De imagem, linguagem e identidades: Yolanda Castaño vs. Os Aduaneiros

Estes dias remexe parte da opinião pública galega a decisão do lugar web satírico-humorístico Aduaneiros sem Fronteiras na sequência de umas cartas do advogado da poeta Yolanda Castaño requerindo que eles retirassem uma animação “flash” sobre ela e uns comentários anónimos e públicos que Castaño considerou ofensivos. O que está em jogo neste assunto é a dialéctica entre as imagens públicas de um e outro agentes (Castaño e os Aduaneiros), e o tipo exacto de acção que o representante de Castaño levou a cabo com as suas cartas (“ameaça”, “advertência”, “recomendação” ou “conselho”). Em breve, entram em relação três elementos: a imagem pública, as linguagens verbal e visual, e a identidade.

Da Imagem

O sociólogo canadiano Ervin Goffman elaborou no conceito de imagem pública ou face, adaptado de expressões da cultura chinesa “ter face” (ter imagem), “estar em face”, etc. Por simplificar, chamarei-na “imagem”. Contra o que se possa pensar, a “imagem” não é apenas qualificável de ‘boa’ ou ‘má’, ou outras qualidades, mas é um conjunto de atributos que uma pessoa tem e/ou que os outros supõem que tem em virtude do que Goffman chamou o “curso de acção” desta pessoa, quer dizer, a trajectória dos seus actos. Esta trajectória cria noutrem uma expectativa de conduta futura. Por exemplo, se alguém e habitualmente generoso, ser tacanho um dia pode romper a sua “imagem” e, em palavras de Goffman a imagem pode ficar danada.

A imagem, como recurso, cultiva-se, elabora-se, protege-se, defende-se, etc., mas também pode ser ameaçada e em consequência danada. Mas, contra o que se possa pensar, uma ameaça à imagem (por exemplo, um insulto) não pode danar potencialmente apenas a imagem da pessoa insultada, mas também a da pessoa que insulta. Os antigos “manuais de civilidade” burguesa destinado a meninhos ou senhoritas sabiam isto muito bem, a recomendar a “boa conduta” social polo próprio bem da pessoa.

A imagem é frágil, vulnerável, e portanto os humanos cuidam muito de protegerem não só a imagem própria, mas também das pessoas próximas. Evidentemente, os ataques existem, e estes ataques, em ocasiões, podem até reforçar a imagem do atacante se, por exemplo, são coerentes com o seu “curso de acção” anterior. Um ariete dialéctico no parlamento, tipicamente os porta-vozes dos partidos, devem ritualmente atacar a imagem do adversário, e fazendo assim, reforçam a imagem própria.

Algo disto é o que aconteceu neste assunto. Os Aduaneiros atacaram a imagem de Yolanda Castaño com a sua sátira gráfica consistente em fazer mudar as roupas da poeta (casacos, pantalões, saias…) recolhendo, precisamente, aspectos do que eles consideram ser a imagem pública de Castaño: a mudança de roupas é tanto uma metáfora da sua conduta no assunto de Sargadelos quanto um ícone da prática percebida habitual em Castaño de destacar a sua estética pessoal, autorreferencialidade também presente na sua poesia. A animação gráfica, por exemplo, contém prendas idênticas às que a aparecem nas fotografias de Yolanda Castaño na sua própria página web (uma saia azul, um pano de pescoço, uma blusa…). Portanto, igual que no humor verbal, aqui a sátira consiste em jogar com os duplos sentidos de “mudar de casaco”. Os Aduaneiros subvertem esta auto-referencialidade e esta reflexividade de Castaño, fazendo dela um brinquedo de outros (como já teria sido um brinquedo da Galeria Sargadelos, na sua “traição”), e esvaziando-a assim de poder.

Por sua parte, Castaño ataca a imagem dos Aduaneiros tentando deslegitimar a sua criatividade, a sua identidade (mais sobre isto depois): tentando, em definitivo, impor neles uma outra linha de acção, com uma intervenção do seu advogado Pablo Carvajal: a retirada desta gráfica e dos comentários anónimos que ela julga ofensivos (e que não são responsabilidade dos Aduaneiros), e que, como a gráfica, também “ispem” Castaño dos seus atributos simbolicamente, a revelarem aspectos sua imagem íntima. Mas enquanto estes comentários são públicos, espi-la na gráfica é um acto privado que, presumivelmente, ratos e cursores sobretudo masculinos terão feito.

A maneira como Castaño tenta danar a imagem dos Aduaneiros é, entre outras, a meio duma carta que merece atenção à parte.

Da Linguagem

A carta do advogado, que reproduzem os Aduaneiros, é um acto chamado directivo que, com uma força por determinar, quer obter como resultado que os Aduaneiros retirem tanto a gráfica como os comentários. Os Aduaneiros, nos seus comunicados, chamam isto uma “ameaça”. Yolanda Castaño chama isto uma “petição”. Na realidade, trata-se de uma advertência.

Uma ameaça é um ataque directo à face ou à integridade de alguém: “Vou-te matar, faças o que fizeres”. Uma petição parte do poder assumido no interlocutor: “Podes passar-me o sal? Se queres ou não, é decisão tua”. Uma advertência é como uma ameaça (um acto negativo para o destinatário) mas contém uma condição a cumprir: “Se não move o seu carro da minha garagem, chamo à polícia”.

As palavras do advogado são uma clara advertência:

“Nuestra intención es solventar esta cuestión de la forma mas amistosa posible, sin tener que recurrir a la via penal por un delito de injurias con publicidad, por ello en el plazo máximo de 10 dias desde la notificación de esta misiva, le aconsejo que retire de la web cualquier alusión a la persona de mi representada, así como dicho montaje de “cambiado de ropa”, fotos, etc.”

Para quem ameaça a imagem dos Aduaneiros, “solventar esta questão amigavelmente” consiste em não ter que recorrer à “via penal”, e isto está condicionado a uma acção por parte dos Aduaneiros a cumprir, além, num prazo dado. O “conselho” parte duma assumida posição de maior poder por parte de Yolanda Castaño, e portanto representa uma coacção. Eu, por exemplo, posso “aconselhar” um gigante a retirar-se do meu caminho e só provocarei a sua hilaridade; mas, como professor, sei que “aconselhar” a meus estudantes a apresentarem um dado trabalho significa que, caso de não o fazerem, há uma consequência negativa (uma nota mais baixa) que eu posso dissimular como emanando dum sistema do que não sou responsável. Da mesma maneira, um advogado percebe que as possíveis consequências negativas sobre a outra parte não emanam dele, mas do sistema, e são fruto de uma acção primeiramente negativa por parte do outro. Evidentemente, um estudante sabe que a minha “coacção” pode ser cumprida, visto que o seu papel no sistema é cumpri-la. Mas um lúdico Aduaneiro não vai pensar que o seu papel no sistema de acções positivas e negativas seja cumprir os “conselhos” da parte, precisamente criticada, e sabe que o seu trabalho é, precisamente, exercer a liberdade de expressão dentro do universo possível do humor onde se vulnera (e se espera que se vulnere) a ordem semântica por sistema. Portanto, para um Aduaneiro que fez bem o seu trabalho o “conselho” de um advogado é uma coacção.

Perante esta coacção, os Aduaneiros têm várias estratégias para restaurarem a sua imagem: pedir desculpas (as imagens de ambas partes ficariam restauradas), “contra-atacar” com mais sátira (demonstrando que são coerentes com a sua identidade, mas arriscando-se a consequências negativas) ou, como neste caso, evitar a consequência negativa abrindo, como dizem, um “juízo público”. O que os Aduaneiros estão a dizer com o seu feche é que eles exercem a sátira, não o jogo judicial. É evidente que a coacção de Yolanda Castaño é altamente ameaçante para a sua imagem, como seria para a poeta uma grande ameaça a sua imagem o hipotético “conselho” por parte da Conferência Episcopal de que retirasse tal ou qual poema erótico por ofensivo, sob advertência de iniciar contra ela um processo penal por atentado à moral.

Das Identidades

Porque o “delito de injúrias” é um dos mais insidiosos do Código Penal español. A injúria é uma forte ameaça à imagem pública. Porém, a natureza desta imagem depende em grande medida, precisamente, da natureza dos actos públicos da pessoa ameaçada. Se alguém publica na Internet um forte ataque contra uma pessoa comum da rua que não tem qualquer projecção pública além da sua família e os seus amigos, evidentemente há uma utilização malintencionada dos poderes da Rede para fazer dano. Mas a imagem tanto de Yolanda Castaño quanto dos Aduaneiros é resultado dos seus respectivos cursos de acção públicos, sujeitos ao escrutínio de um número previamente sem determinar e sem delimitar de pessoas, potencialmente muito grande (a diferença de uma família ou de um grupo de amigos). Se um escritor qualquer qualquer se “ispe” emocionalmente nas suas publicações e um humorista qualquer “ispe” a sua ideologia nos seus desenhos, não admira que ambos actos sejam recursos aproveitáveis para o confronto.

A questão, portanto, é o escopo desta imagem, quer dizer, a sua amplitude social, o número de pessoas que potencialmente podem perceber (e produzir) esta imagem. E a questão está intimamente ligada com o escopo das identidades que se projectam. A antropóloga norte-americana Judith Irvine explicou como uma identidade pública formal, por exemplo “ser alcaide”, “ser professora”, se baseia em que a pessoa estabelece uma relação com um número amplo de outras em função dos actos (e do seu tipo) que exerce para/face a elas, e é para estas pessoas para quem “ser alcaide” ou “ser professora” é relevante. Cada um de nós “somos” muitas cousas. Mas selectivamente invocamos (diz Irvine) uma ou outra identidade, quer dizer, fazemo-la relevante.

Os Aduaneiros são “humoristas gráficos”, e a amplitude desta identidade alcança as pessoas que visitam a sua página ou que a conhecem. Os que lêem a página são “leitores” ou “espectadores”, não “humoristas”, embora possam ser muito engraçados nos seus comentários. E Yolanda Castaño é “poeta”, é “escritora”, é “apresentadora de televisão”, é “directora de galeria cultural”, é “vídeo-artista”, além, claro, de ser “mulher”, “galega”, “jovem” e outras identidades.

Mas, em virtude de qual destas identidades viu Castaño ameaçada a sua imagem? Como “poeta”? Como “mulher”? Como “directora de galeria de arte”? Ou como uma identidade que resume alguma destas, a de “figura pública”? A sátira dos Aduaneiros, em consonância com a prática global de Castaño, brinca com algumas destas dimensões, a espi-la como “mulher” pola sua “traição” como uma “directora de galeria cultural” que, como “poeta”, apoiara anteriormente o defenestrado Isaac Díaz Pardo. Com efeito, Castaño mesma faz relevante a sua identidade como “mulher” quando é “poeta”, e, na intertextualidade da sua obra, também é “poeta” quando é “vídeo-artista”. Portanto a sua reacção indica que ela recolhe a amplitude da identidade que os Aduaneiros fazem relevante (“figura pública”) com a que brincam os Aduaneiros.

Mas, pode Castanho como “mulher” levar adiante um processo legal viável contra os Aduaneiros, alegando que a sátira é sexista? Pode fazê-lo como “poeta”? Ou é sobretudo como “directora de galeria artística” que procura reforçar a sua imagem, para desbotar sombras da sua “traição” e assim reforçar esta identidade e portanto a imagem da empresa para a que trabalha?

O tempo dirá. No entanto, a minha opinião como estudioso do discurso é que Yolanda Castaño, a quem apreço pessoalmente tanto como apreço os Aduaneiros, fez o que Goffman chama um faux pas social: literalmente, um passo em falso que dana mais do que reforça a sua imagem (à margem do resultado dos procedimentos jurídicos que houver), a dar mais publicidade à gráfica e aos insultos à sua pessoa da que tivera antes.

Porque a efectividade do inteligente dictum de Oscar Wilde “O importante é que falem de um, ainda que seja para bem” tem um requerimento prévio importante: ser um maldito, e reforçar a imagem provocando ainda mais crítica. Se Goffman estivesse vivo, penso que me daria um Aprovado na diagnose: perante a hipótese de Castaño danar a imagem dos Aduaneiros metendo um advogado para reforçar a própria, o mais inteligente teria sido a estratégia que se chama evitar o dano, isto é, o elegante silêncio.