Publicado com alterações sem solicitar em A Nosa Terra 736, 25 Julho 1996, p. 27
Toca-nos um novo 25 de Julho, uma nova celebração colectiva de identidade. Bom, sejamos claros: uma nova celebração minoritária de valores absolutos: Pátria, Língua, Identidade. Nunca poderei desbotar da minha pele a inquietude e náusea que me produz a palavra “pátria” (mais concretamente, Patria, sem acento), recitada dos catecismos fascistas espanhois durante miserentos anos de incultura. Porém, reconheço também que às vezes as Pátrias e outros construtos são úteis para distorsionarem tacticamente um sentir colectivo. Suponho que esta contradição entre a náusea e o fingido compromisso deverá viver comigo enquanto siga sendo necessário procurar formas efectivas de resistência. Mas, em que consistem, aqui e agora, estas formas efectivas de resistência?
A Pátria é aliada natural da Língua: uma outra categoria absoluta que também nos impede ver a glotodiversidade e o silêncio quotidianos, ou que nos ajuda a converter essa variedade da fala e esse silêncio num totalizador eslógan de batalha. Porque há muita gente que não pode falar. Isto é: que pronuncia (também galego), mas as suas palavras não pertencem à Linguagem. A Língua acarreta sempre uma Linguagem e um Discurso. O discurso ortodoxo é o discurso de sermos, e este Discurso luta sempre contra outros discursos locais, os de procurarmo-nos como povo na heteroglossia diária e na ruptura selectiva de fronteiras.
Na realidade, Língua e Pátria são metáforas. Ambas metáforas suprem as suas noções paralelas (falas e povos) em aliança contra a emancipação humana. Ambas, Língua e Pátria, são os emblemas avançados dos reinos imperiais. Porém, ambas noções articulam também alguma forma de resistência. Como qualquer noção, “Língua” e “Pátria” revolvem-se nos multíplices campos discursivos, onde são negociadas, apropriadas e ré-apropriadas por grupos sociais tangíveis. O potencial criativo dos construtos teóricos –e mais os metafóricos– reside em eles serem maleáveis, em serem dóceis para se prestarem ao jogo dos saberes.
Por isso qualquer crítica global à “Língua” e à “Pátria” está limitada desde as origens por prescindir do seu sentido de uso. Ainda como metáforas, há Línguas plurais e Pátrias plurais, simultâneas no território e no discurso. O debate deveria consistir em desmontarmos criticamente ambas as noções para ré-situarmo-nos como povo com capacidade transformadora da sua própria auto-percepção. Por contra, na medida em que a sacralização das Línguas e das Pátrias impida a crítica, o questionamento, e mesmo a possibilidade da sua auto-destruição, a cerimónia da exclusão social seguirá a reproduzir-se, da mão das elites políticas e intelectuais, as novas ou as de sempre. E isso está a acontecer aqui, ali e em toda parte. Com o apoio acrítico de todos.
Dito singelamente: Galiza é uma questão de Estado. Muito mais do que Catalunha ou o País Basco (os nossos desnecessários pontos de referência), Galiza é uma questão de Estado. A Galiza é a última excrescência dum estado estrangeiro e duma cultura vista como estrangeira dentro do Reino de Espanha. O verdadeiro problema nacional do Estado Espanhol nunca foi Euskadi, nem muito menos Catalunha, mas a Galiza. A Galiza oferece o grande perigo de chegar a entender-se com Portugal. Para bem e para mal, a Galiza sempre estivo demasiado longe do controle.
Por isso caiu Manuel Fraga Iribarne por estas terras. Porque, como pode Manuel Fraga Iribarne estar a falar agora sobre a mesma Língua do que os activistas linguísticos que sofreram e sofrem as diversas formas de repressão do Estado por utilizá-la? Como pode Manuel Fraga Iribarne, censor e sequestrador de cultura galega, estar a referir-se à mesma Língua do que vós ou nós? Por que, se não por uma questão de estado, o feroz anti-comunista Manuel Fraga Iribarne se reuniu ao pouco tempo de aceder ao nosso trono com um conhecido intelectual galego chegado das filas do comunismo, para pedir-lhe recomendação sobre os passos a seguir na “normalização”? Alguém sabe a que estará encaminhado verdadeiramente o ingente projecto (mais de 100 milhões) do Mapa Sociolinguístico, que tanto se cita e se venera?
E nesta questão de Estado, não se luta efectivamente contra um estado sem implicar o outro no confronto. Por isso, aqui e agora, a resistência efectiva passa por articularmos uma submissão rebelde ao âmbito português, ao seu estado e à sua cultura: por ver-nos como uma florescente excrescência sua, não do Reino de Espanha nem da cultura espanhola. A resistência passa por criarmos novos vínculos transfronteiriços que vulnerem a lógica histórica da dominação espanhola; por impormos sobre Portugal (não sobre Espanha) a nossa diferença; por inaugurarmos uma nova linguagem e um novo discurso de identidades em conflito; por situarmo-nos num novo campo discursivo onde também levemos as de perder, mas com integridade.
Para mim, a resistência efectiva, aqui e agora, passa por reconhecer que a minha Pátria é sobretudo a minha dor hipócrita pelo sofrimento universal. Eu não quero ter uma “Língua própria” porque a “Língua própria” sempre é a de outros, a do poder que a construe. Reconheçamo-lo já: a Galiza não tem “língua de seu” mas língua de Eles. Eu prefiro saber que a minha Língua Imperial (pois sempre se tem uma), e a do meu povo, é a mesma que sofrem doutras maneiras outras gentes ao Sul do meu país e além do oceano, que por isso estou sujeito à lógica do seu poder simbólico (e não ao do espanhol), e que dentro do seu âmbito em fragmentação e reunificação constante sempre ocuparei (e ocuparão os poucos aos que acompanho) as margens do Discurso.
Mas a resistência efectiva também consiste em saber que escrevo essa Língua e falo essa língua como podo ou me dá a gana, para chorar -hipocritamente, como tantos outros que o negam- pela perda da minha Pátria: a utopia.