Publicado em A Nosa Terra 681, 6 Julho 1995, p. 24
Nove Partidos Ortográficos disputam o controlo simbólico de uma vila grande com espírito de cidade pequena, ou vice-versa. Controlar um nome é na realidade controlar o seu referente (são o mesmo país Galiza e Galicia?). As letras significam ideologicamente muitas cousas, num acto de subtileza tal que deixaria pasmado a qualquer alienígena de linguagem binária. O famoso da flamante presidência espanhola na Neouropa é claro índice da vontade de identidade estatalista: esse til originado no ñ não representa nem a bascos, nem a catalães, nem a galegos. O símbolo oficial e exclusivo do catalanismo é a insólita grafia l·l (paral·lel); o do basquismo, tx (txapela); o do galeguismo oficial (surpreendamo-nos), o ï de formas verbais como saïamos. O símbolo exclusivo dos portugueses e de muitos galegos invisíveis é, obviamente, o ã da razão.
Em València, o jogo simbólico cobra também matizes inusitados. A nova câmara municipal, controlada pelo PP, restaura o til sobre o e, mas (reparemos) não o til grave do catalão (València): o til agudo do espanhol (Valéncia). Simbolicamente, pois, as equações são: Valencia = “espanhol”; València = “catalão”; e Valéncia = “valenciano”. Cousas veredes.
Na Corunha, derradeiro baluarte do pseudo-socialismo antes de que o seu alcaide solicite proximamente o seu ingresso no PP, a trepadeira ortográfica enguedelha a todos por igual. Que significam os nossos nomes escritos? Vejamo-lo em detalhe.
Corunha. Quem pronuncia singelamente Sou de Corunha, sem o artigo, tem provavelmente sentido histórico de pertença, não ao núcleo da cidade, mas à área geográfica e eco-social da península corunhesa. Esta pessoa afortunadamente perdeu-se a apropriação política do social (incluído o idioma) por parte das elites desde os anos 70. Nas Rias Baixas, de onde sou eu, sempre dizíamos Vem de Corunha ou Viene de Coruña. Quem, para além disto, escreve Sou de Corunha provavelmente tiver o espanhol como primeira língua. É uma pessoa jovem, talvez universitária; distancia-se ao mesmo tempo dos clãs oficialistas e dos clãs reintegracionistas. Esta pessoa também diz sempre um elegante Vou a Compostela.
Coruña. Quem escreve Sou de Coruña está um pouco perdido ou perdida. Falta-lhe esse salto de botar o ñ à Gaveta dos Tabus, deixar que se lhe atrofie pouco a pouco o dedo meiminho direito na máquina de escrever. Tem o meu alento para o fazer, mas resta-lhe pouco tempo para tomar a decisão.
A Corunha. A, que híbrido mais desnecessário!, sobretudo quando vai em maiúsculas: Venho desde A Corunha. Esse A maiúsculo convoca a um arrítmico acento tónico, como o que se escuta às vezes com grande colisão neuronal no rádio público: O alcalde de A Coruña… As contracções existem, mesmo ortograficamente: O alcaide da Corunha ou d’A Corunha. Quem escreve Sou de A Corunha aprendeu português recentemente, pensa que nh é o epítome do diferencialismo, usa camisetas negras gastas, e provavelmente não seja da Corunha.
A Coruña. Quem escreve A Coruña tem muitas probabilidades de deixar de ter motivos para a rebeldia infantil em breve prazo. Desaparecerá a sua fotografia dos cartazes públicos, deixará de compartilhar com artistas, cabeleireiros e poetas um lugar nas publicações reivindicativas, e pensará erradamente que quando tudo seja A Coruña se terá ganhado uma importante batalha contra as Forças do Mal. Esta pessoa é de muitos tipos: jovem, maior, intelectual, menos intelectual. Crê no valor intrínseco das letras: crê não haver outra opção que escrever ñ para um som comum a tantos idiomas. Publicamente pode criticar que a España faça do ñ o seu máximo símbolo, mas privadamente entende-o, e não conceberia uma máquina de escrever onde o meiminho da mão direita se correspondesse, por exemplo, com o ç. Quando esta pessoa escreve A Coruña a mão, o til nasal do ñ sai-lhe fluidíssimo, como uma sensual linha horizontal que rubrica um asiático exercício caligráfico de singeleza, de projecção aérea rumo a um autonómico futuro luminoso que começa nas bordas do papel. Esta pessoa representa a essência genuína do pobo, que não do povo.
La Coruña. Por contra, para os escreventes de La Coruña o til do ñ simboliza a firmeza da história, quer dizer, da Historia. O seu til manual é às vezes certamente ondulado, como uma velha e grossa tampa sobre as multíplices identidades sociais que fervem por escaparem. Estas pessoas vêem no til do ñ a imanência do Reino e do legado espanhol nas Américas, onde até o primitivo quíchua se submeteu ao símbolo nasal. Quando mais problemas têm estas pessoas é ao usarem computadores sem ñ. Aí, recorrem às vezes à tradição filológica do nn, às vezes ao n simples, confiando em que o seu interlocutor supra o simbolismo do til ausente, o superponha visualmente na pantalha, e saiba ler España e tudo o que España comporta onde na realidade diz Espana e tudo o que esta forma não pode comportar. Estas pessoas compreendem perfeitamente o simbolismo do europeu do Estado Espanhol, discutem sobre a sua semiose oculta com o bocata das onze, e, ao enunciarem rítmicos ña… ña… ña… como um castiço OM anti-napoleónico, a ligeira pressão da Língua contra o paladar produz-lhes uma satisfação quase sexual.
A Cruña. Quem diz e escreve A Cruña tem a minha maior felicitação e piedade. Esta pessoa ficou ancorada no progressismo dos anos 70, não entende de grafias nem lhe importam. Tipicamente, é activista sindical, tirou muito de vietnamita num garagem escuro de vila peri-urbana, e ainda acredita numa utopia que nunca vai ver. A invasão do ñ na escrita desta pessoa significa algo diferente. Invisivelmente, a sua administração gráfica da fala conecta com o formoso babelismo da escrita galega dos anos 30. Devagar, se a história oficial não estivesse na sua contra, esta pessoa iria compreendendo as nossas raízes históricas e literárias, iria descobrindo a sua identidade comum com outros activistas que também tiravam de vietnamita ao Sul do Minho, e acabaria por escrever Sou da Corunha ou mesmo Sou da Crunha, o qual também tem o seu aquel de rebeldia.
La Corunna. Quem escreve assim é ainda mais estrangeiro do que nós. Por exemplo, antes de fazer uma carta, procura nos mapas oficiais elaborados pelos exércitos do mundo como se chama essa cidade cuja equipa de futebol vem de confirmar mais uma vez, como fizera Rockefeller vendendo jornais pelas ruas congeladas, o mito judeu-cristão do David contra o Goliat, do puritano Sonho Americano, do Esforço Justamente Recompensado. Às vezes esta pessoa estrangeira encontrará nos mapas La Coruna ou La Coruña, e, em lugar de questionar por que el ou ela própria traduz The Hague onde os holandeses dizem Gravenhage, simplesmente usará um nome espanhol para uma cidade galega. Esta mesma pessoa pode depois ir a uma manifestação pela supervivência cultural dos índios ianomámis.
La Corogne. Os franceses sim que entendem de que vai o assunto. Todos os povos do planeta falam francês, simplesmente ainda não o sabem. Os galegos radiofónicos oficiais também estão a aprender bastante disto: Badaxoz, Baraxas, Xirona… mas nunca Xordi Puxol, Xohn Uein. É curioso que a pronúncia gh do espanhol Badajoz se adapte à galega x, mas a pronúncia do j em Pujol, idêntica à portuguesa, se deva adaptar à espanhola y, como Puyol. É curioso.
The Korunya. Eu, definitivamente, opto por esta fórmula. Nela colhem os crescentes anglófonos da cidade, os grupos de okupas ágrafos, as bandas roqueiras de Monte Alto, os humoristas de turno, os emigrantes retornados de London, Buenos Aires, Barcelona… O ny de Korunya deve soar cadensioso, quase arghentííno -como em nínyo-, lunfardo, como resumindo a mestiçagem forçosa dos povos oprimidos. O anguloso K serve para invocar a dureza dos miserentos bairros da cidade que ficaram à margem do límpido arquitectismo de Francisco Vázquez. Na pronúncia, o K deve sair gutural, amargurado, cuspinte, como corresponde à única resposta possível perante a tragédia de os verdadeiros problemas sociais serem substituídos pelo simbolismo de um nome.
Porque, como escreveu o linguista dinamarquês Jacob Mey, «Não há soluções linguísticas para os problemas sociais». Logicamente, escreveu-no em inglês.