Publicado n’O Pica-folla, Maio 1998
Imagino que, duma vez mais, será a minha uma das poucas vozes discordantes a respeito de como se vê o idioma galego e a cultura feita na Galiza. Não me importa muito, estou afeito. Não me importa “ter razão” ou “estar errado”: o que me importa é como se vai impondo o silêncio sobre as mentes, e importa-me, ainda que for, apenas porque parte da minha nutrição perante a desídia quotidiana é duvidar da obviedade das cousas. Se esse libertador exercício de debate interno se nos nega, pouco nos resta já. Por isso, vencendo o crescente cepticismo que ameaça com descebralizar-me ainda mais, aceito o convite a contribuir para esta celebração, espero que crítica, do chamado “Dia das Letras Galegas” de 1998.
1998, grande ano de celebrações. No mesmo ano em que as elites culturais de Espanha comemoram o centenário da guerra onde o Reino perdeu as suas colónias a outro império, quando as elites económicas de Portugal celebram a sua europeidade mercantil com a Expo’98 (a sua verdadeira entrada na Europa do Capital), quando a banca europeia celebra a criação da sua moeda para gerir a crescente desigualdade social, quando os hippies do 68 regem já indústrias e famílias triangulares, e quando o estado de Israel cumpre o seu cinquenta aniversário militar a costa das massacres de palestinianos, a oficialidade galega celebra o nascimento da literatura em galego-português com o Dia das Letras Galegas, instituído há trinta anos pola intelectualidade que ficava da desfeita da nossa guerra. Vários e distintos mitos, fundacionais ou não, coincidem assim neste ano emblemático para lembrar-nos em que consiste a Ideologia, e que papel tem na nossa formação como (etimologicamente) sujeitos e, neste caso, como súbditos do Reino.
A leitura dominante é que o Dia das Letras Galegas, como outras iniciativas da longuíssima pós-guerra, foi promovido por um grupo de intelectuais herdeiros do “galeguismo histórico” para canalizarem, supostamente, as energias políticas dum “povo” inerme ante o franquismo. Uma interpretação alternativa é que o chamado “galeguismo cultural” da Editorial Galaxia, da revista Grial e do seu grupo fundador era realmente o instrumento mais útil das elites ideologicamente espanholas para começar a canalizarem o latente (e patente!) lusismo dos intelectuais e dirigi-lo definitivamente para o terreno da Hispanidade. Apesar da aparente rivalidade entre o Lusismo e o Hispanismo, este complexo bimembre esteve sempre na base da formação de ambos estados nacionais na Península: ou se é Hispano ou se é Luso (Catalunha, desenganemo-nos, é uma pura anedota para a formação do Estado Nacional espanhol). E, por isso, a única maneira de articular definitivamente Espanha era, foi, e está sendo, desartelhar a Galiza, como última excrescência Lusa dentro da Hispanidade.
Com efeito, a partir dos anos 60, uma vez que se permite (com maiores, menores e arbitrários acessos de repressão, como é característico do fascismo) a produção cultural em “galego”, progressivamente se vai diluindo o atlantismo e galego-portuguesismo dos anos 30, para chegarmos (não paradoxalmente) à sua quase total invisibilização actual de mãos das chamadas “instituições próprias” de índole política e cultural: a Xunta, o Consello da Cultura Galega e a Real Academia Galega fundamentalmente. Por isso, a actual reivindicação do “galego” dentro do quadro do estado supõe a total reintegração da Galiza na nação espanhola.
Neste processo de desarticulação, mesmo nos anos 80, quando eu marchei da Galiza para continuar a estudar e trabalhar no chamado estrangeiro, o debate sobre a identidade cultural galega era mais rico e aberto, mais amigável e genuíno. Desde Califórnia Sítio Distinto (mas para mim sem dúvida menos estrangeiro que Madrid ou que a cidade da Corunha), continuei a tentar cumprir o meu modesto papel de querer contribuir para o achado de, simplesmente, algo em que pensarmos, com textos críticos sobre a linguagem, a cultura e a política. Mas quando voltei para a Galiza (nunca sei se definitivamente) em 1991, tantas cousas mudaram que o país era irreconhecível. Os intelectuais e académicos estavam (e estão) encistados em liortas intestinas por acadarem leirinhas de poder. As prebendas e privilégios económicos e sociais estavam (e estão) a ser repartidos por um regime cleptocrático, rico em dinheiros e com um projecto fixo: gerir a exploração económica, a dominação social dos dissidentes, a inoculação ideológica de todos. Novas e estranhas alianças entre mentes críticas antigamente marxistas e mentes cativas fundamentalmente fascistas abrolhavam e abrolham ainda na Galiza, para o meu assombro e desconsolo.
Talvez o processo não se percebeu tão claramente desde dentro da Galiza, pois as redes de interesses intelectuais (quer dizer, sociais) foram-se consolidando pouco a pouco, e o famoso sistema (que existe materialmente, e não é uma simples enteléquia monstruosa do discurso libertário) foi gradualmente fagocitando as consciências com a suposta recompensa da “recuperação cultural” galega. A institucionalização das ideias foi-se instalando até nos mais ocultos recunchos, e o novo País, já programaticamente “Galicia”, foi emergindo a golpe de gaiteiros, Língua de Seu, Moda Galega e prémios literários em Madrid.
Neste jogo de exclusões sociais, sob o lema da suposta “diferença” legítima do galego, que mereceria então ser Língua como qualquer outro instrumento do Estado (e na Galiza o Estado é a Xunta), caíram e seguem a cair quase todos: desde a auto-denominada esquerda nacionalista galega até à direita espanhola mais recalcitrante, os intelectuais, professores, estudantes, as empresas, as universidades… (ou os informáticos que reclamam Windows 98 em galego para dar-lhe mais quartos a Bill Gates, em lugar da gratuidade do software!)… Alguém poderia pensar que, se o processo de “galeguização” vai por aí, será porque assim o quer o “Povo”, não é? Mas, nem em língua nem em cultura o “Povo” corta nunca o bacalhau. Por contra, poderíamos dizer que, como sempre, esta situação é a que querem as elites económicas e culturais que dirigem o Povo e geram a sua ideologia.
Mas que terá a ver tudo isto com o Dia das Letras Galegas?, perguntará-se legitimamente os ousados que chegaram a este ponto da leitura. Pois bem: o Dia das Letras Galegas é um emblema, uma contra-senha ideológica de grupo, um shiboleth de pertença ao círculo do Discurso institucional galego. E, como todos os emblemas, o seu significado social muda com os tempos, as pessoas, as ideias e os interesses dos grupos dominantes. De aglutinante da revolta política dos jovens nos liceus dos anos 60 e 70 (talvez algo não previsto polos intelectuais liberais que o promoveram), o Dia das Letras Galegas passou a ser uma das principais cartas de Hispanidade da Galiza. Perfeitamente assimilado dentro das instituições, o Dia das Letras é feriado, um momento para sairmos ao campo ou ao passeio urbano e pensarmos em tudo menos na literatura, sobretudo na literatura galega. As escolas fecham, umas poucas livrarias abrem e repartem livros em espanhol, e as autoridades coabitam com os intelectuais galardoados em actos rituais onde se inauguram pedras. Isso é o Dia das Letras Galegas.
Em resumo, o “galeguismo” do Dia nas suas origens não deu passo, como era esperável, à universalização da data, com a ampliação das suas miras, em primeiro lugar, para o âmbito lusófono (como era o projecto atlantista do galeguismo dos anos 30) e, em segundo, para a sua universalização num singelo dia das letras, dos livros, da cultura ou dia da estética (já em minúsculos) sem o adjectivo que ainda o constringe. O “galeguismo” do Dia continuou, precisamente na mesma direcção que lhe deram os seus promotores: a reivindicação auto-domesticada da “cultura galega” dentro do âmbito militarmente inescapável de Espanha, a sua assimilação polo Estado (como acontecera com as ikastolas ou escolas bascas em Euskadi), a sua circunscrição sempre dentro do pobre imaginário nacional-regional de “Galicia”.
A tão procurada (por alguns) “normalização” cultural passa por uma revolta estética que arrume a estreitura do adjectivo “galego”, que ré-situe às gentes da Galiza e os seus produtores culturais num âmbito mais amplo onde podermos seguir sendo alienados sem a máscara do “nacional” galego. A revolta estética é a que situa por igual Meendinho e Maiakovsky, Martim Codax e Herberto Helder, sem a servidume ao projecto nacional galego onde, por ser por primeira vez factível, começam a concentrar-se em grumos políticos os antigos rebeldes e os velhos oligarcas.
Mas esta proposta de revolta, sempre mal-entendida pola intelectualidade institucional (quase toda) como uma ameaça à “nossa identidade”, nunca visitará os salões branco-azuis do poder galego, nem as páginas das revistas nacionais legítimas, nem as aulas onde os rapazes são instruídos em discursos de mui poucas palavras e em leituras medíocres que só podem conduzir ao silêncio ou, pior ainda, à reprodução de uma má literatura. A universalidade da cultura e do sentimento estético é o mínimo polo que podemos aspirar se ainda queremos acreditar na literatura como antídoto, na palavra escrita como uma das poucas drogas que nos restam. A poesia de Meendinho ou Martim Codax não é universal por ser galego-portuguesa: é universal porque um, quando a lê tantos séculos mais tarde, sente nela o íntimo malefício da linguagem, a dor pola incapacidade para dizer o mesmo, a dureza do assombro, a inalcançabilidade da palavra perfeita.
Nada disto se pode aplicar a muitos dos outros escritores, escritoras e escreventes a quem se lhes dedicou o Dia das Letras Galegas anteriormente. Por isso, pouca honra se lhe faz à poesia medieval galego-portuguesa quando é celebrada, com quem sabe quais interesses, por uma oficialidade literalmente mente-capta, dentro duma resta de escritores galegos comemorados neste ingrato Dia, muitos dos quais ofereceram tão pouco à história das ideias e da estética.
Porque, se se trata de celebrar as “nossas” Letras Galegas, o primeiro que há que reconhecer com total coerência e duma vez por todas é que as letras de Meendinho, Martim Codax e João de Cangas eram as que seriam depois as de Camões e as de Pessoa, e que por isso as Letras Galegas ou são também as portuguesas e as brasileiras, ou não serão. Dentro deste antigo e anovado âmbito poderia por fim destacar com justeza a natureza inerentemente elitista e minoritária da boa literatura, sempre inimiga do “Povo” e sempre fruto do privilégio estético duns poucos alucinados. A Galiza é um país pequeno demais como para frutificar em moreias e moreias de alucinados genuinamente premiáveis: a população da Galiza colhe na chamada Área da Baía de San Francisco, uma formosíssima região de uns poucos condados onde, como saberá quem a conheça, a literatura regional tem um lugar tão minúsculo no mundo das ideias como, simplesmente, o que lhe corresponde.
Esta é a realidade: o lugar da Literatura Zonal Galega na história universal é insignificante (o lugar das literaturas concebidas e praticadas como galego-portuguesas, passadas e actuais, já é outra história). O resto, incluídas as proclamas literárias nacionais, é puro, puro, puro auto-panegirismo e pura, pura, pura propaganda.
De novo desde Berkeley, Califórnia (“o estrangeiro”), Maio de 1998.