Publicado em La Voz de Galicia, 12 Outubro 1999, p. 16, dentro da fugaz série de artigos “Debate: A normativa do galego”
Quixera contribuir a este debate sobre, basicamente, as relações entre a fala e a escrita no nosso país. São reflexões gerais aplicáveis às sociedades alfabetizadas, que ilustro com o nosso caso.
Em primeiro lugar, eu penso que é necessário entender que o problema da língua escrita é pouco importante em comparança com sangrantes realidades como um nível de desemprego dos mais altos de Europa (um 40% entre as mulheres galegas), a desfeita económica e ecológica, ou a cleptocracia galopante. Mas a questão do controlo da língua não está desligada destes problemas, claro, e prova disto é que são os mesmos poderes os que, desde há já várias décadas, são parcialmente responsáveis tanto da desfeita económica quanto da provincialização crescente das culturas galegas, nas aras duma modernidade que só mostra o seu rosto mais cruel.
Está claro que uma forma escrita codificada dum idioma é simultaneamente um instrumento prático para a colectividade e um instrumento de poder para uns poucos. Em todas as sociedades alfabetizadas a língua escrita tem a função de distinguir os que “sabem” dos que “não sabem”, e os que podem falar publicamente da língua dos que não podem. Isto acontece, naturalmente, também com o espanhol, mas as consignas democráticas da “escolarização universal” e do “acesso igualitário à cultura” estão tão fortemente enraizadas que já nem percebemos a função selectiva do espanhol oral e escrito na vida diária.
O segundo princípio geral é que, em todas as sociedades de classes, este filtro selectivo da palavra escrita para distinguir os que “sabem” dos que “não sabem” funciona igualmente seja qual for a forma específica do padrão escrito. Quer dizer: qualquer meninho pode aprender qualquer grafia para o seu idioma. Mas, for qual for esta grafia, na escola os meninhos e meninhas vão sair classificados em detalhadíssimos rankings de saber que levarão depois na sua vida como uma carga social de difícil antídoto. Quero salientar isto para questionar os argumentos sobre a suposta “facilidade” ou “dificuldade” duma ortografia sobre outra. Não é essa a questão, nem na Galiza, nem no Alentejo ou os Açores para a aprendizagem da ortografia comum para as suas falas respectivas, nem em Puerto Rico ou Huelva com a aprendizagem da ortografia espanhola comum para as suas falas respectivas.
A terceira constante social é que a adopção de normas escritas para um idioma está sujeita aos interesses de diversos grupos de poder económico, político e cultural. Estes interesses são variados. As elites económicas preferem uma norma escrita que lhes dê vantagens nos mercados. As elites políticas, uma que simbolize e defenda os seus princípios programáticos (por exemplo, a “unidade da pátria”, a “diferença”, a “identidade nacional”). É aqui que as letras funcionam como símbolos ideológicos, e um ñ, um lh ou um ã com tilde são muito mais do que traços arbitrários. As elites culturais, pola sua parte, querem uma norma controlável, cujo domínio lhes permita acumular prestígio e capital simbólico (e também material, na forma de prémios e subvenções). Aqui, de novo, o mecanismo de desigualdade social através da palavra escrita está baseado num jogo duplo: por uma parte, supostamente “toda a sociedade” conheceria a norma, “democraticamente”; mas, por outra, só umas poucas pessoas a dominam de maneira que extraem dela benefícios, ora porque “trabalharam” sobre ela toda a sua vida, ora porque “têm mais iniciativa”, etc. Reparemos em que são exactamente estes mecanismos que sustentam a desigualdade económica inerente ao capitalismo de livre mercado: como todos temos as “mesmas oportunidades”, as diferenças de classe devem-se a factores “individuais” como a “iniciativa própria”, a “dedicação ao trabalho”, a “criatividade”, etc.
Em resumo: A representação escrita do idioma galego responde à lógica social exposta. Não há nada mágico nem espectacular nesta situação. Usar uma ortografia espanhola para o galego está ligado a um mercado linguístico e cultural interno, sempre dentro do âmbito cultural de Espanha, onde “o galego” não deixa de ser definido constitucionalmente como uma “lengua española“. Por contra, utilizar a ortografia vigente em Portugal e outros países inscreve-nos num mercado cultural e económico amplo, que abarca, significativamente, outros estados.
Isto último poderá ser bom para as elites económicas (mais mercado), mau para as elites políticas nacionalistas de todos os signos (perda de “identidade”), e arriscado para as elites culturais. O problema é que dentro deste novo âmbito a competitividade cultural será muito maior. O valor de mercado dos produtos escritos galegos, por exemplo, cobrará uma outra dimensão. Algumas mediocridades culturais afundirão-se definitivamente, alguns valores hoje desconhecidos sairão à luz. Alguns trabalhadores da língua perderão o seu trabalho, outros por fim o conseguirão.
Mas o resultado concreto é pouco predizível. As elites que agora controlam a língua não querem ainda arriscar-se a que na Galiza se utilize a ortografia comum galego-portuguesa, porque é incerto quem a controlará depois. No entanto, a gente não lê.