Molesta

Publicado em Novas da Galiza 72, p. 20 • No Portal Galego da Língua

     Recentemente teve lugar em Compostela a Sessão Inaugural da Academia Galega da Língua Portuguesa, cujo presidente é o professor José-Martinho Montero Santalha, especialista em literatura medieval (em literatura medieval galego-portuguesa, isto é, em literatura medieval). Esta Academia da Língua reúne e reunirá um bom número de pessoas que levam anos a fazerem trabalho sério e dedicado. Trabalho reintegracionista, como o desta publicação.
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Uma língua difícil para a Galiza

Publicado em Vieiros

Polo pouco que sei sobre as relações entre essas abstrações que são “a língua” e “a sociedade”, qualquer língua escrita é muito difícil de dominar. Frente à fala, que se vai aprendendo como parte do processo de comunicação (que inclui outras cousas), a língua escrita acarreta anos de aprendizado formal, desde a caligrafia até à prosa mais elaborada. O maior ou menor número de anos é circunstancial para compreendermos em que consiste o processo de aprendizagem da escrita: consiste no estabelecimento de critérios de classificação social entre a gente “que sabe” e a que “não sabe”. Isto é assim na China com os seus milhares de caracteres, no Japão com os seus quatro sistemas gráficos, ou no crioulo papiamentu com a sua ortografia pretensamente “fonémica”. Ou, evidentemente, na Galiza. Isto é assim em qualquer sociedade de classes.

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“Yo lo dispuse todo imagen tras imagen”

Publicado em Vieiros
Reproduzido, com ficha técnica, em Poesiagalega.org

     Nunca esquecerei este verso de Álvaro Pombo, que me amartela inesperadamente igual que me amartela “and what remains is just the sense of getting older”, dum para mim incógnito John Koethe, ou como enxotar a morte / esse animal sonâmbulo dos pátios da memória”, do nosso Eugénio de Andrade. Esqueci mais, sim, a poesia de Félix de Azúa, e não tanto a sintaxe precisa do primeiro Vargas Llosa, a quem devorei com outros sudamericanos (Cortázar, Borges, Lezama) desde a adolescência até aos anos 1978-80 em Barcelona. Eram os anos em que acabei Filologia Hispânica nas aulas da então chamada Universitat Central. Lembro uma inteligente Pilar Rahola de boina escorada que destacava já pola sua palavra veloz, uma outra Pilar aragonesa que adivinhou que eu nunca seria um bom escritor, e o entranhável burgalês Javier López com quem trocava escritos e que provavelmente nunca saiba que hoje falo dele. Eram os anos em que publiquei o meu único texto em español na minha vida, um continho na efémera revista diletante Delta, de estudantes de Filologia de Barcelona.

     Sou venturoso prisioneiro do verso de Álvaro Pombo porque durante décadas fora educado só em español, excepto nas calorosas aulas de tarde de Maite Caramés no liceu Santa Irene de Vigo, provavelmente polo ano em que o poeta Carlos Oroza fora convidado por Ferrín a dar um inigualável recital em língua española que também nunca esquecerei. Sou prisioneiro da formosura dessa literatura em língua española porque eu era filho estético da sua normalidade, como o foram escritores e escritoras galegas que me antecederam e me sucederam. Foi a língua española que ofereceu o modelo de rigor estilístico e formal e grande parte da imaginaria de que tantos e tantas escritoras galegas atuais se nutriram e se nutrem, para agora publicarem em galego nas editoras monolíticas e ganharem muitos prémios. Eles podem sabê-lo, ignorá-lo ou negá-lo, mas a sua dívida com a língua española é essa, e é grande.

     Felizmente, o meu périplo cultural particular levou-me a compreender quanto tempo, também, perdera no meu interesse pola língua española. Há vinte e cinco anos, nos Estados Unidos, em contato constante com pessoas que sim que possuíam língua (brasileiros, colombianos, estadounidenses), percebi fortemente o que é uma língua, e quanto nos faltava na Galiza. Por saber español e ler as suas literaturas, deixara de saber e de ler muitíssimas cousas da língua portuguesa e das suas literaturas, como a nossa. Amiúde lamentei não ter tido a oportunidade de sentir na adolescência, quando se formam tantos critérios, a mesma pulsão pola literatura em língua portuguesa, em língua galega. E ainda não temos várias vidas. Por isso, por razões políticas, vitais e estéticas, que são as mesmas, nos EUA comecei a abandonar o español como Língua, e ré-conheci a língua que agora pratico e a que, dizem, é a do meu país e de outros. E soube que devia procurar recuperar o tempo perdido. Agora não leio praticamente nada de literatura em español: não tenho tempo para ignorar ainda mais a literatura própria. Isto não significa que conheça muita literatura galega, portuguesa ou brasileira, em absoluto. Mas o preço de não ter sido educado literariamente durante décadas na minha língua atual é que nunca chegarei a ser um bom escritor, se é que alguma vez tive a possibilidade de o ser.

     Não compreendo como nenhum inteletual com um mínimo sentido estético pode confundir essa Língua literária, rigorosa e portanto tirânica de que estamos a falar (a española, a portuguesa e galega, a inglesa) com essoutros pobres dialetos oficiais ou para-oficiais que se utilizam nas administrações (todas), na política (a que for), e noutras burocracias. Mas resulta que são estes códigos, e não a língua literária, que parece que sublimam de maneiras monstrosas as essências humanas e nacionais, e parece que é em torno deles, e não em torno da língua literária, que se argalham Manifiestos cavernícolas. Não compreendo como, nas aras desses códigos utilitários e quotidianos (no pior sentido da palavra) cuja obrigatoriedade de conhecimento até se defende, se quer negar a possibilidade de que uma geração inteira se possa inundar da tirânica língua literária do seu próprio país para que daí saiam as poetas e os poetas, como corresponde, para que nalgumas pessoas polo menos surja o assombro da palavra e anos mais tarde elas possam lembrar, inesperadamente, sem mais meta que o fascínio, um verso aberto e inapreensível.

     Por isso, o Manifiesto da pretensa língua comum do Reino exibe uma vulgaridade tal que faz duvidar que tenha sido assinado verdadeiramente, por exemplo, polo mesmo poeta que foi capaz de escrever o verso que abriu este escrito. O Manifiesto de inteletuais españóis quer negar que cada um dos países do Estado que dizem querer ser países imponha a necessária intensidade social de onde surge a Língua e portanto a boa literatura. Um feixe de escritores españóis já conhecidos, num exercício de triste solipsismo quase prevaricador, quer negar a literatura própria nos seus idiomas a milhões de jovens que a sentem ou nalguma altura a sentirão assim, como própria e como literatura.

     Mas enganam-se os manifestistas españóis se pensam que com isso a sua língua literária vai recobrar o fulgor estético dominante que nos impôs a uniformidade do Fascismo. Já não é possível, nem mesmo conveniente para eles. O único que o regresso ao passado conseguiria é que os jovens continuassem a aprender a cultivar as suas línguas atravês do rigor do español, como há décadas. Nunca desapareceríamos. Por isso, deixem os manifestistas españóis que os seus filhos hispanofalantes polos quais dizem levantar-se em armas de papel, se é que não moram no Centro monolingue, possam mergulhar plenamente numa outra língua imposta contra eles, como mergulhámos nós, e que assim, polo menos, possam ter literatura. Nenhum inteletual manifestista español quisera que desaparecessem as literaturas galega, basca ou catalã: no seu comércio, é precisa também esta concorrência. Mas, como querem que se cultivem outras literaturas se não é a golpe de imersão nas suas línguas, até como impostas línguas estrangeiras, igual que gerações inteiras sentimos durante décadas o español nos nossos próprios países? Deixem os manifestistas aos jovens escolares o prazer de descobrirem o verso perfeito da Galiza, e que, anos mais tarde, o citem por acaso, ainda sem compreenderem de todo o seu sentido poético (precisamente por não compreenderem de todo o seu sentido), e até se rebelem contra ele, contra o monolitismo da distinta língua única. Deixem os amargurados manifestistas españóis que cada um dos países agora engolidos no Reino gere os seus poetas, as suas proezas, os seus monstros e as suas misérias, porque só se podem produzir bons monstros e boas misérias quando a Língua (a língua literária, não os tristes códigos burocráticos) nos arrodeia dia após dia e nos mata, por toda parte, em centenas de livros. É esta Língua que nos une, não a sua forma.

     Fiquem os literatos españóis com o seu país de letras, que já é grande, e aí poderão fazer cousas que eles estimem também grandes como o ouro. E nós, a gente de aqui, não façamos nem caso aos seus manifestos de sereia, que vão contra a própria estética da sua língua española. Porque, isso sim: que formoso e intraduzível será sempre o verso de Álvaro Pombo, “Yo lo dispuse todo imagen tras imagen”. Em matéria de língua, não de formulário, isso é o que deveria importar: ser intraduzível.

De imagem, linguagem e identidades: Yolanda Castaño vs. Os Aduaneiros

Estes dias remexe parte da opinião pública galega a decisão do lugar web satírico-humorístico Aduaneiros sem Fronteiras na sequência de umas cartas do advogado da poeta Yolanda Castaño requerindo que eles retirassem uma animação “flash” sobre ela e uns comentários anónimos e públicos que Castaño considerou ofensivos. O que está em jogo neste assunto é a dialéctica entre as imagens públicas de um e outro agentes (Castaño e os Aduaneiros), e o tipo exacto de acção que o representante de Castaño levou a cabo com as suas cartas (“ameaça”, “advertência”, “recomendação” ou “conselho”). Em breve, entram em relação três elementos: a imagem pública, as linguagens verbal e visual, e a identidade.

Da Imagem

O sociólogo canadiano Ervin Goffman elaborou no conceito de imagem pública ou face, adaptado de expressões da cultura chinesa “ter face” (ter imagem), “estar em face”, etc. Por simplificar, chamarei-na “imagem”. Contra o que se possa pensar, a “imagem” não é apenas qualificável de ‘boa’ ou ‘má’, ou outras qualidades, mas é um conjunto de atributos que uma pessoa tem e/ou que os outros supõem que tem em virtude do que Goffman chamou o “curso de acção” desta pessoa, quer dizer, a trajectória dos seus actos. Esta trajectória cria noutrem uma expectativa de conduta futura. Por exemplo, se alguém e habitualmente generoso, ser tacanho um dia pode romper a sua “imagem” e, em palavras de Goffman a imagem pode ficar danada.

A imagem, como recurso, cultiva-se, elabora-se, protege-se, defende-se, etc., mas também pode ser ameaçada e em consequência danada. Mas, contra o que se possa pensar, uma ameaça à imagem (por exemplo, um insulto) não pode danar potencialmente apenas a imagem da pessoa insultada, mas também a da pessoa que insulta. Os antigos “manuais de civilidade” burguesa destinado a meninhos ou senhoritas sabiam isto muito bem, a recomendar a “boa conduta” social polo próprio bem da pessoa.

A imagem é frágil, vulnerável, e portanto os humanos cuidam muito de protegerem não só a imagem própria, mas também das pessoas próximas. Evidentemente, os ataques existem, e estes ataques, em ocasiões, podem até reforçar a imagem do atacante se, por exemplo, são coerentes com o seu “curso de acção” anterior. Um ariete dialéctico no parlamento, tipicamente os porta-vozes dos partidos, devem ritualmente atacar a imagem do adversário, e fazendo assim, reforçam a imagem própria.

Algo disto é o que aconteceu neste assunto. Os Aduaneiros atacaram a imagem de Yolanda Castaño com a sua sátira gráfica consistente em fazer mudar as roupas da poeta (casacos, pantalões, saias…) recolhendo, precisamente, aspectos do que eles consideram ser a imagem pública de Castaño: a mudança de roupas é tanto uma metáfora da sua conduta no assunto de Sargadelos quanto um ícone da prática percebida habitual em Castaño de destacar a sua estética pessoal, autorreferencialidade também presente na sua poesia. A animação gráfica, por exemplo, contém prendas idênticas às que a aparecem nas fotografias de Yolanda Castaño na sua própria página web (uma saia azul, um pano de pescoço, uma blusa…). Portanto, igual que no humor verbal, aqui a sátira consiste em jogar com os duplos sentidos de “mudar de casaco”. Os Aduaneiros subvertem esta auto-referencialidade e esta reflexividade de Castaño, fazendo dela um brinquedo de outros (como já teria sido um brinquedo da Galeria Sargadelos, na sua “traição”), e esvaziando-a assim de poder.

Por sua parte, Castaño ataca a imagem dos Aduaneiros tentando deslegitimar a sua criatividade, a sua identidade (mais sobre isto depois): tentando, em definitivo, impor neles uma outra linha de acção, com uma intervenção do seu advogado Pablo Carvajal: a retirada desta gráfica e dos comentários anónimos que ela julga ofensivos (e que não são responsabilidade dos Aduaneiros), e que, como a gráfica, também “ispem” Castaño dos seus atributos simbolicamente, a revelarem aspectos sua imagem íntima. Mas enquanto estes comentários são públicos, espi-la na gráfica é um acto privado que, presumivelmente, ratos e cursores sobretudo masculinos terão feito.

A maneira como Castaño tenta danar a imagem dos Aduaneiros é, entre outras, a meio duma carta que merece atenção à parte.

Da Linguagem

A carta do advogado, que reproduzem os Aduaneiros, é um acto chamado directivo que, com uma força por determinar, quer obter como resultado que os Aduaneiros retirem tanto a gráfica como os comentários. Os Aduaneiros, nos seus comunicados, chamam isto uma “ameaça”. Yolanda Castaño chama isto uma “petição”. Na realidade, trata-se de uma advertência.

Uma ameaça é um ataque directo à face ou à integridade de alguém: “Vou-te matar, faças o que fizeres”. Uma petição parte do poder assumido no interlocutor: “Podes passar-me o sal? Se queres ou não, é decisão tua”. Uma advertência é como uma ameaça (um acto negativo para o destinatário) mas contém uma condição a cumprir: “Se não move o seu carro da minha garagem, chamo à polícia”.

As palavras do advogado são uma clara advertência:

“Nuestra intención es solventar esta cuestión de la forma mas amistosa posible, sin tener que recurrir a la via penal por un delito de injurias con publicidad, por ello en el plazo máximo de 10 dias desde la notificación de esta misiva, le aconsejo que retire de la web cualquier alusión a la persona de mi representada, así como dicho montaje de “cambiado de ropa”, fotos, etc.”

Para quem ameaça a imagem dos Aduaneiros, “solventar esta questão amigavelmente” consiste em não ter que recorrer à “via penal”, e isto está condicionado a uma acção por parte dos Aduaneiros a cumprir, além, num prazo dado. O “conselho” parte duma assumida posição de maior poder por parte de Yolanda Castaño, e portanto representa uma coacção. Eu, por exemplo, posso “aconselhar” um gigante a retirar-se do meu caminho e só provocarei a sua hilaridade; mas, como professor, sei que “aconselhar” a meus estudantes a apresentarem um dado trabalho significa que, caso de não o fazerem, há uma consequência negativa (uma nota mais baixa) que eu posso dissimular como emanando dum sistema do que não sou responsável. Da mesma maneira, um advogado percebe que as possíveis consequências negativas sobre a outra parte não emanam dele, mas do sistema, e são fruto de uma acção primeiramente negativa por parte do outro. Evidentemente, um estudante sabe que a minha “coacção” pode ser cumprida, visto que o seu papel no sistema é cumpri-la. Mas um lúdico Aduaneiro não vai pensar que o seu papel no sistema de acções positivas e negativas seja cumprir os “conselhos” da parte, precisamente criticada, e sabe que o seu trabalho é, precisamente, exercer a liberdade de expressão dentro do universo possível do humor onde se vulnera (e se espera que se vulnere) a ordem semântica por sistema. Portanto, para um Aduaneiro que fez bem o seu trabalho o “conselho” de um advogado é uma coacção.

Perante esta coacção, os Aduaneiros têm várias estratégias para restaurarem a sua imagem: pedir desculpas (as imagens de ambas partes ficariam restauradas), “contra-atacar” com mais sátira (demonstrando que são coerentes com a sua identidade, mas arriscando-se a consequências negativas) ou, como neste caso, evitar a consequência negativa abrindo, como dizem, um “juízo público”. O que os Aduaneiros estão a dizer com o seu feche é que eles exercem a sátira, não o jogo judicial. É evidente que a coacção de Yolanda Castaño é altamente ameaçante para a sua imagem, como seria para a poeta uma grande ameaça a sua imagem o hipotético “conselho” por parte da Conferência Episcopal de que retirasse tal ou qual poema erótico por ofensivo, sob advertência de iniciar contra ela um processo penal por atentado à moral.

Das Identidades

Porque o “delito de injúrias” é um dos mais insidiosos do Código Penal español. A injúria é uma forte ameaça à imagem pública. Porém, a natureza desta imagem depende em grande medida, precisamente, da natureza dos actos públicos da pessoa ameaçada. Se alguém publica na Internet um forte ataque contra uma pessoa comum da rua que não tem qualquer projecção pública além da sua família e os seus amigos, evidentemente há uma utilização malintencionada dos poderes da Rede para fazer dano. Mas a imagem tanto de Yolanda Castaño quanto dos Aduaneiros é resultado dos seus respectivos cursos de acção públicos, sujeitos ao escrutínio de um número previamente sem determinar e sem delimitar de pessoas, potencialmente muito grande (a diferença de uma família ou de um grupo de amigos). Se um escritor qualquer qualquer se “ispe” emocionalmente nas suas publicações e um humorista qualquer “ispe” a sua ideologia nos seus desenhos, não admira que ambos actos sejam recursos aproveitáveis para o confronto.

A questão, portanto, é o escopo desta imagem, quer dizer, a sua amplitude social, o número de pessoas que potencialmente podem perceber (e produzir) esta imagem. E a questão está intimamente ligada com o escopo das identidades que se projectam. A antropóloga norte-americana Judith Irvine explicou como uma identidade pública formal, por exemplo “ser alcaide”, “ser professora”, se baseia em que a pessoa estabelece uma relação com um número amplo de outras em função dos actos (e do seu tipo) que exerce para/face a elas, e é para estas pessoas para quem “ser alcaide” ou “ser professora” é relevante. Cada um de nós “somos” muitas cousas. Mas selectivamente invocamos (diz Irvine) uma ou outra identidade, quer dizer, fazemo-la relevante.

Os Aduaneiros são “humoristas gráficos”, e a amplitude desta identidade alcança as pessoas que visitam a sua página ou que a conhecem. Os que lêem a página são “leitores” ou “espectadores”, não “humoristas”, embora possam ser muito engraçados nos seus comentários. E Yolanda Castaño é “poeta”, é “escritora”, é “apresentadora de televisão”, é “directora de galeria cultural”, é “vídeo-artista”, além, claro, de ser “mulher”, “galega”, “jovem” e outras identidades.

Mas, em virtude de qual destas identidades viu Castaño ameaçada a sua imagem? Como “poeta”? Como “mulher”? Como “directora de galeria de arte”? Ou como uma identidade que resume alguma destas, a de “figura pública”? A sátira dos Aduaneiros, em consonância com a prática global de Castaño, brinca com algumas destas dimensões, a espi-la como “mulher” pola sua “traição” como uma “directora de galeria cultural” que, como “poeta”, apoiara anteriormente o defenestrado Isaac Díaz Pardo. Com efeito, Castaño mesma faz relevante a sua identidade como “mulher” quando é “poeta”, e, na intertextualidade da sua obra, também é “poeta” quando é “vídeo-artista”. Portanto a sua reacção indica que ela recolhe a amplitude da identidade que os Aduaneiros fazem relevante (“figura pública”) com a que brincam os Aduaneiros.

Mas, pode Castanho como “mulher” levar adiante um processo legal viável contra os Aduaneiros, alegando que a sátira é sexista? Pode fazê-lo como “poeta”? Ou é sobretudo como “directora de galeria artística” que procura reforçar a sua imagem, para desbotar sombras da sua “traição” e assim reforçar esta identidade e portanto a imagem da empresa para a que trabalha?

O tempo dirá. No entanto, a minha opinião como estudioso do discurso é que Yolanda Castaño, a quem apreço pessoalmente tanto como apreço os Aduaneiros, fez o que Goffman chama um faux pas social: literalmente, um passo em falso que dana mais do que reforça a sua imagem (à margem do resultado dos procedimentos jurídicos que houver), a dar mais publicidade à gráfica e aos insultos à sua pessoa da que tivera antes.

Porque a efectividade do inteligente dictum de Oscar Wilde “O importante é que falem de um, ainda que seja para bem” tem um requerimento prévio importante: ser um maldito, e reforçar a imagem provocando ainda mais crítica. Se Goffman estivesse vivo, penso que me daria um Aprovado na diagnose: perante a hipótese de Castaño danar a imagem dos Aduaneiros metendo um advogado para reforçar a própria, o mais inteligente teria sido a estratégia que se chama evitar o dano, isto é, o elegante silêncio.

Estávamos aí

Publicado em Vieiros

Na comodidade da minha sala de estar, recebido polo sol intermitente, escuto e vejo à vontade comoventes fragmentos da gravação da homenagem a José Afonso que emitiu a TVG em 25 de Abril. Numa altura, o actor-apresentador Carlos Blanco, revestido das roupas e emblemas que há mais de trinta anos levávamos os jovens, parodia a época: “Mira que éramos roxos, neno. Aquelas mánis. Que bem o passámos, a verdade”.

Não. Não o passámos bem. Talvez o actor Carlos Blanco sim, mas nós não. Não estávamos em enormes congregações de vontades para passá-lo bem. Estávamos reunidos em assembleia permanente de utopias. Pensávamos a utopia, falávamos a utopia, realizávamos fragmentos dela nos actos mais miúdos, e depois introduzíamos os fragmentos nas casas e nas aulas, e amiúde dous mundos entravam em conflito, e assim a História prosseguia, forçávamos a História a prosseguir, como é a História, serva dos actos numerosos e das palavras precisas que sempre, sempre, continuarão a ter sentido.

Por isso centenas de nós estávamos há mais de trinta anos no desaparecido Cinema Disol de Vigo no primeiro recital de Pablo Milanés e Silvio Rodríguez nesta península. E sabíamos que éramos ilegais, e não se podia respirar, e muitos tínhamos medo de que entrasse a polícia. Medo, não apenas festa, medo da dor dos golpes e da morte da polícia. Mas por isso estávamos aí, e permanecíamos. E estávamos nas ruas de Vigo, não nas aulas nem no trabalho, enquanto a polícia matava operários. E tínhamos catorze, quinze anos, e não levávamos armas nem coletes anti-balas.

Por isso milhares de nós estávamos na intensa assembleia em Medicina onde se decidiu a greve indefinida de estudantes. E a polícia podia entrar e matar-nos. Estávamos no encerramento de Fonseca enquanto o cadáver recente de Franco ainda nos vigiava como um fedor fantasma por detrás das janelas, sobrevoando as carrinhas expectantes da polícia. E porque éramos milhares ocupámos a Universidade e ficámos horas ou noites a falarmos e cantarmos com Benedito em assembleia permanente de utopias.

E estávamos na homenagem a Celso Emilio Ferreiro em Compostela onde se leu poesia, e a voz de Soledad Bravo cindiu como tensa tança a noite seca, e éramos milhares. E estávamos nas noites secas na Quintana a dançarmos Rosalinda e Atrás dos Tempos Vêm Tempos. E estávamos no concerto de Milladoiro na enorme concha aberta do parque de Castrelos de Vigo, e nas primeiras noites antigas de Ortigueira. E estávamos no concerto em que Lluis Llach cantava as formas do amor e da revolta, e nós cantámos muitas vezes as formas da revolta com Lluis Llach, com José Afonso, com Fausto, com Pablo Milanés, com Luis Pastor, com Cilia, com Benedito, com Godinho, com Soledad Bravo, com Mercedes Sosa, com Pete Seeger. E igual que nós, muitas outras pessoas cantavam e hoje cantam outras vozes em distintas assembleias.

Por isso, não por outra cousa, por todos esses actos e centenas mais, e por todos os miúdos actos resistentes que durante décadas herdámos das pessoas assassinadas, violadas, torturadas, encarceradas, expulsadas, retaliadas, pudemos encher Compostela todo o dia num Dezembro recente enquanto chovia a mares piche preto nos areais atlânticos, e pudemos encher todas as ruas atlânticas enquanto choviam mares de fósforo branco nos areais do petróleo, e pudemos estar junto ao sol de Vigo na incansável duna da Marcha Mundial das Mulheres, a dizermos sempre as antigas e precisas palavras vigiadas sempre polo olho fantasma dos tiranos que ocultam a Solução Final das armas sob o trono democrático.

Por tudo isso, não nos enganemos, estamos hoje aqui, neste espaço real que é a Rede e que são as casas e os trabalhos e as aulas e as ruas e que é uma assembleia permanente de palavras. E continuaremos, não se engane ninguém, continuaremos. E após de nós e connosco, outras pessoas continuarão e continuaremos, a cantarmos e falarmos as diversas formas da revolta. Não para passá-lo bem e tempo depois fazermos pública e fácil paródia, mas simplesmente para cumprirmos a lógica da razão utópica, para forçarmos a História verdadeira a ser serva inânime dos actos.

Não o passámos bem então, nem o passamos bem agora, ainda não. Nisso estamos.

A cabeça de Ernesto Vázquez Souza

Publicado no Portal Galego da Língua

Conheço pouco a pessoa, algo os livros, e muito a sua palavra recente (a palavra é sempre adversária dos livros), desde que ela nos invadiu nos foros onde estávamos a pascer tranquilamente no campo dos tópicos repetidos. Desde havia tempo Mário me falara ocasionalmente da sua cabeça, enquanto bebíamos um ritual vinho cada vez diferente, mas eu pouco a vira, só quando coincidíramos anos antes nos frios corredores da Faculdade de Filologia, aí arriba, onde havia sempre um inútil acto cultural a quem ninguém assistia se era organizado polos outros. Porque aí arriba na Universidade, que tão amiúde é um abaixo mental, um sempre é os outros, e os outros sempre são os outros. Eu penso que Ernesto devia ser dos outros, e falei tão pouco com ele como com Xosé María Dobarro, com quem a cabeça de Ernesto trabalhava. A Universidade era então um labirinto de graves inconexões eternas. Não posso dizer o mesmo agora, pois para haver graves inconexões deve haver nodos insulares. Agora a Universidade é um labirinto de vastas campas desoladas onde sempre se chega ao mesmo lugar sem mover-se.

Um dia, a cabeça de Ernesto Vázquez Souza chegou aboiando desde o exílio físico sobre os nossos ecrãs verdes onde hoje se inscrevem os furtivos pontos geométricos em que consistem as palavras. E chegou para ceivar sem piedade contra nós uma linguagem rebordante de história, de velhas vozes, de côncavas fotografias, de textos barolentos, de actos mortos que (diz ele) explicam o nosso presente: a cabeça chegou com uma constelação incompreensível de sentidos se um não está dentro da cabeça. E é difícil estar dentro da cabeça de Ernesto Vázquez Souza, até para ele mesmo: essa enorme biblioteca orgânica que chegou aboiando no ar à nossa rede de ar é um ser autónomo, que pesquisa sem cessar por todas as suturas dos volumes enquanto o próprio Ernesto mecanicamente move as folhas ou digita.

A cabeça de Ernesto falsifica dia a dia o nosso passado construindo um nós que nós mesmos não podemos enxergar. Não um “nós” que se possa colocar entre aspas, como acabo de mentir eu, nem um Nós em maiúscula, como sentenciou Risco quando fingia ser inadaptado, mas um outro nós social que eu humildemente ainda não compreendo mas intuo. Há uma raiz imensa que Ernesto está a escavar. Leva anos foçando na matéria húmida das páginas: velhas vozes, côncavas fotografias, textos barolentos, actos mortos. Ele escava e resgata, dispõe em barrocas geometrias, expõe à luz as ligações ocultas das faces humanas e sociais dessa história que leva décadas a respirar debaixo das fossas. E nós, imediatamente, a lermos o que Ernesto diz, esnaquizamos com olhos imaturos o sentido, porque o sentido vive ainda na cabeça de Ernesto Vázquez Souza.

Mas eu sei que algo fica para nós deste duro resgate e que, fio a fio, iremos aprendendo. Não a lermos, nem a falsificarmos o passado, que é o mais difícil, mas a escutarmos. Mesmo chegará um dia em que os populosos tratados que saem da cabeça de Ernesto Vázquez Souza sejam para nós (esse nós, quem sabe qual nós) transparentes. Cumprirá tempo, como cumpre tempo para construir a nossa rede de ar que captura ar mais denso, a única rede possível, a única que nos é permitida. Como Ernesto disse, falsificando as suas próprias palavras: não tem pressa. Deveremos forçá-lo ao afã, mas não à pressa. E enquanto exista o afã na cabeça de Ernesto teremos tempo.

Este texto não pretende ser um abominável panegírico, mas uma crescente evidência. Não é preciso ser vidente para compreender que algo se coze. A cabeça de Ernesto, a longa camarada do seu corpo em exílio, é uma esperançadora notícia, um início de século.

A estrela das cinco pontas cardeais

Publicado no Público, suplemento Fugas, 5 Junho 2004, p. 8.

Dizem que de Compostela parte um caminho que são muitos. Que tudo começou há séculos de pedra; e que quem voltar a essa cidade submergida em mineral pela mesma via, como numa Ítaca pessoal, muito mais ancião com as cousas e os pensares, achará no meio de uma pequena praça que não posso nomear o desenho inusual de uma estrela de cinco pontas cardeais. Esta pessoa só poderá vê-la se trazer consigo um fardel de serenidade, uma autêntica compreensão do lento transcorrer do tempo humano. Sentando-se no centro da estrela à meia-noite do solstício de Verão, se olhar justo para o zénite da cúpula, esta pessoa verá passar a rota da sua própria vida e o princípio do universo. Assim singelo é o reencontro: faz o périplo dos mares, procura-te nas línguas e vegetações diversas, volta para sentar-te placidamente no astro inscrito na pedra, olha para cima.

Compostela é aqui metáfora da mente. Qualquer lugar deveria conter a estrela das cinco rotas ou outro signo onde sentar-se na noite de solstício após uma vida de procura ética. E então dizer: Vi a morte passar em carros de combate; vi homens matarem mulheres, homens matarem outros homens; vi ladrões em fatos luminosos entrarem com sigilo na casa comunal e roubarem o azeite, o arroz, roubarem a força de trabalho; vi a miséria que não deveria persistir; mas algumas vezes vi o prazer de corpos nus à lua, o assombro dos meninhos, o enlevo de amor adolescente. Vi palavras falsas, palavras assassinas; vi povos fragmentados por um rio inexistente, estados construídos com os blocos de casas derrubadas por um tanque, vi reis coroados com o ouro das moedas; mas algumas vezes vi um júbilo de centenas de pessoas sem armas a lutarem. Vi cifras inumanas nos jornais, vi as linhas horizontais do sangue no ecrã que não cessava, vi raças de seres magros a arrastar-se e raças de seres poderosos a arrastá-los; mas às vezes vi nuns olhos uma incombustível resistência, vi a mente central da humanidade. E compreendi.

Ninguém deveria deixar de visitar a sua própria casa, que está dentro. Dentro levamos o desenho da razão humana, que é por exemplo um ícone na pedra, o labirinto de Mogor nos glifos da Galiza, que baixa até ao Sul como uma língua. Não existe um ano especial para visitar a própria casa. Não existem as celebrações dos opulentos. Não existem os nomes empolados: não existem as maiúsculas. Não é preciso sangrar pelo caminho. Não é preciso adorar um homem morto. Não é preciso adorar qualquer fronteira. O caminho tem a forma da estrela marinha que sabe a sal, não a forma dos fogos de artifício. Compostela, onde eu também vivi enquanto morria a anterior face do terror da Ibéria e nasciam vermelhos estes murchos cravos, está dentro. Para encontrar a casa e encontrar-se não é preciso o ano falacioso: apenas basta a noite do solstício, o símbolo, o limpo céu obscuro justo acima, talvez a cadência de uma música contida, uns passos a ecoarem, um animal que ama. Crede-me. Vinde. Trazei terra vossa e todas as palavras, a nossa língua inteira: faz-nos falta. Vinde sempre, que nós também iremos às vossas Compostelas.

Uma questão de cultura

Enviado a La Voz de Galicia e a La Opinión de A Coruña; não publicado

O recente Encontro Nacional sobre a Língua organizado pola Mesa pola Normalización Lingüística, a que assistiram numerosas associações culturais e de base e indivíduos, concluiu aprovando uma série de resoluções para o trabalho em favor da língua. A primeira diz: “Reafirmamos a substancial unidade existente entre o galego e o português”. Esta resolução é importante, porque constata de novo uma evidência histórica e social. A unidade linguística galego-portuguesa explica, por exemplo, que este texto poda ser escrito e lido perfeitamente na Galiza, e que poda ser lido, além, em galego, com mínimas adaptações ao acento de aqui.

Estamos provavelmente na fase mais crucial da história da língua da Galiza. A acelerada perda de falantes habituais não se compensa com a congelada penetração de certas variedades da língua nos âmbitos mais formais. Perante esta situação, os poderes públicos e as instituições culturais têm a oportunidade e a responsabilidade de reafirmarem com palavras e com actos a natureza comum da nossa língua galego-portuguesa, porque o que se diz em público lembra-se, e o que se lembra dia a dia pode guiar melhor os nossos actos. O catedrático do Instituto da Lingua Galega Francisco Fernández Rei, por exemplo, escreveu na revista internacional Plurilinguismes que “dum ponto de vista estritamente linguístico, podemos admitir que o galego e o português falados hoje constituem praticamente uma só e única língua ‘por distância’”. O anterior presidente da Real Academia Galega, Francisco Fernández del Riego e muitos outros especialistas têm manifestado opiniões semelhantes. É necessário e inteligente lembrarmos esta evidência.

Por isso, é fundamental uma decisiva viragem que, sem trair nem renunciar às trajectórias culturais anteriores, nos recoloque na evidência e recolha assim o sentir de crescentes sectores de pessoas que também se interessam profundamente polo presente e futuro da língua do país. Um primeiro passo para a coesão e para o enriquecimento cultural seria o reconhecimento, por parte das instituições de poder e de cultura, da legitimidade desta concepção e desta prática galego-portuguesa da língua, que se reflecte na escrita internacional, na literatura e na própria experiência de contacto entre habitantes dos dous lados da inexistente Raia. Os intercâmbios entre escolares da Galiza e de Portugal, por exemplo, promovidos por liceus e organizações culturais, são bons exemplos de uma experiência conducente a reduzirmos as fronteiras. A possibilidade de recebermos habitualmente os meios de comunicação de Portugal acrescentaria também a nossa exposição a uma cultura próxima, e contribuiria para reduzirmos a nossa dependência das culturas anglófonas, nomeadamente dos EUA, que tão pouco têm a ver com a nossa realidade.

Numerosas pessoas e colectivos defendemos o direito da Galiza a receber material cultural de Portugal, Brasil e outros países, em pé de igualdade com o nosso próprio, como a melhor maneira de reforçarmos a nossa própria cultura. Há uma crescente demanda da aprendizagem do padrão linguístico português, cujo conhecimento é essencial para utilizarmos a língua, produzirmos saber, e lermos excelente literatura sem mediação qualquer de traduções deturpadoras. Ninguém duvidaria que os andaluzes, por exemplo, cujas falas são tão distintas da língua da cultura escrita espanhola, têm direito a serem considerados falantes da língua espanhola e de aprendê-la como tal. Não sei porquê os galegos deveríamos ser menos a respeito da língua padrão utilizada em Portugal. Devemos ter o direito de aprendermos e utilizarmos, em todos os níveis educativos e para todos os âmbitos da vida diária, o padrão linguístico que plasma internacionalmente essa substancial unidade entre o galego, o português, o brasileiro, o moçambicano… ou o berciano.

Se a língua se perde geração após geração, é também porque existe um impiedoso mercado linguístico e cultural que procura nos impor o alheio. Talvez a gente não se reconheça na função artificialmente limitada do galego actual para produzir cultura. Aqui somos uma comunidade pequena, mas para o Sul e para o Oeste fazemos parte de uma ampla constelação de comunidades. A globalização não pode funcionar sempre na mesma direcção: temos capacidade de ser outro Centro na periferia ocidental.

É o momento de superarmos o uso do galego oral e escrito como uma forma de militância, e de praticarmo-lo como uma conduta naturalizada dia a dia, para exercermos a nossa cultura dentro do âmbito linguístico e cultural próprio. Mas este projecto não é apenas uma questão de vontade individual. Os poderes públicos e as instituições têm a grande oportunidade e a responsabilidade de recolherem este desafio contribuindo para a nossa adaptação aos tempos com uma valente viragem alicerçada no diálogo.

Reclamarmos o nosso não é uma questão de fé, nem de combate: é uma questão da razão. É uma questão de cultura.

Denúncia da Universidade

Publicado em Çopyright 83, 31 Outubro 2000 • Em Non! – crítica & intervenção • N’A Nosa Terra

Desde há bastante tempo tinha vontade de escrever algo sobre a Universidade, as universidades, essa poderosa instituição tão pouco conhecida no seu funcionamento interno. Das universidades saem os líderes políticos, os professores, os juristas, economistas, doutores…: praticamente todo o tecido de grupos e interesses que sustém a sociedade de classes.

Conheço a universidade desde 1975, quando começara os meus estudos de Filologia na de Compostela. Logo, passei (e sofrim) polas universidades de Barcelona, Buffalo (Nova Iorque), Berkeley (Califórnia), e agora Corunha, onde sou professor de linguística e exerço de fiel Funcionário do Estado. Julgo ter suficiente experiência para ter uma ideia do que está em jogo no estudo, na (literalmente) carreira universitária, na obtenção dum posto de trabalho, na chamada “pesquisa académica”, nas oposições, etc. Talvez muitas das minhas apreciações se podam aplicar também a outras instituições ou âmbitos do estado capitalista burocrático. Nesse caso, talvez também os leitores podam reconhecer as suas experiências na minha narrativa, e poderemos assim lamentar juntos que as cousas não sejam como deveriam ser. Obviamente, não mencionarei nomes próprios. Mas, dentre os poucos universitários que leiam isto, penso que a imensa maioria (professores e alunos) poderão relacionar o que digo com alguma experiência vivida ou conhecida.

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Prólogo para o livro de Mário J. Herrero Valeiro No limiar do silêncio (poemas da estrangeirice)

Prólogo para o livro de Mário J. Herrero Valeiro No limiar do silêncio (poemas da estrangeirice),
VII Prémio de Poesia Espiral Maior, Espiral Maior, Corunha, 1999. Pp. 7-12

“E vi os mortos, como quando a figueira lança os seus figos verdes, entre as águas que estavam debaixo do firmamento, águas negras, e a lua como sangue, denso granizo e neves do espaço tenebroso. E as estrelas do céu e as águas que estavam por cima do firmamento caíram na terra, e eis que havia um grande terramoto, e rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, e foram abertos os livros. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Os homens e as mulheres caíam cegamente pela boca, e o sol tornou-se negro como um livro que se enrola, e todos os pequenos e grandes montes e ilhas se moveram dos seus lugares. Abalada de um grande vento, a luz terrível subia e girava, puxando violentamente mortos brancos que ficavam presos pelos deslumbrados e arrastados lábios ao céu que se tornou como um saco de silício. E os seres aniquilados beijavam essa colina, e em baixo o céu retirou-se, e fez separação, e estalavam as cúpulas vermelhas”.

Helberto Helder, A Máquina de Emaranhar Paisagens

Conheci uma parte de Mário J. Herrero Valeiro há vários anos, uma tarde em que entrou no meu escritório de servidor do Estado na Universidade da Corunha, agora feudo económico e político da Opus Dei, para falarmos da língua e a essência do poder. Rapidamente mencionei-lhe todas as poucas citações que conheço e falei-lhe tudo o pouco que creio saber: que a Língua sempre mata, que não somos inocentes. Por cortesia, Mário não me explicou que já conhecia todas essas profundas citações e que já sabia tudo isso. Então nos separava e ainda nos separa apenas a terrível geometria dos Estados: eu continuo a ser um fiel servidor das suas seitas, Mário quisera sê-lo.

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