Os paralelos entre o processo soberanista catalão e a chamada Transición espanhola são tão notáveis que surpreende não terem sido, polo menos, comentados. Dentro duma dada ordem jurídica que se quer superar (Leyes Fundamentales del Reino; Estatut d’Autonomia de Catalunya), o parlamento eleito com um dado grao de limitações da representatividade por circunstâncias históricas (Cortes Españolas; Parlament de Catalunya) aprova por maioria um texto (Ley para la Reforma Política de 1976; Llei de Transitorietat Jurídica i Fundacional de la República de 2017) que frontalmente choca com a legislação de rango máximo, e suspende-a. Explicitamente ou não, ambas leis estabelecem a “excepcionalidade jurídica” necessária para não implosionar o processo. O objetivo é que o correspondente sujeito político soberano (“pueblo español”; “poble catalá”) se dote duma nova ordem constitucional. Para isto, instrumentalmente, o parlamento catalão deve aprovar também uma Llei del referèndum d’autodeterminació de Catalunya, mas esta não altera em nada a ordem jurídica nem a subordinação de Catalunha ao Estado Espanhol.
Treze Tweets Sobre Carrero Blanco Que Não São Piada. Dedicados à metáfora de Cassandra
Se Carrero Blanco não tivesse sido assassinado, hoje não seria delito fazer piadas sobre o seu assassínio: não teríamos Audiencia Nacional, herdeira do Tribunal de Orden Público fascista.
O assassínio de Carrero foi uma alegria emocional mas um erro político. Isto é: um sucesso do Franquismo, que assim se perpetuou na Monarquia.
Assassinar o terrorista Franco teria sido mais efetivo. Mas um regime fascista nunca se suicida. É melhor eliminar alguém mais débil da cadeia: Carrero.
O serviço secreto (SS) sabia o que se preparava para Carrero. O regime EUA sabia o que se preparava para Carrero. Sabiam alguns partidos o que se preparava?
Carrero não poderia ter continuado o regime como Franco. Era um medíocre burocrata reacionário. Simbolizava o fascismo, mas não era um Franco.
Possivelmente Carrero teria caído com mais força. Alguém pode imaginar que o regime dos EUA não teria interesse na continuidade dum Carrero se fosse possível?
Mas EUA sabiam que Carrero cairia. Era melhor matá-lo. O melhor instrumento?: a ETA, e a conivência duma socialdemocracia queimada e enganada.
Portanto, Panem et Circenses: “Vamos matar Carrrero. E o velho cabrão amigo dele esmorecerá de pena. Saiam à cena Juan Carlos, Areilza, Fraga, Suárez…”
Panem et Circenses 2: “Deixemos pulular os velhos fascistas (Blas Piñar, Girón) como folclóricos: o antídoto necessário para dar a ilusão de mudança”.
E Panem et Circenses 3: “Mas nunca, nunca, deixemos que a gente esqueça quem ganhou a guerra, e por que: porque mantemos ocultos os ossos dos vossos mortos,
enquanto os ossos e a memória dos grandes assassinos são venerados. Eis a maior humilhação. De classe. Não nos importam os vossos «chistes». Não é isso:
é lembrar-vos perenemente que perdestes a guerra, vós e os vossos descendentes. Temos os instrumentos, a polícia, as leis e a ignorância popular,
e, sobretudo, somos España, essa metomínia de fracasso histórico com nome de estado.
(Mas sshh, que ninguém se inteire de que, na verdade, o Rey Felipe está despido)”.
A coprofilia da informação
Recebo duma pessoa dos EUA uma preocupante notícia dum portal informativo australiano: que no “noroeste da Espanha”, um indivíduo entrou num supermercado com um colete suicida, e disparou contra a gente enquanto gritava “Alá é Grande”. Duas das fontes para a notícia eram os tabloides The Sun e La Región. Embora no próprio corpo do texto se dissesse que o atacante era basco, que o polícia que o desarmou o escutou gritar em euscara, e que devia ter problemas mentais, tanto o cabeçalho como o texto introdutório aludiam igualmente ao jihadismo.
A Verdade Verdadeira Por Que Ganhou Trump (E Isso Que Não Sou Jornalista)
Quando chegaram as primeiras notícias de que as explosões das Torres Gémeas foram causadas por aviões kamikazes, escutei duma pessoa hipercrítica com o mundo inteiro: “Claro. Os aviões são as bombas dos pobres”. Os “pobres” que planificaram e financiaram o massacre resultaram ser petromonarquias árabes, não palestinianos desapossados. Naquele 11/9 escutaram-se também vozes clarividentes de que o atentado era predizível, que “se via vir”. Com a vitória do machista, classista e racista Donald Trump para a presidência dos EUA, confirmada num inverso 9/11, observam-se respostas semelhantes que, com tal de criticar a assassina Clinton — que é amiúde chamada Killary por Hillary — trivializam as implicações da vitória do republicano, a quem apresentam pouco menos que um palhaço populista mas que, no fundo, diz verdades necessárias. Pablo Iglesias opina num artigo em Público (09/11/2016) que o populismo é de facto um “momento político” “Trump y el momento populista”), e do qual pode haver versões de “esquerdas” e de “direitas”; e Errejón “teoriza” em LaSexta em 09/11/2016 que Espanha, porém, está vacinada contra o populismo de ultradireita porque viveu o (glorioso) 15-M que teria feito nascer Podemos. Bom, além de ignorar que na Espanha a ultradireita já está no poder (o qual é grave), Errejón talvez esqueça que EUA viveu o enorme movimento Occupy, que deveria ter vacinado contra a vitória do populismo de Trump. (Ou — dentro dessa lógica — que o teria nutrido, como o 15-M a Podemos?).
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E por que não MAIS independentismo, precisamente? Réstia de perguntas à esquerda “não independentista”
Por que não a independência da Galiza? Qual é o problema da autoorganização da “gente” a todos os níveis? Qual é o problema duma ordem jurídica, do grau de formalização que for, que permita formas económicas e sociais emancipatórias próprias (p. ex. usufruto em mão-comum, democracia de base, economias sustentáveis, anti-extrativismo, soberania energética…)? Onde está escrito que a pertença a um quadro jurídico superior (Estado Espanhol, Europa) permita mais facilmente a emancipação e a igualdade? Qual é o problema da articulação duma Galiza independente com outros âmbitos auto-determinados, da Península Ibérica ou do mundo? E qual é a necessidade dum governo de ordem superior, sobretudo quando lutamos por uma sociedade tão diferente que esses governos mais amplos (militarizados, burocratizados) só poderiam ser um atranco? Que eiva histórica (ou genética?) têm as galegas e galegos que lhes impediria avançar na auto-consciência do independentismo solidário em lugar da crescente imersão num falacioso “não-nacionalismo” que só é a cara eleitoral-mercantil do nacionalismo espanhol? E quem diz (onde está escrito) que para reclamar essa independência seja obrigatório professar o nacionalismo ideológico (e muito menos etnicista, essencialista) como máxima forma de identificação coletiva? Porque, onde estão as fronteiras entre a autogestão e democracia de base e a independência nacional/coletiva?
O Trans e o Reint: Manifesto Reintrans
“Nós, de verdade, unicamente temos
a palavra. Só a palavra verdadeira
pode traduzir a fecha
e insondável soidade do nosso ser”.
Manuel Maria, A luz ressuscitada
No pensamento normativo dominante, muitas reivindicações de direitos identitários ou sociais (os económicos decretam-se inexistentes) são construídas como veleidades, caprichos que só uma generosa “tolerância” do sistema permitirá honrar e defender… ou não, porque onde manda o material, o reconhecimento cultural é discricionário. O casamento entre pessoas de chamado “mesmo sexo” (esse atavismo), por exemplo, é ainda muito limitadamente reconhecido, numa altura em que já crescem mundialmente as lutas por uma concepção das identidades de género como algo irredutível a categorias funcionais, e muito menos biológicas. No pensamento normativo dominante, ainda não se concebe que a biologia é apenas um dos aparelhos em que os humanos refugiamos a nossa complexidade, e que a descrição “homem com pénis” é exatamente tão trivial como “mulher transgénero com pénis”, por exemplo, sem entrar-nos na trivialidade de cada uma das subetiquetas componentes (“homem”, “mulher”). O estado de Carolina do Norte nos EUA aprovou recentemente legislação aberrante (a lei HB 2) que proíbe que pessoas chamadas transgénero possam utilizar as casas de banho correspondentes às etiquetas do género com que se sentem identificadas. Para evitar tal blasfémia (uma transmulher urinando porta com porta junto a uma cismulher!), não é claro se aquele estado instalará nas entradas das casas de banhos detetores de pénis e vaginas marca ACME. O governo federal EUA já interpôs uma demanda contra esta legislação troglodita e, além, contraditória até para as bíblias de que provavelmente emergeu (imagine-se um urinário para homens onde de súbito irrompa uma convencionalmente feminina transmulher-com-pénis a urinar líquidos idênticos aos dos cisvarões-com-pénis; calcula-se que, logo que mostre o pipi, já acreditará documentalmente que está a cumprir a lei e não será expulsa). O absurdo desta lei só convencerá, como costuma acontecer, aqueles cárteles ideológicos que sempre têm a perder com o progresso humano no caminho da libertação: as famílias binaristas alicerçadas simultaneamente na divisão cromosómica do trabalho e das identidades, na naturalização duma interpretação simplista da concorrência darwiniana, e — portanto — na concepção de que a selvagem ordem económica surge também “naturalmente” duma “natureza (bis) humana” cujos atributos exatos, na sua inerente contradição (os humanos amamo-nos e matamo-nos, até simultaneamente), curiosamente nunca conseguem explicar.
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Acabar com os reis
Acabar com os reis, com absolutamente todos os reis do mundo: os reis com coroa de ouro na cabeça e os reis com coroa de puas no pénis ou com coroa de sangue na boca do fuzil ou com coroa de tinta na caneta ou com coroa de saliva machista na palavra. Acabar com os reis decrépitos e com os reis jovens, altos e modernos. Acabar com os reis tiranos amigos doutros reis tiranos. Acabar com os reis dos estados, com os reis das empresas, com os reis dos exércitos, com os reis das religiões, com os reis dos partidos, com os reis dos livros, com os reis das redes, com os reis das assembleias, com os reis das famílias, com os reis das alcovas, com os reis das drogas, com os reis das armas, com os reis dos prostíbulos. São todos o mesmo rei-deus que cultiva o domínio como única razão da sua existência. Acabar com todos os reis-deuses e com todos os deuses-reis, e com todos os sacerdotes e capos, com todos os imames e generais, com todos os talibães e magnates, com todos os nazis brancos e todos os rabinos sionistas de longas barbas como os pénis. Acabar com todos os deuses reis que matam, que levam toda a história masculina matando como os reis dos países que levam toda a história matando as suas esposas, escravas e criadas e as crianças das esposas, escravas e criadas. São todos os mesmos assassinos de vidas e igualdade. Acabar com todos os reis mágicos que trazem a desigualdade às crianças, com todos os Pais Natal de longas barbas como pénis, com todos os secretos Apalpadores de crianças agochados na escuridão da sancristia, da aula, do gabinete de secretariado, da ruela da discoteca, do leito familiar. Acabar com todos os reis violadores, desde os mais jovens, altos e modernos até aos mais fedorentos e decrépitos. São todos o mesmo violador de corpos, vidas e futuros, são todos o mesmo assassino de crianças. Acabar com todos os reis deuses das nações, das ciências, das finanças, das drogas, das balas, do sexo, da cultura, das grandes teorias como barbas. Acabar com todos os reis da poesia e da revolução: os que fumam longos puros como barbas ou pénis e os que assinam com longas penas os decretos das línguas e da estética. Acabar com os reis dos longos fuzis, dos longos cacetes, das longas facas como pénis com que assassinam, literalmente, milhares de pessoas cada dia.
Por isso, acabarmos, pola força do coração e da razão da História, com todos os reis reais e com os reis dissimulados, com absolutamente todos os impérios do privilégio masculino, das cozinhas aos palácios, dos ecrãs de videojogo às bolsas de valores, das assembleias de bairro aos estados, das aulas aos edifícios religiosos. Por isso, acabarmos com o princípio masculino do rei deus, essa totalitária deformidade que habita nas leis, nos livros, nas moedas, nas ideias, e da qual emergem sempre como fungos os patéticos reis humanos de todas as cores e de quase todas as ideologias para ocuparem a nossa vida com violência e com megalómanos enganos. São todos o mesmo rei-deus que cultiva a crueldade e o domínio como única razão da sua existência. Por isso, acabarmos duma vez, pola força da vontade do coração da História, com o cérebro masculino da morte.
A Epistemologia do Norte de Boaventura de Sousa Santos na Corunha
O célebre sociólogo Boaventura de Sousa Santos, do Centro de Estudos Sociais de Coimbra, vem à Universidade da Corunha falar das Epistemologias do Sul e o futuro da universidade, com motivo do 25 aniversário da fundação da UDC. É um importante ato convidado pola universidade, com os poucos fundos que nos restam e que a atual Reitoria procura distribuir com siso, sobretudo para que o capital do Norte não possa botar mais pessoal trabalhador. Dentro dumas semanas virá, dentro da mesma série de palestras, por exemplo, outro célebre varão intelectual e mediático, Vicenç Navarro. Continue reading “A Epistemologia do Norte de Boaventura de Sousa Santos na Corunha”
Ideometria
Há três maneiras em que o trabalho intelectual universitário atual se inscreve numa lógica muito distante do que ele pretensamente representa: mercantilização, disciplinamento, e calibração. De maneira interessante, a trabalhadora ou trabalhador intelectual resume e incorpora, no capitalismo especulativo do conhecimento, várias dimensões do mercado do capital, como um microcosmos dessa sanguenta ilusão.
Mercantilização. A mercantilização do trabalho intelectual não é nova (mas constitutiva), mas condensa hoje a crise do valor que os teoristas argumentam como caraterística do capitalismo tardio. A crise do valor consiste em que a atividade conformada como trabalho (labor material ou imaterial) revaloriza de cada vez menos a matéria e portanto o produto final. Cada bem de consumo só contém uma pequena fracção de valor acrescentado: o produto é “barato”, muito barato; o lucro do capital obtém-se pola acumulação de valor apropriado na venda de milhões de produtos iguais. Portanto, é a própria força de trabalho que está desvalorizada, ao ter que realizar a mesma atividade infinidade de vezes para criar valor no produto. Conclusão: a força de trabalho não vale nada, pois só acrescenta valor polo tempo em que exerce a sua atividade mecánica, não polas destrezas do trabalho específico. Conclusão: floresce o trabalhador “genérico”, que vale para tudo. Conclusão: este trabalhador genérico não vale para nada, pois há muitos iguais, sobretudo no “terceiro mundo”. Conclusão: não importa que morram (menos dinheiro do “estado social” para mantê-los).
Ou autodeterminação e socialização também linguísticas ou não há nada que fazer
Publicado em Novas da Galiza 145, pp. 120-121 ★ No Portal Galego da Língua
1. A diagnose
Periodicamente repete-se na Galiza a pergunta se a “normalización lingüística” foi um fracasso ou um sucesso. Desta vez o motivo parecem ser os novos dados do Instituto Galego de Estatística que podem ler-se como uma indicação de que por primeira vez o galego é minoritário entre setores sociais como a mocidade.
A pergunta tem tipicamente duas respostas, baseadas na bivalência da própria expressão “normalización lingüística”, que está simultaneamente em galego da RAG e em espanhol: (1) A “normalización” foi um fracasso porque, sobretudo, o espanholismo do PP, a grande besta negra, a impediu, e os outros partidos também não fizeram o suficiente. (2) Noutro sentido (ou não), diz-se que é um sucesso porque, como projeto de elite, sempre se tratou da “normalización” definitiva do espanhol na Galiza, não do galego, e esse plano segue-se ponto por ponto. Acho que esta é a tese (ou polo menos a ênfase) mais estendida no reintegracionismo no geral.
A minha particular resposta não é nem uma nem a outra como tais. Julgo que devemos considerar mais em detalhe certas condições de possibilidade atuais que poderiam permitir ou impedir o que eu prefiro chamar a naturalização do galego na sociedade.
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