Publicado em Çopyright 24, 15 Dezembro 1996 • N’A Nosa Terra 761, 16 Janeiro 1997, p. 27
Por primeira vez na minha vida, olhando para a corunhesa rua São Andrés desde a janela da sala, tive a clara sensação de ser um exilado, um habitante dum país inexistente que desfaz a linha das fronteiras como uma enorme e suave língua geológica. Não me refiro a essa alienação que muitos sentimos às vezes por vivermos numa Galiza indistinta, rota, apenas suturada temporalmente pelos esforços pontuais duns poucos resistentes que sabem que morrerão no esquecimento: os marinheiros que trocam uma esmola de sardinhas por pneus queimados nas estradas, os poucos políticos que com constância percutem nos volumosos muros interiores das instituições espanholas, os insubmissos ou os desorientados que desde a Praça da Quintana de Compostela contemplam com nostálgica heroína nas veias o crescimento das Pátrias oficiais como grandes aves de artifício. Refiro-me a outra e confessadamente estranha sensação: a de ser um visitante temporal na Galiza chamada moderna, enquanto outro país sem bordas nem monarcas que também poderíamos chamar a Galiza, ou Portugal, ou longa língua de terra onde todos os Setembros vão morrer de idêntica maneira os sargaços, fica em parte oculto por uma névoa de séculos e em parte oculto pelo discurso dos mais fortes.
Na minha sala urbana, desde a segura altura do lazer, soavam no ar as linhas sinuosas do que foi talvez o canto mais sensível jamais feito na nossa terra: “Eu fui ver a minha amada / lá para os baixos dum jardim …”. O imenso cadáver de José Afonso seguia a cantar, apesar de a história dos Estados ter-nos furado a ética e a memória. E aí não pude deixar de imaginar, com irmandade, de que natureza arcaica e indivisível seria o impulso de chorar sem causa, por pura harmonia com o planeta, dos jovens semelhantes a mim que lá pelos anos 70, escutando José Afonso, ou Fausto, ou Voces Ceibes, contemplavam também a tarde desde uma penumbrosa sala do Porto ou de Lisboa. E foi assim, entre lembrança e lembrança, que me senti parte verdadeira dum país informe e estranho, em cuja viva superfície pouco a pouco secam as Pátrias como uma poça que não devia estar aí, e no seu lugar crescem redes orgânicas, humanas, redes de sentimento comum e resistência.
Não são bons tempos para dizermos tudo isto mui em alto. Alguns, na Galiza, acusam a gente que diz cousas como eu de não fazerem país, e eu creio que estas acusações erram. Talvez nós não queremos fazer o mesmo país que os que agora são poderosos. Mas sentir-se uma sorte de exilado forçoso é decerto uma forma, não mui agradável, de ir fazendo um país: um território diferente, às vezes puramente interno, às vezes alinhavado nas poucas frases que nos aceitam publicar ou nas contadas palavras a que nos atendem sem desnecessários mecanismos de ataque ou de defesa. O humor irónico de todos nós está a dar passo ao insulto contra nós próprios. Cresce a etiquetagem integrista, a categorização linguística e étnica dos demais, às vezes eufemizada, mas muitas outras brutalmente despida como uma víscera aberta. É lamentável que as palavras “ português” ou “castrapo” se tenham convertido em insultos entre a intelligentsia, e é irrisório que alguns reclamem certificado de lealdade linguística até ao oitavo apelido nas aras da Identidade Galega. Acontece que algumas pessoas, de súbito, simplesmente por observarem em torno delas a tristeza que Espanha foi instalando neste Norte órfão de história, têm acolhido os símbolos galego-portugueses como a melhor maneira de resistirem eticamente. Também suponho que para alguns isolacionistas da cultura galega a resistência ética consistirá em tentar aproveitar as fissuras dos poderosos edifícios oficiais. Mas, tristemente, esta diversidade de estratégias (quando são de verdadeira resistência) reflecte tanto a nossa astúcia provisória como o nosso desespero pelo assédio.
Não me sinto obrigado a exculpar a necessária dose de nostalgia e romantismo que houver na minha visão dum país que não existe mas existe. A terrível mediocridade quotidiana das cousas e as pessoas, incluído eu próprio, justifica desenharmos qualquer projecto humano dificilmente executável, de geometrias difusas, onde se esvaem as barreiras entre as gentes e a terra, e onde circulam discursos de palavras diferentes, sem maiúsculas, como tíbias fitas de doas engranzadas, que tampouco dizem a verdade, mas que nos ajudam a sobrelevar-nos.
Se alguma vez uns e outros conseguirmos reunir-nos nesse território incerto, provavelmente o meu pessoal sentimento de exílio continuará também aí, como uma forma diária de não reconhecer-me na epopéia de miséria que criou a espécie humana. Mas já não poderei culpar-nos a nós próprios deste incómodo exílio, de que não nos deixem falar, ou de que nos deixem falar com critérios diferentes ao Norte e Sul dum rio que sempre esteve fortificado, ou de que, quando uns e outros falemos, nos botemos cuspe, berros, cães e leis linguísticas por um infantil medo a que, no fundo, o outro leve a razão, ou a que o Reino protector lhe acabe dando ao outro mais medalhas para ser enterrado na patética Glória das Letras e das Línguas, não ao pé dum intranscendente pessegueiro. Verdes prados, verdes campos, onde está a minha paixão? As andorinhas não param: umas voltam, outras não.