Publicado em A Nosa Terra 554, 28 Janeiro 1993, p. 25
A medida que nos envolve cada vez mais provavelmente a maior contradição cultural da era moderna (a suposta unificação dos povos de Europa, que contrasta com o ressurgir das identidades locais), surpreende-me também cada vez mais viver num país que esquece gradualmente não como é, senão mesmo como era ontem, antontem, nesse longo período preto mas precisamente por isso intenso da repressão cultural da pós-guerra. A escusa para as minhas reflexões surge esta vez duma notícia dum sucesso aparecida na imprensa local mas com duvidosas miras universalistas que às vezes não temos mais remédio que comprar.
Mas, antes de relatar a notícia tal como foi, imaginemos uma versão quase idêntica do mesmo sucesso que aparecesse na imprensa doutro lugar, por exemplo, de Samora:
«ZAMORA. Redacción. Un individuo encapuchado, de 1,70 de estatura y con acento zamorano, atracó a un empleado de banca que acababa de recoger más de dos millones de pesetas (…)»
Só a um extraterrestre muito bêbedo lhe passaria por alto a curiosa referência ao “acento” do atracador. Mesmo assim, numa rajada de lucidez etílica, o extraterrestre poderia chegar a pensar: “Mas a que virá a menção ao acento samorano em Samora??”.
A notícia real, publicada em La Voz de Galicia (15-9-92, p. 29), refere-se a um atraco na zona do Burgo (Corunha), e diz textualmente: «LA CORUÑA. Redacción. Un individuo encapuchado, de 1,70 de estatura y con acento gallego, atracó a un empleado de banca (…)». O assaltante fica, assim pois, definido por uma série de traços identificadores entre os quais se conta esse «acento gallego» com o qual pronunciou a ameaça «dame todo el dinero que llevas o te mato»; dá-se também informação precisa da sua estatura e vestimenta, o veículo em que viajava, e mesmo a cor negra da matrícula, que segundo algumas «fuentes» era portuguesa.
Confesso que quando li a notícia fiquei um bom tempo tentando de lhe dar sentido a esta estratégia de marcar como salientável o que é um facto quotidiano para a imensa maioria dos habitantes de Galiza: ter “acento galego”, mesmo quando se fala espanhol, e mesmo para aquela minoria urbana de origem galega que só conhece o espanhol. O “acento” (constituído a grosso modo pela fonética e a prosódia), como outros traços de identificação cultural, adquire-se pela prática, distribui-se espacialmente através da interacção, e não respeita fronteiras linguísticas do tipo galego/espanhol. Mesmo existem gradações na distribuição dos traços do acento, de maneira que, por exemplo, um galego de cidade pode ser identificado na Andaluzia como “do Norte” (incluindo Asturies e mesmo Euskadi), enquanto para nós, obviamente, o “acento asturiano” é perfeitamente discernível do nosso.
Assim, as marcas de identificação social e cultural como o acento adquirem a sua relevância em cada contexto específico. A identidade (ser “galego”, “de cidade” ou mesmo “atracador”) é invocada, construída e negociada na prática, incluindo a prática da fala. Como parte dessa construção da identidade, quando um traço social não está marcado, geralmente passa desapercebido. Por exemplo, rara vez dizemos “Estive falando com uma pessoa, humana, com linguagem articulada”, etc. Se a nossa língua habitual de comunicação com Maria é o galego, raramente lhe referimos a uma terceira pessoa: “Maria disse-me em galego que me convidava a cear”. O que chama a atenção da notícia citada, portanto, é a aparente redundância de apresentar como marcado o feito de o assaltante ter “acento galego”. É na interpretação dessa expressão (“ter acento”, e concretamente “ter acento galego”) onde devemos nos deter para entendermos o que subjaz ideológica e culturalmente à situação referida na notícia.
Por continuar no assunto, o que se entende por “acento cerrado”, por exemplo, pode-se interpretar como uma metáfora de relações sociais. Dizemos que um acento dado é “cerrado” na medida em que nos for alheio, na medida em que não podemos “entrar” nos seus matizes e, portanto, parece-nos obscuro, marcado, remoto, mesmo ameaçador. Noutras culturas articula-se esta relação de maneira diferente: em inglês fala-se de “acento pesado”, heavy accent, reflectindo assim, por contraste, a suposta ligeireza e claridade da fala padrão. O “acento cerrado” da Galiza invoca tipicamente a atmosfera pecha das aldeias interiores, dos vales frios e profundos, onde persistiriam obscuros costumes e formas de conduta que aos grupos urbanos lhes apavora assumir como suas. Não obstante, alguns dos traços deste “acento cerrado” (talvez os mais significativos) estão também presentes nas falas urbanas que, fora da Galiza, são identificadas como “acento galego”: certas entoações descendentes, as acusadas subidas e baixadas da melodia da voz, e a pronúncia velar das nasais finais de palavra, por nomear alguns deles.
Em qualquer caso, descrever o acento de alguém como “cerrado”, “pesado” ou mesmo “galego” revela um sentimento de diferença e alteridade respeito da outra pessoa, do outro, que se tenta construir assim como o Outro, o alheio, o distinto. E, pelo comum, marcar estereotipicamente o sotaque do Outro (ou outras características da sua conduta) assinala por contraste um achegamento face a quem nos escuta, a quem queremos ver como um de Nós, e de quem esperamos que reconheça a diferença assinalada no Outro.
Que implica, pois, dizer que uma pessoa tem “acento galego”? Como pode servir esse traço de conduta, tanto no plano da comunicação como no plano prático, para o reconhecimento do indivíduo em questão? A quem vai dirigida uma descrição tal, e quem são os destinatários (leitores) potenciais?
Pode se interpretar, em primeiro lugar, que no caso que nos ocupa “acento galego” não é mais do que um sinónimo de “acento cerrado”: o atracador vem duma aldeia perdida, das que já quase não há. Ou, talvez, nascer nasceu na vila, entre nós, mas nunca habitou realmente entre Nós, e morou sempre nos recantos húmidos das aulas, das ruas avessias, na resvaladiça companha doutros apestados entre os quais apreendeu as turvas técnicas para perturbar a nossa ordem.
A expressão “acento galego” pode assim mesmo sugerir que o atracador tinha um acento “mais galego” do que o Nosso, o do jornalista, o do empregado de banca que denunciou o atraco, o doutras testemunhas, o dos leitores. O falacioso desta interpretação é que não há jeito possível de medir o “grau de acento” nem do assaltante, nem do empregado, nem das testemunhas, nem do jornalista, com o qual cada um de nós ou dos investigadores policiais lhe atribuiria a um suspeitoso potencial o “grau de acento galego” por comparação com o acento próprio, e portanto a descrição “o atracador tinha acento galego” é tão inútil e irrelevante como “o atracador vestia roupa mais obscura do que a nossa”.
A interpretação mais provável refere-se, sem dúvida, à da negação da própria identificação “galega” por parte do empregado, ou do jornalista, ou das testemunhas, ou de todos eles, ou de Nós. A caracterização dum indivíduo socialmente estigmatizado, marginal, através do seu “acento galego”, mais que servir funções práticas de limpeza social, actua como uma estratégia de desidentificação com aquilo que até há pouco se sentia como próprio.
Por uma parte, estabelece-se um contraste implícito “acento galego/acento espanhol”, que corre em paralelo ao contraste “O Alheio/O Próprio” ou “Eles/Nós”. É possível que a este contraste se acrescente o de “galego-português/espanhol”, pelas referências à matrícula do coche do atracador.
Mas, em segundo lugar, o fundamental é o processo de negação do tradicional e de ocultação do documentável, é dizer, a existência, entre a imensa maioria dos falantes de Galiza (incluso os monolingues em espanhol), de algo que podemos chamar “acento galego”, que é reconhecível linguisticamente e que compartilhamos, apesar de nós mesmos e por cima doutras diferenças internas de sotaque, também documentáveis.
Mas, que terá a ver tudo isto com o título e o começo do artigo?, podem se perguntar alguns. Que terá isto a ver com a repressão cultural da pós-guerra espanhola? E com a resistência cultural?
Quero explicar a relevância do caso para uma crítica da nova identidade cultural urbanizante que galopa pelo estado espanhol e por Europa nesta era de sonoras efemérides. Na Galiza, os novos cidadãos do ocidente unificado (exemplificados neste caso pelo jornalista e/ou os informantes da notícia) situam-se claramente, através da palavra, dentro do território simbólico do “espanhol”, para observar de fora o “galego(português)” e marcá-lo como alheio.
Estas estratégias de desidentificação cultural em parte respondem às ideologias de “unidade” dominantes, e em parte são soluções de autodefesa perante a falha duma consciência de resistência cultural. Quando falar “galego” estava marcado socialmente, o conflito era tão visível que a alguns não lhes resultava difícil resistir, e a muitos outros entender, pelo menos, que existisse resistência. O “acento galego”, tão “musical” e “agarimoso”, via-se nos discursos espanholistas como uma riqueza folclórica, um atributo cultural “idiossincrásico” precisamente porque não ameaçava em si próprio os mecanismos de distribuição do poder. Mas agora que já não se trata tanto da “língua” (em parte porque são as próprias instituições as que falam algo que se tenta edificar como “galego”), o que resta por eliminar simbolicamente para aqueles que já educam os seus filhos em espanhol é o “acento”. Simbolicamente, digo, porque na prática a tarefa de eliminar o próprio acento requer consideráveis esforços e treino consciente, e (desenganem-se) mesmo assim sempre ficará algo na fala que nos identifique como pertencentes a um grupo social determinado. Afortunadamente, sempre nos quedará algo assim como um acento. Na prática, a imensa maioria temos e seguiremos tendo “acento galego”, isto é: uma realidade linguística e uma categoria cultural na que, junto com a fala, a reflexão sobre a fala, e a leitura atenta do inicialmente oculto por detrás dos factos sociais, podemos basear a resistência.