Publicado em A Nosa Terra
Nestes dous meses de guerra declarada tentei tantos tipos de discursos –internos, às vezes inutilmente públicos como este, às vezes na forma duma dor adolescente– que pude concluir que toda palavra habita no silêncio. Neste triturador silêncio público da sociedade, as numerosas conversas de café ou cerveja com as poucas mentes ainda ágeis que conheço demonstram que a táctica da fragmentação não funciona só nas criminosas bombas da OTAN. Por acaso é possível alinhavar um discurso colectivo a partir das narrações fragmentadas dessa dor impotente? Podem ou querem os partidos assumir essa responsabilidade, reconhecer-se -embora lhes doa aos seus interesses– nessa mítica “vanguarda” da Europa que construía a consciência dos esfarrapados? Indubitavelmente, não: não querem, portanto não podem. Por contra, a figura que emerge desta guerra declarada é a dos Intelectuais Institucionais, esmagadoramente masculinos (como os generais), que representam no calabouço de interrogatório dos jornais os papeis reais do Polícia Bom e o Polícia Mau: Bourdieu contra Cohn-Bendit, Chomsky contra o Estado, os Escritores, as plumas multiculturais que recebem os Prémios Príncipe de Astúrias. No tear das rotativas (não tanto das televisões, porque aí os seus rostos humanos denunciam as mentiras assumidas por uns poucos gravanços), os intelectuais institucionais tecem o discurso fechado da dicotomia e da responsabilidade: impedem efectivamente a circulação da dor, erigem o Manifesto como uma renovada arma de joguete, para cumprirem em conivência com o capital (sim, o capital) o ritual do silêncio, a bolsa de pintura ideológica contra os cérebros humanos.
Mas nenhum destes intelectuais é capaz nem ousa descrever quanta dor e quanto ideal reside ainda em cada um dos cérebros humanos: seria perigoso para eles admitirem publicamente a obscena contradição em que incorrem ao aceitarem, por migalhas de prestígio, qualquer dos papeis que o capital (sim, o capital) distribui para aplacar a sede de ideias dos mortais. A dor adolescente que me consome consiste na compreensão cada vez mais profunda, cada vez mais humanamente inabrangível, do vastíssimo alcanço do projecto aniquilador das elites. Os domesticados cépticos de sempre riem com gargalhadas eleitorais quando se menciona o carácter conspirativo deste projecto do capital. Na mais civilizada das adesões ao seu pós-modernismo, os cépticos aludem a uma multiplicidade de factores que explicariam a História, para negarem sempre que o extermínio que sofremos seja um plano deliberado, uma Solução Final. Sem dúvida, desde polo menos os anos 70 os regimes democráticos vêm educando-nos com grande esforço mediático para que deixemos de compreender as cousas. Uma guerra que há apenas dez anos levantaria barricadas físicas ou discursivas é hoje um acontecimento de sobremesa, comparável a um concurso de palavras cruzadas cujo significado global há que desentranhar. Os pobres (mas efectivos) argumentos dos intelectuais são: “Desconhecemos todos os factos, Há variadas interpretações, Todos são maus, Temos uma responsabilidade histórica, Claro, sempre há interesses económicos, Muda de canal que vem o ténis”.
Diz-se que os mais jovens líderes do massacre do Kosovo e Sérvia que deixa milhares de mortos e um terreno novamente arroteado para o capital não viveram a Segunda Guerra Mundial. Não é para evitarem aquela guerra que começaram esta: é precisamente para a repetirem, para os poderosos não esquecerem a tradição do sangue e poderem, gremialmente, educar os seus sucessores na manufactura da morte. Nas acolhedoras vilas europeias contará-se aos netos como se albergou refugiados kosovares. Os jovens pilotos que montam a cavalo nos mísseis de Solana lembrarão-lhes às suas esposas a erecção de adrenalina que provocam os ataques. Em contraluz da tarde, milhares de mulheres seguirão a tecer, maioritáriamente alheias às decisões desta tragédia, os lentos princípios do seu mundo paralelo que dia a dia matamos das formas mais subtis e das formas mais brutais. Os exércitos do capital continuarão a sua marcha para o Leste, até garantirem que o petróleo e o gás da Ásia Menor nos cheguem por longos tubos eleitorais até aos nichos das cidades. Em pouco tempo, a Vojvodina será o próximo sumidoiro da OTAN, do capital, mas já estaremos afeitos ao Discurso.
Sinto uma densa derrota por ter errado comigo mesmo: por ter escrito modestamente cousas, por ter falado com gente que não compreende o que acontece porque no fundo não é capaz de viver esta dor adolescente. Como bom idealista, eu acredito na existência dos iluminados. Os iluminados não são aquelas pessoas que representam os papeis do polícia mau e do polícia bom nos jornais oficiais: os iluminados são aquelas pessoas capazes de resgatarem, em instantes pontuais, esse bastião de claridade desde dentro do cérebro que consiste na visão dum ideal. Às vezes, entre a peganhenta maranha do Discurso, revela-se dentro do cérebro algo como um minúsculo grumo luminoso que dói: um núcleo de gnose que condensa tudo. E nesse momento os esbeltos argumentos dos intelectuais colapsam, as análises históricas colapsam, todas as frases e factos do Discurso colapsam para dentro, fértilmente devorados por esse brilhante tumor de raciocínio primigénio que é a dor adolescente. Qualquer pessoa pode ser assim um iluminado, uma iluminada, se realmente o deseja: basta com escutar o impulso dessa dor, fruto da espécie humana, que contém todas as negações à miséria e todos os procedimentos diários para exercermos a resistência, longe do horror vacui das falas oficiais. Não serei tão arrogante de sugerir tais procedimentos pessoais de resistência: já sou suficientemente arrogante considerando-me legitimado para falar em público. Simplesmente digo, digo-me: escuta esse estouro interno, físico, de dor primitiva no cérebro, tenta compreendê-lo, alimenta-o dia a dia se não queres ter que rir do teu próprio pelexo quando estejas para morrer nos escoadouros da história.
A paz brutal que se avizinha é o melhor momento para começar a resistência: na Ampla Autonomia da miséria, da violação diária, da verdadeira barbárie de Auschwitz que já não sei enumerar. Porque a paz democrática é o epítome da guerra. Devemos ter medo do presente.
A Corunha, 4 Junho 1999,
a dez anos do massacre da Praça de Tiananmen