Publicado em A Nosa Terra, 15 Maio 1997, p. 6
Aos desaparecidos
Este artigo ia-se intitular, por exemplo, “A clandestinidade da literatura galega”. Durante vários dias alimentei a trivialidade do tema, como se fosse interessante ou mesmo essencial. Percebim, nas minhas visitas a alguma livraria, a segregação dos volumes em ghettos políticos (Ficción, Viajes, Gallego), e percebim a mimética reprodução desta hierarquia na livraria galega que existe: Poesia, Novidades, numa mesa aparte Portugués. Polas manhãs, através dos pátios interiores, escoitei mulheres de antiga estirpe camponesa a cantarem sevillanas, emulando luminosos concursos televisados ou a ilusão por uma triste filhinha maquilada que aprende a ser sexual perante o poder fálico dos focos, perante Deus e a Monarquia. E polos corredores da universidade comecei a ver cartazes que anunciam os actos do grande Dia das Letras, a nossa miragem anual, com os repetidos nomes de conferencistas sempre agrupados em triunviratos de amor pola cultura. Na letra pequena dos cartazes figura muitas vezes o logótipo do governo que votámos.
Não estou satisfeito de como o narro, porque o significado destes feitos é mais amplo do que a minha força de escrever. Mas, em resumo, eu queria falar do que já falei doutras vezes no generoso espaço que deixa esta revista liberal à dissensão. Queria dizer que o idioma verdadeiro do povo é clandestino: é essa voz que não se fala desde hai séculos ou acaso milénios, desde que começou a espoliação sistemática da matéria na ordem militar das famílias. Queria dizer que se não rompermos uma velha fronteira interna, se não nos aliarmos em favor da utopia, logo não será legítimo protestar em gritos rituais contra a desfeita. E fica pouco tempo. Porque a inteligência que nos resta apaga-se dia a dia observando saudosos de um outeiro a queda das casas de granito, o último caminhar dum animal carregado, a queima voluntária dos velhos manuscritos colectivos enquanto cantamos hinos nacionais.
Tudo está conectado, se o contemplas durante muito tempo e és capaz de deter o pensamento fácil aprendido na escola, arrumar a lógica do aparente e dar passo à intuição dos vencidos. Tudo está conectado: a nova Língua convertida por uns e outros em objecto de culto e instrumento de fama, o governo autónomo, a sistemática destruição ecológica, a perda das antigas imagens, o difícil acesso à memória, a justificação da barbárie, o voto aos partidos, os cárceres, a anestesia, as bombas, a heroína, a chamada tolerância, a gaita com flamengo, os actos de homenagem, o ataque ao lusismo, os bairros crematórios de que fala João Valeiro, os prémios literários, a falta de debate, o olvido de Gramsci.
Tudo está conectado porque a Língua é exactamente o Discurso, a transformação fascista da realidade e o sonho em argumentos. Pouco a pouco, como uma capa de lava fria e visgosa, desde hai uns anos a Língua e o Discurso foram-nos envolvendo a consciência e retirando a utopia para fazer fritadas de coração e cérebro. E assim fomos caindo na trama do possível. Já não gememos ao ver a mão cortada dum réu porque o Discurso argumenta que os assassinos são os outros. Pensamos que a Língua é o importante quando o importante é remover com compaixão os velhos ídolos e situar nengum no seu lugar. É surpreendente constatar, quando já se encosta a madureza do corpo contra a imaginação viva, como se foi impondo o poder capitalista sobre a consciência para ancilosar-nos a criatividade, a capacidade de actuar. Agora aguardamos com ilusão infantil as eleições, fito mediático na mediocridade diária, nova e limpa Revolução de Outubro. E após os mitins harmoniosos abraçaremos os poucos representantes eleitos com candor, quase com inocência, enquanto à volta da rua cai a prumo um esfarrapado bêbado entre imprecações ao céu para o resgate, palavras lúcidas que já não compreendemos.
Ontem à noite voltei a entender a natureza do capitalismo. Dentro do televisor, mimese do verdadeiro, vivia um país de prisioneiros carcerários, a imensa prisão Rikers de Nova Iorque. Guardiães negros contra réus negros, porto-riquenhos contra porto-riquenhos, presas grávidas de oito meses, homens que nascem de crack na cadeia e morrem de sida na cadeia. Na obscura secção para psicóticos um recluso negro, paranóico e suicida resumia: “Este é o coração do monstro. Este é o mundo real“.
A vida diária é uma paráfrase do monstro. Por isso este artigo é sobre Língua.