Enviado a A Nosa Terra; não publicado
O exército é sem dúvida a instituição mais repugnante jamais criada pola humanidade. O que começara como guerras locais entre espécies ou bandas tornou-se, com o decorrer da barbárie humana, na indústria mais poderosa do planeta. O grau de sofisticação dos instrumentos de destruição e morte é algo tão arrepiante que só nos pode levar a duvidar do sentido do universo. Há armas que estragam desde dentro, deixando cavidades irreparáveis na epiderme. Há armas de metal pequeno que furam os caminhos harmoniosos do corpo e rebotam deixando ao sair ronséis vermelhos e retalhos de carne. Há armas que estouram ao pisá-las sementando de órgãos sanguinhentos as areias. Há armas que matam lentamente; na sua agonia atómica, o corpo perde a pele e os cabelos e remata a vida entre vómitos vazios, impotentes. Há armas que matam muitos anos depois, de cancro e de cegueira. Há armas que deixam mapas queimados na pele, como metáforas macabras dos territórios ocupados: a Beira Oeste, a Faixa de Gaza, Panamá, Kuwait, Irlanda. Há armas que asfixiam e armas que desmembram. E há armas legais que assassinam nas câmaras esterilizadas dos presídios, armas que electrocutam com consenso, armas policiais que derrubam desesperados ladrões urbanos na cumplicidade da noite, armas conjugais que deixam uma mulher a dessangrar-se nos labirintos grassosos da cozinha, armas anatómicas que violam meninhas de dous anos, armas de tinta que assinam execuções e masculinas leis injustas.
Ergo-me cada manhã a escutar os esquizofrénicos hinos de guerra dum Ocidente governado por dous poderosos ex-polícias. A rádio detalha as últimas evoluções da crise do petróleo: hoje semelha que haverá guerra, hoje semelha que não. De qualquer modo, a guerra representa-se como um monstro inapelável, como uma força superior que “há” ou que “não há”. A História construi-se como uma eventualidade violenta, regida por si própria, já não por actores sociais supostamente dotados do atributo de transformar a vida. A História, pois, des-agentiza-se, esvazia-se de conteúdo social, torna-se num melodrama comercial que já dura muitas décadas onde heróis e anti-heróis se apropriam da identidade e absorvem os atributos dos povos para representarem nos teatros de operações uma alegoria assimilável. Para alguns, os novos demos chamam-se Saddam Hussein, Arafat, Gadafi, Fidel Castro; para outros, Bush, Thatcher, Gorbachev; para os poucos, De Clerk. Em todo caso, a guerra –a sua guerra– é o máximo actor que escapa aos desejos humanos: como um deus, a guerra simplesmente acontece ou não acontece, a guerra simplesmente é ou não é.
No Berkeley dos últimos dias, um homem alucinado entrou num local uma meia-noite cuma mala de pistolas, balas e semiautomáticas para assassinar um jovem e ferir outros seis. Durante sete horas de pesadelo, o homem mantivo trinta persoas como reféns e humilhou as mulheres presentes obrigando-as a actos de simbologia sexual. Por fim o paranóico mercenário saiu do bar como um cadáver despido, acribilhado polos GEOs locais. Mas não acreditemos na loucura: a tolémia deste homem (nunca uma mulher tem feito violência em massa desta classe) é só um epifenómeno: a verdadeira tolémia é a que lhe permite dispor legalmente dum arsenal no seu apartamento. A verdadeira tolémia consiste na glorificação jurídica dum instrumento de ferro que leva inscritos os três símbolos dos tempos: um falo, um engenho nuclear, a bandeira da VISA.
Escuto na rádio uma entrevista com três mulheres das forças aéreas estado-unidenses, a sobrevoarem em máquinas de morte o Golfo Pérsico. Duas delas láiam-se da distância dos seus homens, também no exército: numas forças armadas profissionais, as mulheres nunca pensaram que iam ser chamadas ao serviço. A terceira, lesbiana não reconhecida, limita-se a responder sobre a sua vida familiar: eu tenho um gato. A incorporação das mulheres ao exército é uma das estratagemas mais poderosas do patriarcado ocidental, e orienta-se à manufactura do consenso: quando as mulheres matem também, matar já não será masculino.
A filmografia mais recente abunda em tramas miméticas que reproduzem numa estética entre atraente e repulsiva os mitos violentos do momento: o último filme de David Lynch, Wild at Heart, é o correlato extremo dum ambíguo Átame hispânico que permite contraditórias leituras de inquietante conformismo ou de revolta. Scorsese, com Good Felhas, refocila-se no mais viril e sanguinhento das histórias da máfia. E, num número incontável de subprodutos cinematográficos, a estética tradicional dos explosivos combina-se com a estética pós-moderna das caudas de cavalo, a barba de dias, as jaquetas frouxas obscuras, a gomina e a individualidade de film noir do macho solitário, esse soldado intrínseco incompreendido polo mundo.
Que paisagem inquietante nos oferece esta década? Junto com o muro de Berlim, o conceito gramsciano de sociedade civil derruba-se dolorosamente perante a evidência dos 90: a sociedade que impera agora mais que nunca é a militar. Ainda com o fim aparente da guerra fria, com a possível redução dos exércitos, com o desmembramento da OTAN e do Pacto de Varsóvia, o exército seguirá vivo entre nós, pois é o que nos constitui. Ainda des-institucionalizado, o exército levámo-lo dentro na violência doméstica, nas labaçadas em público, nas violações nos parques urbanos, na expulsão indefinida dum aluno, na retórica da ofensa, no controlo masculino do poder, na forma bojuda de apoltronar-se num gabinete oficial babando um puro e chamando Vicky à secretária.