Eu, que era o buscador da memória

Eu, que era o buscador da memória,
com tanta dor não lembro o nome que me deram.
Caminho todo o dia sem ver nada, e aguardo à noite
para libar, em companhia, os restos das imagens:
a fria foz do rio, ou o esforço das áscuas
abandonadas no alvor, ou o retido grito
da roupa quotidiana ao sentir que se esvai
a vida que continha. Eu, que era dono
de palavras em ordem para exéquias de dor
e acreditava, obediente, cumprir a nostalgia,
já não digo nada. Fecho as pálpebras, e através delas
imagino.
Imagino um abraço.
Imagino um abraço no limiar duma casa.
Imagino um abraço, longo e suficiente.

A custódia do tempo

Na memória de Berta
Com agradecimento para todas, para todos

     Há uns dias morreu a minha irmã Bertinha, na sua casa de Coruxo, ao lado do mar, do rio, perto dos campos, frente às ilhas, frente à região do sol-pôr. Chamou-me um amigo e perguntou-me se podia fazer algo por mim. “Só uma cousa”, pedi: “Por favor, dá um pouco para trás à manivela do tempo”. “Não a tenho…”, desculpou-se, triste. Era certo, porque então lembrei onde ela estava. Se nos debruçamos na varanda da casa de Coruxo olhando para o mar nota-se às vezes debaixo da duna o lombo da enorme roda de madeira do tempo, a resistente roda de moínho que em lugar de mover lâminas de água faz deslocar em fitas de imagens o estado do universo. Ao seu lado deve estar custodiada também por baixo das areias a manivela que a ativa.

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Vencer o após-guerra

     No excelente documentário La maleta mexicana, sobre uma mala perdida de negativos da Guerra Civil espanhola de Robert Capa e outros dous fotógrafos, o escritor mexicano Juan Villoro sentencia de maneira inimitável:

“Las guerras terminan en una fecha concreta, pero es muy difícil saber cuándo terminan las posguerras, y quiénes ganan las posguerras”.

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As filhas da puta e as filhas do rei

No Portal Galego da Língua

     Há muitos anos, quando eu era criança e adolescente, no prédio antigo onde morava havia uma porteira, uma mulher maior muito miúda, viúva, e às vezes não muito simpática a quem chamarei Caridad. Ocupava, no baixo interior, uma vivenda pequena e bastante obscura de um par de quartos de chão de azulejo, cozinha e banho, a custo da comunidade de vizinhos, além de receber um soldo. Entre as suas tarefas estava manter a limpeza do formoso edifício, dar algum recado ou recolher algum envio, prender a caldeira comunal de carvão para a calefação central, e, singularmente, salvar-nos dos não infrequentes atascos do elevador Schneider. Quando ficava parado entre pisos e entre paredes, talvez tocássemos um alarme que não sei se soava (se marchava a luz sem dúvida não), mas o mais efetivo era simplesmente berrar “Ascensoooor!” até que Caridad escutava, subia sete andares polas escadas, e dava-lhe com esforço a uma enorme manivela manual para ascender a caixa do elevador até a altura dum piso onde se pudessem abrir as portas. Depois pendurava na porta do ascensor o sucinto cartaz NO FUNCIONA, mas entre aspas, isto é: “NO FUNCIONA”. Essa foi a minha primeira exposição ao “uso” “gratuíto” das “aspas” para enfatizar “qualquer” “cousa”, que tanto floriu e ainda perdura.

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O neocapitalismo, a Catalunha e o sangue

     A avidez do capital financeiro está prestes a destruir o capitalismo mesmo: a acumulação de valor via a produção está a chegar a uns dos seus “limites” por sobreexploração dos recursos naturais, por mecanização e por devaluação da mão de obra: se o Trabalho não vale, também não acrescenta valor ao produto! As baratíssimas e ubíquas mercadorias plásticas são metonímias físicas que contêm a degradação do valor do trabalho que levou produzi-las. Por sua parte, a mecanização, por primeira vez na história do Capital, já não é capaz de recolocar a força de trabalho que expulsa dum dado setor: a saturação da tecnificação provoca que muito mais capital, em intensa concorrência na carreira tecnológica, vaia para a manutenção das máquinas que não produzem valor, do que para o trabalho em si. Mas a morte do Trabalho é a morte do Capital, e este sabe-o muito bem na sua própria carne.

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La Transició

No Portal Galego da Língua

          Os paralelos entre o processo soberanista catalão e a chamada Transición espanhola são tão notáveis que surpreende não terem sido, polo menos, comentados. Dentro duma dada ordem jurídica que se quer superar (Leyes Fundamentales del Reino; Estatut d’Autonomia de Catalunya), o parlamento eleito com um dado grao de limitações da representatividade por circunstâncias históricas (Cortes Españolas; Parlament de Catalunya) aprova por maioria um texto (Ley para la Reforma Política de 1976; Llei de Transitorietat Jurídica i Fundacional de la República de 2017) que frontalmente choca com a legislação de rango máximo, e suspende-a. Explicitamente ou não, ambas leis estabelecem a “excepcionalidade jurídica” necessária para não implosionar o processo. O objetivo é que o correspondente sujeito político soberano (“pueblo español”; “poble catalá”) se dote duma nova ordem constitucional. Para isto, instrumentalmente, o parlamento catalão deve aprovar também uma Llei del referèndum d’autodeterminació de Catalunya, mas esta não altera em nada a ordem jurídica nem a subordinação de Catalunha ao Estado Espanhol.

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Treze Tweets Sobre Carrero Blanco Que Não São Piada. Dedicados à metáfora de Cassandra

Se Carrero Blanco não tivesse sido assassinado, hoje não seria delito fazer piadas sobre o seu assassínio: não teríamos Audiencia Nacional, herdeira do Tribunal de Orden Público fascista.

O assassínio de Carrero foi uma alegria emocional mas um erro político. Isto é: um sucesso do Franquismo, que assim se perpetuou na Monarquia.

Assassinar o terrorista Franco teria sido mais efetivo. Mas um regime fascista nunca se suicida. É melhor eliminar alguém mais débil da cadeia: Carrero.

O serviço secreto (SS) sabia o que se preparava para Carrero. O regime EUA sabia o que se preparava para Carrero. Sabiam alguns partidos o que se preparava?

Carrero não poderia ter continuado o regime como Franco. Era um medíocre burocrata reacionário. Simbolizava o fascismo, mas não era um Franco.

Possivelmente Carrero teria caído com mais força. Alguém pode imaginar que o regime dos EUA não teria interesse na continuidade dum Carrero se fosse possível?

Mas EUA sabiam que Carrero cairia. Era melhor matá-lo. O melhor instrumento?: a ETA, e a conivência duma socialdemocracia queimada e enganada.

Portanto, Panem et Circenses: “Vamos matar Carrrero. E o velho cabrão amigo dele esmorecerá de pena. Saiam à cena Juan Carlos, Areilza, Fraga, Suárez…”

Panem et Circenses 2: “Deixemos pulular os velhos fascistas (Blas Piñar, Girón) como folclóricos: o antídoto necessário para dar a ilusão de mudança”.

E Panem et Circenses 3: “Mas nunca, nunca, deixemos que a gente esqueça quem ganhou a guerra, e por que: porque mantemos ocultos os ossos dos vossos mortos,

enquanto os ossos e a memória dos grandes assassinos são venerados. Eis a maior humilhação. De classe. Não nos importam os vossos «chistes». Não é isso:

é lembrar-vos perenemente que perdestes a guerra, vós e os vossos descendentes. Temos os instrumentos, a polícia, as leis e a ignorância popular,

e, sobretudo, somos España, essa metomínia de fracasso histórico com nome de estado.
(Mas sshh, que ninguém se inteire de que, na verdade, o Rey Felipe está despido)”.

A coprofilia da informação

No Portal Galego da Língua

     Recebo duma pessoa dos EUA uma preocupante notícia dum portal informativo australiano: que no “noroeste da Espanha”, um indivíduo entrou num supermercado com um colete suicida, e disparou contra a gente enquanto gritava “Alá é Grande”. Duas das fontes para a notícia eram os tabloides The Sun e La Región. Embora no próprio corpo do texto se dissesse que o atacante era basco, que o polícia que o desarmou o escutou gritar em euscara, e que devia ter problemas mentais, tanto o cabeçalho como o texto introdutório aludiam igualmente ao jihadismo.

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A Verdade Verdadeira Por Que Ganhou Trump (E Isso Que Não Sou Jornalista)

No Portal Galego da Língua

     Quando chegaram as primeiras notícias de que as explosões das Torres Gémeas foram causadas por aviões kamikazes, escutei duma pessoa hipercrítica com o mundo inteiro: “Claro. Os aviões são as bombas dos pobres”. Os “pobres” que planificaram e financiaram o massacre resultaram ser petromonarquias árabes, não palestinianos desapossados. Naquele 11/9 escutaram-se também vozes clarividentes de que o atentado era predizível, que “se via vir”. Com a vitória do machista, classista e racista Donald Trump para a presidência dos EUA, confirmada num inverso 9/11, observam-se respostas semelhantes que, com tal de criticar a assassina Clinton — que é amiúde chamada Killary por Hillary — trivializam as implicações da vitória do republicano, a quem apresentam pouco menos que um palhaço populista mas que, no fundo, diz verdades necessárias. Pablo Iglesias opina num artigo em Público (09/11/2016) que o populismo é de facto um “momento político” “Trump y el momento populista”), e do qual pode haver versões de “esquerdas” e de “direitas”; e Errejón “teoriza” em LaSexta em 09/11/2016 que Espanha, porém, está vacinada contra o populismo de ultradireita porque viveu o (glorioso) 15-M que teria feito nascer Podemos. Bom, além de ignorar que na Espanha a ultradireita já está no poder (o qual é grave), Errejón talvez esqueça que EUA viveu o enorme movimento Occupy, que deveria ter vacinado contra a vitória do populismo de Trump. (Ou — dentro dessa lógica — que o teria nutrido, como o 15-M a Podemos?).

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E por que não MAIS independentismo, precisamente?
 Réstia de perguntas à esquerda “não independentista”

     Por que não a independência da Galiza? Qual é o problema da autoorganização da “gente” a todos os níveis? Qual é o problema duma ordem jurídica, do grau de formalização que for, que permita formas económicas e sociais emancipatórias próprias (p. ex. usufruto em mão-comum, democracia de base, economias sustentáveis, anti-extrativismo, soberania energética…)?  Onde está escrito que a pertença a um quadro jurídico superior (Estado Espanhol, Europa) permita mais facilmente a emancipação e a igualdade? Qual é o problema da articulação duma Galiza independente com outros âmbitos auto-determinados, da Península Ibérica ou do mundo?  E qual é a necessidade dum governo de ordem superior, sobretudo quando lutamos por uma sociedade tão diferente que esses governos mais amplos (militarizados, burocratizados) só poderiam ser um atranco?  Que eiva histórica (ou genética?) têm as galegas e galegos que lhes impediria avançar na auto-consciência do independentismo solidário em lugar da crescente imersão num falacioso “não-nacionalismo” que só é a cara eleitoral-mercantil do nacionalismo espanhol?  E quem diz (onde está escrito) que para reclamar essa independência seja obrigatório professar o nacionalismo ideológico (e muito menos etnicista, essencialista) como máxima forma de identificação coletiva?  Porque, onde estão as fronteiras entre a autogestão e democracia de base e a independência nacional/coletiva?

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 Réstia de perguntas à esquerda “não independentista””