Bilinguismo zumbi e crise sociolinguística

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     No seu blogue do New York Times, o prémio Nobel de Economia Paul Krugman introduz a expressão “zombie ideas” para se referir àquelas más propostas económicas já mortas que ressuscitam periodicamente. Aprendo a imagem numa entrevista que lhe faz Amy Goodman no inimitável noticiário Democracy Now!, e aproveito-a sem pudor. O “bilinguismo zumbi” do meu título não se refere aos milhões de pessoas galegas que conhecemos e falamos duas (ou mais) línguas, mas às ideias zumbis sobre a nossa crise sociolinguística que a história mata periodicamente mas que levantam cabeça à mínima, com sedução de ultratumba, e que haverá que voltar a matar com paciência. O “bilinguismo harmónico” de Fraga Iribarne ressuscitou há pouco no corpo da “amabilidade linguística” de Alberto Núñez Feijóo. Na realidade, são novas versões da velha ilusão do convívio entre línguas, que nunca funcionará na Galiza (entre línguas) até que se destaque uma outra maneira de articulá-lo.

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Chapapote linguístico

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A Alberto Núñez Feijóo, filho de Iribarne

Ressuscitam os cadáveres dos velhos navios peçonhentos nas nossas costas? Voltamos a recolher o lixo físico deixado nas nossas praias primigénias pola imprudência dum governo?  Não.  Mas nestes dias anda a garrar a curta distância dos nossos olhos um enorme monstro que começa a deitar palavras de ameaça no país. É uma alta máquina oxidada que quer impor a sua sombra uniforme sobre o nosso enxame de pequenas barcas que sempre funcionou em rede, como as sociedades reais, a se comunicarem com vozes antigas e inquestionáveis atravês do mar, e do mar às beiras, e da costa ao interior, para leste e para sul, até às fronteiras difusas do país verdadeiro que não conhece linhas traçadas em mapas de plasticina. É uma máquina que com a sua simples presença impede a pesca vital e com o seu balbúrdio ensurdece o labor secular. Não é uma máquina estrangeira, mas um experimento sem sentido duns poucos poderosos, um engendro que nunca devêmos permitir existir, pois foi armado enquanto o contemplávamos nas mesmas indústrias e com as mesmas engrenagens que produzem o papel escrito que muitas pessoas lêem cada dia como se fosse a sua verdade. No seu costado obscuro que ressuma águas esluídas vê-se em grandes letras de pau o nome do projeto, e é esse nome que nos quer pôr medo, porque o engenho metálico em si não tem qualquer outra função que levar o lema de vila a vila dos nossos mil quilómetros de costa, enturvar as águas e os campos, e deixar-se ler sempre, a toda hora, desde faros e campanários, desde cantis e calas, desde casas senhoriais e prédios pintados nas cores das gamelas. A nau caduca que estes dias anda a garrar pola Galiza diz, polos dous lados, LENGUA ÚNICA.

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Uma humilhação muito cordial

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Hoje de manhã sofrim o meu primeiro controle policial sem qualquer motivo, numa rua da Corunha. Confesso que o meu historial não tem medalhas: nunca antes me parara a Policía Nacional por terrorismo, alcoolémia, drogadição ou monolinguismo. Mas hoje ia eu de carro velho ao trabalho, e um polícia fluorescente muito armado fez-me parar no controle, por detrás duma carrinha. Fervilhavam em torno da Nave-Mãe outros polícias até os dentes, sem se afastarem muito, como em invisível cordão umbilical. Quem sabe os seres que havia aí dentro.

Todo o acontecido foi uma humilhação muito cordial:

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A propaganda sobre a língua e a força do “nós”

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1. Na Galiza, em galego

     No passado 8 de fevereiro houve em Compostela algumas manifestações de diverso tipo em favor do galego, com motivo duma outra manifestação autorizada em favor do espanhol e contra o bilinguismo, isto é, contra a política educativa bilíngue da Xunta da Galiza. O lema coreado e escrito duma das concentrações, impulsada polo grupo Nós-UP (mas a autoria não é o tema) era Na Galiza, em galego ou variantes (Na Galiza, sempre em galego, Na Galiza, só em galego). Mas, o que quer dizer realmente este lema?

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A Revolta do Capitariado

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Um espectro ronda polo mundo: o espectro do capitalismo. Todas as legiões das Forças do Trabalho, unidas em santa aliança com o Feminismo e o Ecologismo, andam à caça do capital, a quem escravizam com as suas exigências cada vez mais totalitárias: salários “dignos”, “estabilidade” laboral, vacações pagas, menos de 16 horas de trabalho por dia, “igualdade de género”, uma “idade mínima” para trabalhar… E que partido não lançou alguma vez aos seus adversários de direita ou de esquerda a alcunha de “capitalista” com intenção de infâmia? Mas já é hora de falar. Perante este acossamento, que se repete ciclicamente, o subjugado capitariado mundial (o único que possui é o grande capital!) rebela-se pouco a pouco, a funcionar em rede, como todo bom ativismo clandestino. Timidamente, as empresas mais ameaçadas pola Força de Trabalho (Boeing, Toshiba, Nintendo, Renault, Citroën) começam a reagir e são capazes de impor a purga laboral que a revolta precisa: não se pode consentir que os trabalhadores continuem a roubar. O mal chamado “despedimento” é o último tímido direito que lhe resta ao capitariado dentro do Estado Social. Talvez muitas vezes o despedimento seja só simbólico, pois historicamente a Força de Trabalho, até quando é descabeçada, regenera-se como uma peçonhenta ténia: da chamada “reserva” surgem logo milhares de militantes laborais treinados nos campos das oficinas do desemprego (verdadeiros “libertados” na sombra) que ao começo fingem aceitar salários mais baixos, só para procurarem impor a sua hegemonia de “salários dignos” quando o capitariado está mais débil. A turva tática, desenhada nas madrassas da Escola de Chicago, não por conhecida deixou de funcionar durante dous séculos. Mas desta vez o capitariado parece assumir por fim o seu primário papel histórico em criar um mundo novo totalmente desigual: De cada um, segundo a sua incapacidade; a cada um, segundo o seu poder militar.

Porque, polas imposições da Força de Trabalho, os ganhos do capitariado são cada vez menos imensos. A situação do capitariado mundial está a reverter a índices do velho colonialismo, onde o único que possuía eram uns milhões de hectares, umas matérias primas, algo de ouro, umas empresas téxteis, e uns quantos escravos. A japonesa Nintendo, por exemplo, declara ter tantas perdas nos seus ganhos (“pérdidas en sus ganancias”, informa o jornal espanhol Público) que, perante a angústia, lutou até conseguir reduzir o sangrante esbanjamento que implica pagar a mão de obra. E, igual que nela, em Boeing, em Renault, nas empresas mais ativas que sofrem o acossamento, por fim parece ter surgido a consciência de que o salário é um roubo ao Capital, legitimado polo Estado. Cada mês, ou cada quinzena, ou cada dia, milhões de “trabalhadores”, “operários” ou outros eufemismos que ocultam o seu papel estrutural de domínio, assaltam as arcas das empresas e levam para a casa centenas de milhões de euros em soldos como se até a isso tivessem direito, amparados nas “constituições democráticas” e nos “convénios coletivos”. O salário atual rompe o equilíbrio da lógica da empresa, que é o lucro sem mesura. É certo que nem o mais revolucionário capitalista nega que alguma forma de salário deva existir. Mas, como explicou Xram em Sad Latipak, o salário no Estado Social apropria vilmente o mais-valor que pertence ao capitariado polo seu hercúleo esforço de transformar o nada do papel-moeda falso em extrema opulência para uns poucos.

Mas a vanguarda do capitariado está a reagir, a exercer valentemente o seu direito conquistado ao despedimento coletivo, até na versão selvagem e ilegal, na melhor tradição combativa prévia à domesticação que sofreram as Confederações de Empresários depois da Segunda Guerra. Maciçamente, com o despedimento, o capitariado começa a impor o seu inalienável direito natural a que os seus ganhos não sejam roubados polo injusto preço do trabalho. Hoje talvez seja só uma grande empresa quem ouse, mas amanhã serão duas, depois dez, cem, dez mil, e em pouco tempo todo o capitariado mundial, desde o mais consciente até o pequeno capitalista que sofre alienação ideológica de classe e acredita ser “pequeno comerciante”, será capaz de recuperar o que lhe pertence e estabelecer uma nova ordem, sempre apoiando-se inteligentemente no próprio aparelho do Estado Social que o oprime. Como escreveu Nestor Kohan em “Icsmarg y Xram: hegemonía y poder en la teoría xramista“:

“Mesmo dando conta de todas as suas limitações, devemos reconhecer ao Manifesto Capitalista o facto de destacar na sua época (no meio de um conflito de classe europeu, depois mundializado) que o Estado jamais é neutral, e que portanto o capitariado revolucionário não pode pretender utilizá-lo ‘com outros fins’… mas deixando-o intacto“.

Porque, se foi o Estado Social que criou esta inaturável situação para o capitariado, que mantenha ele as legiões de “trabalhadores” desempregados, e que inunde as arcas do Capital com papel-moeda falso. Que pague o corrupto Estado o que deve, e quebre de vez!

O capitariado não se rebaixa a dissimular as suas opiniões e os seus fins. Proclama abertamente que os seus objetivos só podem ser alcançados pola derrubada violenta de toda a ordem social existente. Que as classes populares tremam à ideia duma revolta capitária! O capitariado já nada tem a perder: tem um mundo a ganhar.

Molesta

Publicado em Novas da Galiza 72, p. 20 • No Portal Galego da Língua

     Recentemente teve lugar em Compostela a Sessão Inaugural da Academia Galega da Língua Portuguesa, cujo presidente é o professor José-Martinho Montero Santalha, especialista em literatura medieval (em literatura medieval galego-portuguesa, isto é, em literatura medieval). Esta Academia da Língua reúne e reunirá um bom número de pessoas que levam anos a fazerem trabalho sério e dedicado. Trabalho reintegracionista, como o desta publicação.
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Uma língua difícil para a Galiza

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Polo pouco que sei sobre as relações entre essas abstrações que são “a língua” e “a sociedade”, qualquer língua escrita é muito difícil de dominar. Frente à fala, que se vai aprendendo como parte do processo de comunicação (que inclui outras cousas), a língua escrita acarreta anos de aprendizado formal, desde a caligrafia até à prosa mais elaborada. O maior ou menor número de anos é circunstancial para compreendermos em que consiste o processo de aprendizagem da escrita: consiste no estabelecimento de critérios de classificação social entre a gente “que sabe” e a que “não sabe”. Isto é assim na China com os seus milhares de caracteres, no Japão com os seus quatro sistemas gráficos, ou no crioulo papiamentu com a sua ortografia pretensamente “fonémica”. Ou, evidentemente, na Galiza. Isto é assim em qualquer sociedade de classes.

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Língua, Mercado e liberdade

Publicado no Portal Galego da Língua

1. A eliminação do coletivo

Num texto de 1998, Pierre Bourdieu (“L’essence du néolibéralisme”, Le Monde Diplomatique, Março 1998; acesso na Internet: http://www.monde-diplomatique.fr/1998/03/BOURDIEU/10167 ; existem traduções portuguesas como a de Informação Alternativa, http://www.infoalternativa.org/teoria/teo007.htm) lembra-nos o principal procedimento do liberalismo moderno (o duvidosamente chamado “neoliberalismo”, isto é, o ultraliberalismo que quer laminar as “conquistas” sociais e laborais) na sua procura da Utopia do Mercado: a extirpação gradual de todo o coletivo, amiúde com a rendida conivência das forças do progresso. A recente ofensiva discursiva de um setor do liberalismo programático español contra as políticas e legislações orientadas à manutenção (também programática) das línguas “españolas” não castelhanas do Reino pode ser examinada dentro deste contexto. Os discursos do fenómeno Galicia Bilingüe, o Manifiesto por la lengua común –com as aderências que obteve na Galiza– ou, sobretudo, o mais recente relatório do Club Financiero Vigo (CFV) exibem uma clara base argumental política compartilhada. Destes, o relatório do CFV, polo prestígio da sua fonte e polo debate que está a suscitar, merece ser comentado como paradigmático. O documento, com data 2 Setembro 2008, é editado em galego e em español, e intitula-se Política lingüística: Unha visión empresarial (Cadernos para o Debate 12) / Política lingüística: Una visión empresarial (Cuadernos para el Debate 12). Porém, na web do CFV na altura (9 Setembro) só está disponibilizada em PDF a versão em español, que é, consequentemente, a que utilizarei: http://www.clubfinancierovigo.com/archivos/archivo_333_2481.pdf. / http://www.clubfinancierovigo.com/cuaderno.asp?id=333&lang=es .

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“Yo lo dispuse todo imagen tras imagen”

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Reproduzido, com ficha técnica, em Poesiagalega.org

     Nunca esquecerei este verso de Álvaro Pombo, que me amartela inesperadamente igual que me amartela “and what remains is just the sense of getting older”, dum para mim incógnito John Koethe, ou como enxotar a morte / esse animal sonâmbulo dos pátios da memória”, do nosso Eugénio de Andrade. Esqueci mais, sim, a poesia de Félix de Azúa, e não tanto a sintaxe precisa do primeiro Vargas Llosa, a quem devorei com outros sudamericanos (Cortázar, Borges, Lezama) desde a adolescência até aos anos 1978-80 em Barcelona. Eram os anos em que acabei Filologia Hispânica nas aulas da então chamada Universitat Central. Lembro uma inteligente Pilar Rahola de boina escorada que destacava já pola sua palavra veloz, uma outra Pilar aragonesa que adivinhou que eu nunca seria um bom escritor, e o entranhável burgalês Javier López com quem trocava escritos e que provavelmente nunca saiba que hoje falo dele. Eram os anos em que publiquei o meu único texto em español na minha vida, um continho na efémera revista diletante Delta, de estudantes de Filologia de Barcelona.

     Sou venturoso prisioneiro do verso de Álvaro Pombo porque durante décadas fora educado só em español, excepto nas calorosas aulas de tarde de Maite Caramés no liceu Santa Irene de Vigo, provavelmente polo ano em que o poeta Carlos Oroza fora convidado por Ferrín a dar um inigualável recital em língua española que também nunca esquecerei. Sou prisioneiro da formosura dessa literatura em língua española porque eu era filho estético da sua normalidade, como o foram escritores e escritoras galegas que me antecederam e me sucederam. Foi a língua española que ofereceu o modelo de rigor estilístico e formal e grande parte da imaginaria de que tantos e tantas escritoras galegas atuais se nutriram e se nutrem, para agora publicarem em galego nas editoras monolíticas e ganharem muitos prémios. Eles podem sabê-lo, ignorá-lo ou negá-lo, mas a sua dívida com a língua española é essa, e é grande.

     Felizmente, o meu périplo cultural particular levou-me a compreender quanto tempo, também, perdera no meu interesse pola língua española. Há vinte e cinco anos, nos Estados Unidos, em contato constante com pessoas que sim que possuíam língua (brasileiros, colombianos, estadounidenses), percebi fortemente o que é uma língua, e quanto nos faltava na Galiza. Por saber español e ler as suas literaturas, deixara de saber e de ler muitíssimas cousas da língua portuguesa e das suas literaturas, como a nossa. Amiúde lamentei não ter tido a oportunidade de sentir na adolescência, quando se formam tantos critérios, a mesma pulsão pola literatura em língua portuguesa, em língua galega. E ainda não temos várias vidas. Por isso, por razões políticas, vitais e estéticas, que são as mesmas, nos EUA comecei a abandonar o español como Língua, e ré-conheci a língua que agora pratico e a que, dizem, é a do meu país e de outros. E soube que devia procurar recuperar o tempo perdido. Agora não leio praticamente nada de literatura em español: não tenho tempo para ignorar ainda mais a literatura própria. Isto não significa que conheça muita literatura galega, portuguesa ou brasileira, em absoluto. Mas o preço de não ter sido educado literariamente durante décadas na minha língua atual é que nunca chegarei a ser um bom escritor, se é que alguma vez tive a possibilidade de o ser.

     Não compreendo como nenhum inteletual com um mínimo sentido estético pode confundir essa Língua literária, rigorosa e portanto tirânica de que estamos a falar (a española, a portuguesa e galega, a inglesa) com essoutros pobres dialetos oficiais ou para-oficiais que se utilizam nas administrações (todas), na política (a que for), e noutras burocracias. Mas resulta que são estes códigos, e não a língua literária, que parece que sublimam de maneiras monstrosas as essências humanas e nacionais, e parece que é em torno deles, e não em torno da língua literária, que se argalham Manifiestos cavernícolas. Não compreendo como, nas aras desses códigos utilitários e quotidianos (no pior sentido da palavra) cuja obrigatoriedade de conhecimento até se defende, se quer negar a possibilidade de que uma geração inteira se possa inundar da tirânica língua literária do seu próprio país para que daí saiam as poetas e os poetas, como corresponde, para que nalgumas pessoas polo menos surja o assombro da palavra e anos mais tarde elas possam lembrar, inesperadamente, sem mais meta que o fascínio, um verso aberto e inapreensível.

     Por isso, o Manifiesto da pretensa língua comum do Reino exibe uma vulgaridade tal que faz duvidar que tenha sido assinado verdadeiramente, por exemplo, polo mesmo poeta que foi capaz de escrever o verso que abriu este escrito. O Manifiesto de inteletuais españóis quer negar que cada um dos países do Estado que dizem querer ser países imponha a necessária intensidade social de onde surge a Língua e portanto a boa literatura. Um feixe de escritores españóis já conhecidos, num exercício de triste solipsismo quase prevaricador, quer negar a literatura própria nos seus idiomas a milhões de jovens que a sentem ou nalguma altura a sentirão assim, como própria e como literatura.

     Mas enganam-se os manifestistas españóis se pensam que com isso a sua língua literária vai recobrar o fulgor estético dominante que nos impôs a uniformidade do Fascismo. Já não é possível, nem mesmo conveniente para eles. O único que o regresso ao passado conseguiria é que os jovens continuassem a aprender a cultivar as suas línguas atravês do rigor do español, como há décadas. Nunca desapareceríamos. Por isso, deixem os manifestistas españóis que os seus filhos hispanofalantes polos quais dizem levantar-se em armas de papel, se é que não moram no Centro monolingue, possam mergulhar plenamente numa outra língua imposta contra eles, como mergulhámos nós, e que assim, polo menos, possam ter literatura. Nenhum inteletual manifestista español quisera que desaparecessem as literaturas galega, basca ou catalã: no seu comércio, é precisa também esta concorrência. Mas, como querem que se cultivem outras literaturas se não é a golpe de imersão nas suas línguas, até como impostas línguas estrangeiras, igual que gerações inteiras sentimos durante décadas o español nos nossos próprios países? Deixem os manifestistas aos jovens escolares o prazer de descobrirem o verso perfeito da Galiza, e que, anos mais tarde, o citem por acaso, ainda sem compreenderem de todo o seu sentido poético (precisamente por não compreenderem de todo o seu sentido), e até se rebelem contra ele, contra o monolitismo da distinta língua única. Deixem os amargurados manifestistas españóis que cada um dos países agora engolidos no Reino gere os seus poetas, as suas proezas, os seus monstros e as suas misérias, porque só se podem produzir bons monstros e boas misérias quando a Língua (a língua literária, não os tristes códigos burocráticos) nos arrodeia dia após dia e nos mata, por toda parte, em centenas de livros. É esta Língua que nos une, não a sua forma.

     Fiquem os literatos españóis com o seu país de letras, que já é grande, e aí poderão fazer cousas que eles estimem também grandes como o ouro. E nós, a gente de aqui, não façamos nem caso aos seus manifestos de sereia, que vão contra a própria estética da sua língua española. Porque, isso sim: que formoso e intraduzível será sempre o verso de Álvaro Pombo, “Yo lo dispuse todo imagen tras imagen”. Em matéria de língua, não de formulário, isso é o que deveria importar: ser intraduzível.

Contra a utilização dos ‘direitos lingüísticos’

Publicado no Portal Galego da Língua

A situação socio-linguística actual da Galiza (e passada, desde a formação do estado capitalista moderno) pode ver-se em termos dum duplo eixo de coordenadas: a hidráulica entre direitos e deveres linguísticos, e o confronto entre os âmbitos público e privado.

Enquanto se perde a língua na Galiza, os três partidos principais que monopolizam a representação parlamentar aprovaram um Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega (PXNLG, aprovado em 21 de Setembro de 2004 polo Parlamento da Galiza) fundamentado no que podemos chamar “filosofia dos direitos linguísticos”, isto é, un Plan que “debe servir para que calquera poida vivir plenamente en galego” e cujo primeiro objectivo é “Garantir a posibilidade de vivir en galego a quen así o desexe, sabendo que conta co amparo da lei e das institucións”. Assim focado, além dos problemas técnicos e de desenho, o PXNLG nunca poderá garantir esse pretenso objectivo da “normalización”, se genuinamente entendido o vocábulo. Razoemos: Como é possível conceber que os representantes políticos do liberalismo (a apropriação capitalista do sentido político da liberdade) aprovassem um plano que, de ser fiel ao estandarte ideológico da “normalización”, significaria o devalo definitivo do español, a língua do Capital, a segunda língua da Galiza, se não ao seu prático desaparecimento social?

Por que se aprovou o Plan de Normalización, então? Simplesmente, porque não se aprovou qualquer plano de normalização. Não há tal contradição entre a defesa dessa “normalización” dos “direitos linguísticos” galegos e a posição liberal centralista. Porque, de facto, é precisamente a filosofia dos “direitos linguísticos” que possibilitou o surgimento mediático de iniciativas liberais como Galicia Bilingüe. Quando se centraliza a noção de “direitos linguísticos” individuais ou até colectivos (que é o que o PXNLG faz), não há escusas argumentais contra os “derechos lingüísticos” a respeito da língua española. Chegam a confundir-se, assim, questões radicalmente diferentes como o direito a manter um posto de trabalho onde a pessoa trabalhadora livremente utilize o galego (o qual em essência é um direito laboral, não linguístico), com o pretenso “direito” do consumidor a que uma empresa privada ou comércio lhe responda em tal ou qual idioma, ou com o pretenso direito a “receber o ensino na língua mãe” fora do lugar que essa língua ocupar no panorama sócio-darwinista-linguístico em que vivemos. O pretenso direito a receber ensino em español (não de Lengua Española, que é outra cousa), garantido no Decreto educativo na Xunta, significa na prática a manutenção da presença do español num sistema educativo público cujas diretrizes emanam (dizem) da “vontade popular” duma sociedade que tem, precisamente, o galego como língua histórica, tradicional, popular e (ainda) maioritária.

Uma leitura básica das declarações universais de direitos (desde a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, DUDH, até várias outras que, em diversos âmbitos internacionais, a desenvolveram nos aspectos culturais e foram oficialmente sancionadas polos estados, entre eles o Reino de España) deveria esclarecer estas questões. Temo-me que esta leitura não seja pão comum para as nossas elites. Vejamos.

A DUDH estabelece que nenhuma pessoa ou grupo poderá ser discriminada em razão de língua no exercício dos seus direitos sociais. Isto implica que os poderes públicos têm o dever de preservar a igualdade e os direitos das pessoas e grupos a utilizarem as suas línguas.

Mas a DUDH estabelece mais duas importantes questões, com importantes implicações:

A primeira implicação é que a Lei pode, nas aras do “bem comum” ou princípio semelhante, estabelecer deveres que, evidentemente, não atentem contra os direitos:

Art. 29º, 1: O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade”.

Por exemplo, o ensino elementar é obrigatório (Art. 26º, 1), precisamente porque ter educação é um direito e um dever dos cidadãos. E portanto são os Estados (não a empresa privada) que devem garantir esse direito e esse dever, na plasmação da sua responsabilidade de preservarem a continuidade de recursos culturais colectivos.

Assim, pode-se interpretar que os poderes públicos galegos têm o dever de garantir que o galego seja oferecido e se mantenha no sistema educativo público (ou, já que malditamente existe, também no “concertado”, isto é, pago com dinheiro público mas benefícios privados), e para isto poderiam impor (como na Catalunha) um sistema de imersão total em galego que contrapesasse o efeito demoledor que o sector privado está a ter sobre os usos linguísticos colectivos.

Os poderes públicos galegos poderiam ter feito isto, mas não o fizeram, e manteve-se a presença do español nas aulas. Por que? Porque imperou a filosofia dos “direitos” linguísticos, isto é: dos derechos lingüísticos para o español. De que se queixa portanto Galicia Bilingüe? Talvez se queixe, no fundo, de que, pobremente escolarizados assim os rapazes em algo de codificado español e muito de deficiente galego, não chegarão a dominar a língua española como pleno recurso simbólico. O argumento é um pouco falacioso, mas não de todo: enquanto o galego não seja língua veicular global do sistema educativo a todos os efeitos (aulas, comunicação interna, língua de relação entre o professorado), não existirá um modelo de língua dotado do capital cultural suficiente que até um meninho falante de español possa aplicar por transferência à sua própria língua. Um idioma galego bem ensinado e dotado de capital cultural pode resultar veículo efectivo para a transferência para outro idioma também bem ensinado. O facto, por exemplo, é que as pessoas que escrevem bom galego (em qualquer norma) tipicamente também escrevem bom español. O inverso não é o caso.

De não ser assim, o resultado continuará a ser uma alfabetização deficiente tanto em galego como em español (até propositadamente deficiente, como tem destacado António Gil, embora o selectivo e classificador sistema educativo “democrático” não precisa de ser tão maquiavélico: basta-lhe com ser), do qual não deixa de ter culpa a semelhança formal de ambos sistemas escritos, o español-RAE e o galego-RAG.

E, portanto, enquanto não se materialize este dever das instituições de ensinar o galego como língua de cultura, o “direito” de falar e escrever galego será vazio, porque “A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos humanos e das liberdades fundamentais” (Art. 26º, 2) e “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam” (Art. 27º, 1). E não se pode participar na ciência e na cultura sem língua.

Os liberais bilinguistas amparam-se no argumento de que o “dever” de aprender galego atenta contra os seus “direitos” como español-falantes. Um poderia pensar numa analogia com o aberrante dever, constitucionalmente estabelecido, de saber español. Com efeito, é aberrrante que um estado estabeleça uma obriga no que diz respeito à competência linguística individual, porque, além de tudo, esta é uma obriga contra cujo incumprimento nem há sanção, nem possibilidades de seguimento, nem mecanismos coercitivos para o seu cumprimento. A obriga legal afecta, isso sim, a aspectos de fechamento social do Estado frente, por exemplo, a imigrantes que procurem a cidadania española, para o qual devem declarar (declarar) que sabem español. O Estado Español assim cura-se em saúde e defende-se, tiranicamente, perante a possível indefensão dum cidadão que não fale español (ou não queira fazê-lo), demitindo-se o Estado da sua responsibilidade de, precisamente, garantir os direitos linguísticos individuais deste cidadão. Circular? Enguedelhado? Talvez, mas real. Explico: Os cidadãos têm direitos de fala entre eles e com as instituições, mas não deveres de comunicar-se duma dada maneira com as instituições que estão ao seu serviço!

Mas o imaginado paralelo entre o dever constitucional de saber español e os decretos de imersão linguística, e muito mais com o mutilado decreto da Xunta, falha de raiz: O decreto da Xunta sobre o uso do galego nas aulas não obriga ao conhecimento do galego, mas impõe ao Estado (a Xunta) a obrigação de facilitar que se possa saber. Um(a) estudante poderá continuar a falar español. E (excepto nas aulas de língua, evidentemente), poderá continuar a fazer os exames e os trabalhos em español. São os trabalhadores do estado, os docentes, os que devem utilizar o galego, não os meninhos.

A diferença entre ambas políticas vê-se mais claramente se atendermos ao último ponto da Declaração Universal:

Art 30°. Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma actividade ou de praticar algum acto destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados.”

O enunciado pode parecer abstrusamente circular, mas não é. Quer dizer, mais ou menos, que em nenhum caso poderá um estado “democrático” (os outros, já se sabe) impor um dever social que atente contra o direito à igualdade jurídica, à integridade física e aos direitos das pessoas e dos grupos. À luz disto, conclui-se facilmente o seguinte: Uma Constitución que estabelece o dever de saber español vai contra o Artigo 30º da DUDH precisamente porque estabelece um dever que vai contra os direitos, visto que ter competência numa língua não é uma questão de estrita decisão individual. Mas um decreto de uso do galego que estabelece (teoricamente) o dever de estudar, nas aulas, o galego como (teoricamente) língua de (teoricamente) cultura (como se tenta aprender Geografia ou Matemáticas) não faz isto, nem obriga ao seu uso.

Em conclusão, não é nos “direitos linguísticos” dos cidadãos que uma política linguística “normalizadora” (nem oficial nem para-partidária, com a que sofremos na Galiza) se deveria focar, mas nos deveres dos poderes públicos inseridos numa dada situação (sociolinguística, neste caso) para defenderem os interesses das maiorias sem atentarem contra as minorias (se é que ambas existem), nem contra os direitos de umas e outras.

Dos deveres e do privado

Ora bem, até onde podem e devem chegar estas políticas dos deveres linguísticos? Pode e deve o Governo Galego, por exemplo, estabelecer deveres linguísticos no âmbito do privado, do comercial, do familiar? Pode e deve impor o uso do galego nas livres empresas no nosso livre mercado? Não só não deve, senão que não pode, nem constitucionalmente.

Os poderes públicos “democráticos” podem intervir incentivando as empresas que utilizem o galego, até ao ponto de excluir absolutamente de certo tipo de subsídios aquelas que não o utilizem para nada, porque os poderes públicos “democráticos” não têm a responsabilidade nem a obriga de manterem empresas privadas que não têm qualquer carácter social nem qualquer outra meta que o benefício privado. Em lógica ética, não se pode apoiar o benefício privado que é um roubo (já o sabemos) porque nasce da apropriação do mais-valor do trabalho, não aceite polo trabalhador ou trabalhadora. A obrigação dos poderes públicos com responsabilidade social, mesmo num quadro jurídico que consagra o capitalismo como roubo, deveria ser então deixar morrer o capital privado nocivo. Ainda mais: no sistema capitalista os poderes públicos com responsabilidade social deveriam concorrer decisivamente contra o capital privado, criando capital colectivo que ré-distribuísse o mais-valor em formas distintas ao benefício. Curiosamente, quando isto acontece, o Capital fala de “concorrência desleal” por parte do Estado, quer dizer, por parte da… colectividade! Mas calam quando a concorrência é por parte duma sociedade anónima. (Se calhar a contradição é porque o Estado é a sociedade anónima mais poderosa, mas não lho contes a ninguém). No caso especificamente da língua, o capital poderia estar em meios de comunicação e outros participados publicamente, mesmo editoras (assim a Xunta poupava em subsídios às editoras privadas). Esta capitalização pública em função da língua deveria aplicar-se não só às indústrias da língua, mas a qualquer tipo de empresa onde existe a língua (isto é, todas). As justificações para isto são variadas, incluindo a (teórica) capacitação das classes desfavorecidas tradicionalmente associadas ao uso do galego.

Em resumo, se a Língua é importante como valor para o Governo que representa o Povo que utiliza essa Língua, para quem apoie o idioma galego como capital e como fonte de capital, tudo; para quem não o utilize em todas as suas actividades, zero. E não se preocupem com o nome em si da empresa marginada polo Estado, que se uma desaparece, outra cobrirá de contado o seu “nicho de mercado”.

Esta é portanto a dinâmica e dialéctica dos direitos e deveres, do púlico e do privado. A ênfase deveria ser colocada nos deveres do público, não nos direitos do privado.

Infelizmente, porém, acho que a ênfase nos “direitos linguísticos” (até dos “direitos colectivos”) contagia, harmoniosamente, tanto as políticas oficiais quanto o activismo linguístico. E assim surgem derrotistas e auto-defensivos lemas que, no fundo, estão a pedir que se aplique um Plan Xeral de Normalización que garante a prevalência eterna do español, minorizando e exotizando os galego-falantes. Porque o activismo linguístico só deveria interpelar legitimamente os poderes públicos para desenvolverem as suas obrigas com a sociedade. Focar-se nos “direitos” dos submetidos em vez dos deveres dos submetedores é jogar a perder. Por exemplo, no libérrimo quadro jurídico actual (incluído o PXNLG), é absurdo que o activismo linguístico interpele directamente as libérrimas empresas privadas cujo único objectivo é o libérrimo benefício, a custo do que for e da língua que for. Desde que essas empresas não vulnerem o meu “direito” a falar galego como trabalhador (repito, um direito laboral) ou como cliente, eu nada posso fazer contra o “direito” de responder-me em español dos chefes ou dos vendedores. Não está constitucionalmente nem estatutariamente reconhecido que eu possua o “direito linguístico” a que me vendam o pão em galego. Eu posso comprá-lo em galego, isso sim, mas o pão pode legalmente ser vendido em español: acontece cada dia, e eu não posso acudir ao Valedor do Povo. São os poderes públicos que têm a obrigação de que isto deixe de acontecer no amplo e turvo mundo do Capital, se é que a Língua e a Nação Galega são tão importantes. E o activismo linguístico poderia exercer outras acções específicas (não vazios apelos às empresas ou à cidadania em geral), desde boicotes variados e teimosos até criar o seu próprio capital, as suas próprias redes e fidelidades comerciais. Reformismo puro? Sim. Enquanto exista o actual quadro jurídico, institucional e constitucional, sim.

Mas nem este é o objectivo unânime dos nossos representantes políticos, até dos nacionalistas, que unanimizaram o tão louvado Plan Xeral de Normalización (?) da Lingua (?) Galega. De se cumprirem os objectivos do Plan integral e efectivamente, um panorama plausível é que em vinte anos uns poucos milhares restantes de monolingues galegos poderão desenvolver toda a sua vida diária numa dada versão do galego, oralmente e por escrito, frente às administrações e até com as empresas, num compartimento estanco do país, mas sem qualquer vulneração dos seus “direitos”. Quer dizer: exactamente o que querem os de Galicia Bilingüe, que, amparados na filosofia do PXNLG, reclamam também o seu “direito” a viverem em español. O PXNLG e Galicia Bilingüe são as duas faces da mesma moeda de duas línguas.

Talvez alguém não se importe com esse panorama futuro imaginado dos galego-falantes e português-escreventes hermetizados. Guetos piores se viram. E, afinal, num alto prédio sempre se vive num gueto, na língua que for. A Galiza pode continuar com esse modelo “normalizador” das instituições e do activismo para-institucional, ou encetar um outro modelo, muito mais difícil, porque implica começar a pensar e a agir em social, económico e político, não em linguístico, e ainda menos em filológico: pensar numa sociedade onde desapareçam as noções de “direitos” e “deveres” (linguísticos e dos outros), e onde se substitua o “privado” por “particular” e o “público” por “colectivo”.