Publicado em Çopyright 4
Em 8 de Maio de 1997 teve lugar num pub da Corunha um acto convocado pola Assembleia Nacional de Objecção de Consciência (ANOC), com motivo de uma série de juízos contra insubmissos que se estão a celebrar na Galiza. Este texto foi lido nesse acto.
Ainda que poda parecer excessivo, é um grande motivo de honra e satisfação para mim ter sido convidado a este acto contra a barbárie, a este espaço reduzido, minoritário como é sempre o espaço social onde começam as verdades. Convidou-se-me a ler poesia ou outra cousa, e eu escolhim outra cousa porque para mim na actualidade só existem duas formas literárias úteis para a emancipação humana: a poesia e o panfleto. Este texto quer ser um panfleto. Só lamento que não esteja impresso em borrenta letra azul de multicopista fatigada, lamento que não circule de mão em mão nervosa pola obscuridade das ruelas interiores, e lamento não ter medo de ser detido agora polo exército, porque as palavras que aqui dizemos são clandestinas e mereceriam ser tratadas como tais. A liberdade real não consiste em poder dizer o que queremos: a verdadeira liberdade consiste em não ter já necessidade de dizê-lo.
Tenho a sorte de não ter ido nunca à tropa. Jamais na minha vida toquei um fuzil nem pudem superar a minha repugnância assombrosa pola cor dos uniformes. A única vez que fum de caça a matar cousas eu tinha sete anos. Ia com um tio meu e um irmão maior; eu levava uma escopeta de balins que errou sempre. O meu irmão matou dous tristes birulicos que logo nem comemos, e durante muitas horas depois sentim uma espécie de oco na cabeça, como uma pergunta essencial, humana, libertária, sobre a inutilidade dessas mortes. “Um panfleto por dous birulicos!”, podedes pensar. Mas a morte inútil de dous pássaros é o começo da barbárie. O exército começa na violência inútil contra dous pássaros, na labaçada injusta de um pai a uma criança. O exército começa na ordem militar das famílias, no imperativo urgente dum homem que chega escravizado, e logo o exército cresce dentro de nós, como uma geometria inapelável, e estende-se às parelhas, ao domínio sexual, à violação, às discussões autoritárias, o exército estende-se ao trabalho onde reproduzimos uma jerarquia celestial, às aulas das universidades, às Monarquias, a Deus, último General de Generales. E logo, quando já o exército inça quotidianamente a alma e o cérebro, quando já assassinou a utopia com que nascemos e que algum dia havemos recobrar, então é singelo dar-lhe um uniforme, vesti-lo de verde, pôr-lhe um nome e um adjectivo, e acolhê-lo entre nós como se fosse natural e não uma trama dos poderosos e a consciência para impedir a liberdade.
O exército não é só a instituição mais repugnante jamais criada no planeta: o exército é uma atitude, uma cultura, uma maneira de destruir as cousas. O grau de sofisticação dos instrumentos de destruição e morte é algo tão horrível que só nos pode levar a duvidar do sentido do universo. Hai armas que estragam desde dentro, deixando cavidades irreparáveis na epiderme. Hai armas de metal pequeno que furam os caminhos harmónicos do corpo e rebotam deixando ao sair ronseis vermelhos e retalhos de carne. Hai armas que estouram ao pisá-las, sementando de orgãos sanguinhentos as areias naturais. Hai armas que matam lentamente: na sua agonia atómica, o corpo perde a pele e os cabelos e acaba a vida entre vómitos vazios, impotentes. Hai armas que matam muitos anos depois, de cancro e de cegueira. Hai armas que deixam mapas queimados na pele, como macabras metáforas dos territórios ocupados: a Beira Oeste, a Faixa de Gaza, Irlanda. Hai armas que asfixiam e armas que desmembram. E hai armas que assassinam legalmente nas câmaras esterilizadas dos presídios, armas que electrocutam com consenso, armas policiais que derrubam sujos ladrões urbanos na cumplicidade da noite, armas conjugais que deixam uma mulher dessangrando-se nos labirintos grassos da cozinha, armas de álcool legitimado, armas de poderosas seringas, armas de palavras que insultam aos que falam ou escrevem diferente, armas anatómicas que violam meninhas de dous anos, armas de tinta que assinam execuções, suspensos, masculinas leis injustas.
Contra esta barbárie, contra esta épica da morte só cumpre a insubmissão activa. A insubmissão não é um acto político: é uma atitude, uma necessidade, uma aposta pola utopia que querem esmagar porque lhes dá medo. Porque dá medo imaginar um lugar e abraço comum onde perdamos a noção do ser e da história e onde sejamos apenas a extensão humana do acaso, outra forma da matéria, cada um na sua carne e tocando a dos outros, no território sem poder que levará sempre a espécie humana na inteligência. A insubmissão é mais do que uma náusea por matar: e a necessária revolta contra esta epopeia de miséria. Poderão desaparecer as castas militares. Poderemos aprender a controlar-nos mutuamente, sem pistolas, no consenso democrático. Poderemos fingir que chegámos já ao limite da igualdade. Mas, enquanto existam os presídios, as favelas, os bairros crematórios de que fala o meu amigo João Valeiro, enquanto exista uma fronteira real, uma bandeira de doze estrelas circulares, uma mulher maltratada com punhadas ou escárnio, existirá o exército, a falsa geometria masculina.
Este texto quixo ser um panfleto. Só lamento que não esteja escrito em precária tinta azul de velho ciclostil. Mas não quixo ser um panfleto contra eles, os Alheios que nos miram: este texto quixo ser um panfleto contra o militar que cada um de nós levamos dentro.