si próprios, a pacífica manada de pontos negros imóveis na planície a aguardarem a saída do sol, inocentes à mão que os converteu em signo. À manhã as duas pessoas já sabiam falar as formas básicas, e logo essas pessoas foram três, e logo várias. E quando enfim cessou a chuva, nas poças imediatas os humanos reconheciam já a diferença entre um som ondulado, dous sons ondulados que com cautela se tocam, a rigidez da consoante longa matada polo raio. Atónitos e ingénuos, os humanos apontavam para as formas ou recolhiam-nas na provisória cunca das mãos e as formas caíam-lhes das mãos e eles pronunciavam-nas, e davam-lhes o nome fundamental que chegou até nós oculto entre a inútil folhagem do discurso. Assim foi a empresa primordial, que demorou milhares de anos antes que a linguagem fosse esta selva e trapaça tal como a conhecemos.
Une-nos a aquele remoto cenário o assombro e um tipo de soidade primigénia. Essas paisagens desoladas onde se esconde o princípio das cousas continuam dentro da nossa cabeça, na nostalgia duma tarde em que não chove o suficiente ou na amplitude do areal de inverno onde as aves colectivas quiseram depositar signos, a sua triste maneira de caminhar em transitórias espirais e debuxar algo como triângulos. Há momentos em que qualquer gramática completa só mataria essa sensação de perda, em que para nada serve a perfeita sintaxe dum texto ou tela falsa que pretendem explicar-nos em detalhe qualquer cousa. E então, como num antigo processo mineral interno, um modo orgânico de nutrição da alma, vão abrindo-se desde dentro as formas originárias que são a nossa essência, os nossos morfemas milenários, felizmente imudáveis, supremamente transcendentes porque contêm as chaves do sentir humano quando a enorme dor do mundo resulta indesignável.
Eu agora, e vós, temos o privilégio de reconhecer-nos nessas formas, prévias à falaz linguagem do século, prévias ao discurso, e sobretudo prévias à metáfora. Não é a gramática de tantos falsos profetas de cores ou palavras a que nos vai salvar do extravio ou nos vai explicar a carência duma tarde em que não orvalha o suficiente. Não procuremos a dição precisa dos óleos que roubam e perturbam as formas primigénias para esvaziá-las em explícitas sentenças. A arte é o eterno exercício de resgate. Procuremos sentir a longa história dos ícones como testemunho do que sempre fomos: a pessoa antiga que subiu no cansaço da tarde até ao cimo da montanha para enarvorar o projecto da palavra; os outros seres famintos e molhados toda a noite, a balbuciarem um óvalo abandonado numa tela clara; os meninhos despidos e sem luz a traçarem com paus rios paralelos sobre as cinzas que aniquilou a chuva.
Eu sei que, após a tormenta, essa mulher baixou a sós com um cajado rumo às vastas pradarias, repetindo para si sílabas de elementar cor e traço, e deixou as suas pegadas fósseis nas abas da montanha como constância do começo. Quisera ir à montanha e pisar um a um os passos da mulher, sentir-me nela ou sentir que parte de mim é algo dela, mas a única maneira que tenho é admirar o rasto que a sua ousadia foi deixando na portentosa criatividade dos demais. Desde então, todos os que falamos e todos aqueles a quem amamos e já não nos podem escutar estamos humanamente unidos pola contemplação da forma, pola inarrável contemplação da forma que nos salva.