Estávamos aí

Publicado em Vieiros

Na comodidade da minha sala de estar, recebido polo sol intermitente, escuto e vejo à vontade comoventes fragmentos da gravação da homenagem a José Afonso que emitiu a TVG em 25 de Abril. Numa altura, o actor-apresentador Carlos Blanco, revestido das roupas e emblemas que há mais de trinta anos levávamos os jovens, parodia a época: “Mira que éramos roxos, neno. Aquelas mánis. Que bem o passámos, a verdade”.

Não. Não o passámos bem. Talvez o actor Carlos Blanco sim, mas nós não. Não estávamos em enormes congregações de vontades para passá-lo bem. Estávamos reunidos em assembleia permanente de utopias. Pensávamos a utopia, falávamos a utopia, realizávamos fragmentos dela nos actos mais miúdos, e depois introduzíamos os fragmentos nas casas e nas aulas, e amiúde dous mundos entravam em conflito, e assim a História prosseguia, forçávamos a História a prosseguir, como é a História, serva dos actos numerosos e das palavras precisas que sempre, sempre, continuarão a ter sentido.

Por isso centenas de nós estávamos há mais de trinta anos no desaparecido Cinema Disol de Vigo no primeiro recital de Pablo Milanés e Silvio Rodríguez nesta península. E sabíamos que éramos ilegais, e não se podia respirar, e muitos tínhamos medo de que entrasse a polícia. Medo, não apenas festa, medo da dor dos golpes e da morte da polícia. Mas por isso estávamos aí, e permanecíamos. E estávamos nas ruas de Vigo, não nas aulas nem no trabalho, enquanto a polícia matava operários. E tínhamos catorze, quinze anos, e não levávamos armas nem coletes anti-balas.

Por isso milhares de nós estávamos na intensa assembleia em Medicina onde se decidiu a greve indefinida de estudantes. E a polícia podia entrar e matar-nos. Estávamos no encerramento de Fonseca enquanto o cadáver recente de Franco ainda nos vigiava como um fedor fantasma por detrás das janelas, sobrevoando as carrinhas expectantes da polícia. E porque éramos milhares ocupámos a Universidade e ficámos horas ou noites a falarmos e cantarmos com Benedito em assembleia permanente de utopias.

E estávamos na homenagem a Celso Emilio Ferreiro em Compostela onde se leu poesia, e a voz de Soledad Bravo cindiu como tensa tança a noite seca, e éramos milhares. E estávamos nas noites secas na Quintana a dançarmos Rosalinda e Atrás dos Tempos Vêm Tempos. E estávamos no concerto de Milladoiro na enorme concha aberta do parque de Castrelos de Vigo, e nas primeiras noites antigas de Ortigueira. E estávamos no concerto em que Lluis Llach cantava as formas do amor e da revolta, e nós cantámos muitas vezes as formas da revolta com Lluis Llach, com José Afonso, com Fausto, com Pablo Milanés, com Luis Pastor, com Cilia, com Benedito, com Godinho, com Soledad Bravo, com Mercedes Sosa, com Pete Seeger. E igual que nós, muitas outras pessoas cantavam e hoje cantam outras vozes em distintas assembleias.

Por isso, não por outra cousa, por todos esses actos e centenas mais, e por todos os miúdos actos resistentes que durante décadas herdámos das pessoas assassinadas, violadas, torturadas, encarceradas, expulsadas, retaliadas, pudemos encher Compostela todo o dia num Dezembro recente enquanto chovia a mares piche preto nos areais atlânticos, e pudemos encher todas as ruas atlânticas enquanto choviam mares de fósforo branco nos areais do petróleo, e pudemos estar junto ao sol de Vigo na incansável duna da Marcha Mundial das Mulheres, a dizermos sempre as antigas e precisas palavras vigiadas sempre polo olho fantasma dos tiranos que ocultam a Solução Final das armas sob o trono democrático.

Por tudo isso, não nos enganemos, estamos hoje aqui, neste espaço real que é a Rede e que são as casas e os trabalhos e as aulas e as ruas e que é uma assembleia permanente de palavras. E continuaremos, não se engane ninguém, continuaremos. E após de nós e connosco, outras pessoas continuarão e continuaremos, a cantarmos e falarmos as diversas formas da revolta. Não para passá-lo bem e tempo depois fazermos pública e fácil paródia, mas simplesmente para cumprirmos a lógica da razão utópica, para forçarmos a História verdadeira a ser serva inânime dos actos.

Não o passámos bem então, nem o passamos bem agora, ainda não. Nisso estamos.

A cabeça de Ernesto Vázquez Souza

Publicado no Portal Galego da Língua

Conheço pouco a pessoa, algo os livros, e muito a sua palavra recente (a palavra é sempre adversária dos livros), desde que ela nos invadiu nos foros onde estávamos a pascer tranquilamente no campo dos tópicos repetidos. Desde havia tempo Mário me falara ocasionalmente da sua cabeça, enquanto bebíamos um ritual vinho cada vez diferente, mas eu pouco a vira, só quando coincidíramos anos antes nos frios corredores da Faculdade de Filologia, aí arriba, onde havia sempre um inútil acto cultural a quem ninguém assistia se era organizado polos outros. Porque aí arriba na Universidade, que tão amiúde é um abaixo mental, um sempre é os outros, e os outros sempre são os outros. Eu penso que Ernesto devia ser dos outros, e falei tão pouco com ele como com Xosé María Dobarro, com quem a cabeça de Ernesto trabalhava. A Universidade era então um labirinto de graves inconexões eternas. Não posso dizer o mesmo agora, pois para haver graves inconexões deve haver nodos insulares. Agora a Universidade é um labirinto de vastas campas desoladas onde sempre se chega ao mesmo lugar sem mover-se.

Um dia, a cabeça de Ernesto Vázquez Souza chegou aboiando desde o exílio físico sobre os nossos ecrãs verdes onde hoje se inscrevem os furtivos pontos geométricos em que consistem as palavras. E chegou para ceivar sem piedade contra nós uma linguagem rebordante de história, de velhas vozes, de côncavas fotografias, de textos barolentos, de actos mortos que (diz ele) explicam o nosso presente: a cabeça chegou com uma constelação incompreensível de sentidos se um não está dentro da cabeça. E é difícil estar dentro da cabeça de Ernesto Vázquez Souza, até para ele mesmo: essa enorme biblioteca orgânica que chegou aboiando no ar à nossa rede de ar é um ser autónomo, que pesquisa sem cessar por todas as suturas dos volumes enquanto o próprio Ernesto mecanicamente move as folhas ou digita.

A cabeça de Ernesto falsifica dia a dia o nosso passado construindo um nós que nós mesmos não podemos enxergar. Não um “nós” que se possa colocar entre aspas, como acabo de mentir eu, nem um Nós em maiúscula, como sentenciou Risco quando fingia ser inadaptado, mas um outro nós social que eu humildemente ainda não compreendo mas intuo. Há uma raiz imensa que Ernesto está a escavar. Leva anos foçando na matéria húmida das páginas: velhas vozes, côncavas fotografias, textos barolentos, actos mortos. Ele escava e resgata, dispõe em barrocas geometrias, expõe à luz as ligações ocultas das faces humanas e sociais dessa história que leva décadas a respirar debaixo das fossas. E nós, imediatamente, a lermos o que Ernesto diz, esnaquizamos com olhos imaturos o sentido, porque o sentido vive ainda na cabeça de Ernesto Vázquez Souza.

Mas eu sei que algo fica para nós deste duro resgate e que, fio a fio, iremos aprendendo. Não a lermos, nem a falsificarmos o passado, que é o mais difícil, mas a escutarmos. Mesmo chegará um dia em que os populosos tratados que saem da cabeça de Ernesto Vázquez Souza sejam para nós (esse nós, quem sabe qual nós) transparentes. Cumprirá tempo, como cumpre tempo para construir a nossa rede de ar que captura ar mais denso, a única rede possível, a única que nos é permitida. Como Ernesto disse, falsificando as suas próprias palavras: não tem pressa. Deveremos forçá-lo ao afã, mas não à pressa. E enquanto exista o afã na cabeça de Ernesto teremos tempo.

Este texto não pretende ser um abominável panegírico, mas uma crescente evidência. Não é preciso ser vidente para compreender que algo se coze. A cabeça de Ernesto, a longa camarada do seu corpo em exílio, é uma esperançadora notícia, um início de século.

Propriedade privada

Publicado em Vieiros

As mulheres são propriedade privada dos varões. Quando já não servem para as suas funções no sexo, na cozinha, na submissão simbólica, são sacrificadas. São sacrificadas como um animal que se possui: como um cão rebelde, como um cavalo velho. Os donos sacrificam-nas com lume, com facas, com balas, com as mãos, com pedras para esmagarem os seus cérebros. Como em muitos lugares o sacrifício privado é ilegal, alguns varões entregam-se aos seus serviços de segurança. Nalguns lugares há juízos para garantir o sacrifício legal da propriedade privada já inservível.

Os operários e operárias são propriedade privada das empresas. Quando saem mais caros que o benefício que produzem (como uma amante velha, como um cavalo doente) são sacrificados, retirados do trabalho, dando-lhes fome por alimento, fechando as factorias. Os operários são abandonados à intempérie como um cão que uiva no monte por voltar ao seio do seu amo. Sacrificar operários dando-lhes fome costuma ser legal, desde que passem a ser propriedade privada directa do Estado, do seguro de desemprego.

Os países, as gentes e os territórios são propriedade privada dos Estados. A Galiza ou Euskadi são propriedade privada do estado monárquico, que os aluga a gente que por isso se chamam galegos ou bascos. Quando os ocupantes que alugam os países querem tomá-los, o Estado pode chamar ao serviço do segurança, ao exército. Às vezes, muitos inquilinos são sacrificados com balas, com paus, como se sacrifica um cão rebelde. Às vezes, uns poucos inquilinos varões empreendedores alcançam a tomar para si os países em aluguer, e os países, gentes e territórios passam a ser propriedade privada dos novos varões, dos novos Estados, que voltam a alugá-los.

O petróleo, o gás, o ar, a água, o sal, o pão e o arroz são propriedade privada dos varões, das empresas e dos Estados. Quando resulta caro demais obter ou produzir o gás, a água ou o arroz com as mulheres, homens e meninhos que trabalham nos campos, florestas e desertos alugados, os exércitos dos Estados das empresas dos varões sacrificam-nos com balas, com lume, com mãos e com facas, esmagam-lhes o cérebro com metralha, deformam a sua visagem com fósforo, desmembram-nos para fazerem ecrãs e cabeleiras sintéticas, produzem baralhos dos seus rostos, vídeo-jogos da sua nudez, megawatts dos seus cadáveres nas duches crematórias.

De tudo isto há imagens e palavras, diariamente. E as imagens e palavras que chegam às casas e às cozinhas onde as mulheres fervem arroz para os seus donos com restos de animais sacrificados, são propriedade privada das empresas e dos Estados. Quando as imagens ou palavras se rebelam e pensam, quando são inservíveis porque dizem como querem a verdade do extermínio, os Estados sacrificam-nas em altas labaredas, cortam as páginas com facas, riscam as frases imigrantes e os acentos rebeldes com tinta de sangue, decapitam as fotografias, torturam o significado. Os juízes e os exércitos dos Estados fecham em Guantánamo as páginas que fazem ritual greve de fome, desterram para o monte a uivarem como cães as imagens certas do extermínio.

As mulheres, a força de trabalho, os animais, os territórios, o gás, a água, o arroz, as imagens e as palavras têm todos nomes únicos, cifras, códigos, facturas, certidões de propriedade, vias de distribuição, composição interna, dimensões, peso, embalagem, modo de emprego, data de caducidade, lugar exacto para serem utilizados nas casas e nas indústrias, nos leitos, na corte, na cadeia de montagem, no sofá, nas estantes, no cérebro, lugar exacto para botar os seus resíduos, nos cemitérios, nos matadouros, nas lixeiras, nos esgotos, nos desertos, nas estantes, no cérebro.

E, afinal do seu ciclo, cada espécime de propriedade privada das pessoas e dos Estados torna-se na mente depois do seu uso escrupulosamente no mesmo: numa solitária reacção orgânica e num furtivo vágado irreal, como se tudo isto se tratasse apenas de um mundo alegórico indescritivelmente pavoroso que por ventura não existe.

Um conselho para meu rei

Publicado em Vieiros

Senhor Juan Carlos de Borbón, meu rei:

Mire usté. A mim o que faça na sua intimidade religiosa pouco me importa. Mas, enquanto você seja um empregado do Reino, de milhões de súbditos com D.N.I., guarde a exibição das suas crenças para dentro da sua própria solução habitacional. Eu pago os meus tributos para o seu soldo como bom espanhol. Juro-lhe que há anos que não minto na declaração da renda. E o artigo 16.3 da Constitución que lhe dá trabalho diz: “Ninguna confesión tendrá carácter estatal”.

Mas na noite do passado 24 de Dezembro, você soltou-nos mais um desses sermões de catequese pola televisão, paga também com o dinheiro de todos e sobretudo do BBVA. O seu predecessor, lembra?, o Capitão General que o colocou no trono, falava-nos em cada 31 de Dezembro para desejar-nos um ano novo ainda pior. Mas você, meu segundo Capitão General, por se distanciar dele e se aproximar dos nossos corações partíos, mudou a data para o angélico 24. Mesma diferença, como dizem em inglês. Ainda por riba, ameaça-nos com que o seu filho Felipe vai continuar a fazer o seu trabalho no futuro.

Tanto tem. Fale o que quiser, que há liberdade, até para si. Confesso que zapeei uns instantes da sua ladainha. Mas quando saíu no fundo da imagem o presépio esse com as figurinhas cerâmicas de uns personagens estranhos de há 2.000 anos, disse eu, tate, aqui há tomate. Olha tu para as famílias disfuncionais. Não nos podia ter deliciado com o fundo duma colorida natureza-morta ou duma lâmina da Rendición de Breda? Mas não, tinha que ser de novo a superstição cristã, ou judeu-cristã, ou muçulmana, que já sabemos que Cristo também foi profeta do Hezbolá. Nos alvores do Século do Cérebro, como canta a propaganda dos seus Ministérios da ciência, resulta que nos lembram agora de uma senhora palestiniana chamada Maria que pariu sem ver varão (seria por partenogénese, como alguns lagartos fémia quando não há machos, que o aprendi em Tecnoticias de la 2), de um filho dela chamado Jesus que em três anos orando no deserto sem beber viu um dia o Diabo (vaia milagre!), e que aos três dias ressuscitou sem vermes (mal negócio para os de C.S.I.) e ascendeu aos céus sem propulsão de energias renováveis. Aí o único normal era o carpinteiro. E vocês querem contar isso nas escolas públicas e depois perseguem as seitas satânicas?

E o Reino aconfessional de España, racional paradigma mundial de matrimónios trissexuais e de Aliança de Civilizações (que vem de “civil”, não sei se sabe), vai e nos coloca o seu Chefe de Estado, que ainda acredita nas superstições dos bispos, com esse modelo de família no fundo. Pois apanhados estamos.

Ai ai ai, cumpra-me as constituições, senhor Juan Carlos, que qualquer ano destes o PSOE se enfada com você para ficar bem em Europa e lhe faz a cama no seu próprio parlamento. Mire usté: a sua Constitución diz que no Reino de España o catolicismo tem prioridade de passo (sempre vem pola direita), não monopólio. Para o próximo ano (que será o seu penúltimo como líder de Gran Hermano), digo-lhe: ponha-nos também na tele um candelabro judeu com sete braços, umas surahs corânicas bordadas em ouro do Potosi, um pouco de incenso hindu, uns totens animistas, e, em vez do teleprompter, vaia lendo a sua mensagem revelada numa tábua de ouija. Por tolerância.

Ah, e mude a data do discurso para o 28 de Dezembro.

O seu fiel conselheiro de imagem,

Celso Alvarez Cáccamo

Repugnante

Publicado em Vieiros • Publicado em  Novas da Galiza 47, 15 Outubro – 15 Novembro 2006, p. 20

O Reino de España, chefiado como sempre desde que lembro por um militar profissional, prepara-se mais uma vez para celebrar a conquista e o genocídio nesse repugnante 12 de Outubro, Día de la Hispanidad, Fiesta Nacional. Ainda bem que não sou espanhol, que muitos não somos espanhóis para levarmos essa vergonha nas costas. España, a ressessa España dos catecismos escolares, das enciclopédias Álvarez, das cruzes gamadas e latinas, da indivisível unidade, da asfixiante hagiografia e dos mártires do Alcázar e das réstias de repugnantes reis e rainhas, homenageia aquele mercenário Cristophorus Columbus, o mesmo indivíduo que negociou igualmente com o sequestro de escravos africanos em Portugal e com escravos americanos em Sevilha, o que inaugurou a peste e o extermínio, o mesmo indivíduo que alguns tristes patriotas catalães, portugueses ou galegos querem reivindicar como seu.

O repugnante dia da Fiesta Nacional verá, mais uma vez, o desfile de repugnantes exércitos e repugnantes bandeiras de repugnantes monarquias e repúblicas, numa infantil sinceridade espanhola que é de agradecer: porque a essência de España sempre foi o exército. Perante o palco populado de medalhas e sorrisos de pastel, de altezas e baixezas, de políticos hipócritas y otras altas autoridades civiles, católicas y militares, desfilará a essência de España. E quem desfilará com as suas melhores galas de feriado não serão docentes, electricistas, varredores, pessoal sanitário. Não desfilarão campesinhas, cabeleireiros, jubilados, empregadas, contáveis, marinheiros, juízes, jardineiros. Não desfilarão taxistas, parteiras, comerciais, tradutoras, vendedores, peixeiras, músicos, jornalistas, ferralheiros, alvanéis, terapeutas, operárias, poetas, fruteiros, biólogas, limpadoras, camareiros, redeiras, pintores, tratantes, secretários, desempregadas, recepcionistas, mineiros. Não. Desfilarão matadores profissionais, soldados, cabos, sargentos, tenentes, capitães, coronéis, comandantes, generais, carros de metal, aviões de metal, fuzis, mastros, metralha. Desfilará página a página a enciclopédia universal do assassínio legal, regulado, cristão, salvador. Desfilará letra a letra o infame artigo 8 da Constitución Española.

E assim, mais uma vez, España demonstrará transparentemente a sua vocação armada, imperial, grotesca, o seu fracasso histórico. E todos e todas saudarão bandeiras de cor de sangue e bílis, bandeiras com estrelas de dor, com águias predadoras, com coroas de ouro roubado, bandeiras com as eternas palavras do extermínio: América, Marrocos, o Sara, Guiné, Iraque, Líbano, Afeganistão, Haiti. Felizmente regressarão os EUA ao concerto hispânico dos amigos da morte. E firmes nos seus tronos democráticos, políticos que lixam a palavra “socialista” e políticos que lixam a palavra “popular”, os mesmos que invadiram o Iraque e os mesmos que o abandonaram para continuarem no Afeganistão, para invadirem o Líbano cegamente fieis aos cães da guerra, celebrarão juntos a glória da Conquista, a heróica missão do Reino nos intestinos da prata e do ouro negro.

Do Cusco a Cabul, na mais antiga tradição monárquica, España continua a celebrar a épica da morte humanitária com o fulgor erecto de sabres e pistolas. Como sempre com essa monstruosa retórica da libertação cristã, democrática, ocidental. Como sempre desde que lembro. Como sempre até que a gente desse Reino decida deter a repugnante farsa.

A épica do suicídio

Publicado em Vieiros

Este texto surge a raiz de debates na lista Language in the New Capitalism

O discurso de Joseph Ratzinger –conhecido como Bento XVI pola sua profissão– no passado 12 de Setembro causou uma comoção mediática polas suas referências ao Islão. O texto, que foi uma palestra intitulada Fé, Razão e a Universidade: Memórias e Reflexões perante representantes da ciência na Universidade de Regensburgo, parte de citações de uma controvérsia medieval entre o imperador bizantino Manuel II Paleologus e certo persa culto sobre três livros religiosos: o Antigo Testamento, o Novo Testamento, e o Corão. Ratzinger cita o editor do diálogo, Theodore Khoury, citando o imperador a citar surahs do Corão sobre, entre outros tópicos, a “guerra santa”. Ratzinger contrapõe uma visão parcial do islão e do seu violento deus (um deus “não sujeito nem a sua própria palavra”) com a racionalidade helenística, que seria não só a base da ciência ocidental moderna, mas o pouso intelectual em que se teria assentado naturalmente o cristianismo. Decerto, esta parte do discurso de Ratzinger é propagandisticamente parcial, e assim foi lido por imans e alguns muçulmanos que, a exercerem violência, não fizeram outra cousa que reforçar as teses de Ratzinger. Num artigo em Counterpunch, “Papal Insults. A Bavarian Provocation” (“Insultos papais: Uma provocação bávara”), Tariq Ali contesta em defesa do “mundo islâmico” e, concretamente, de “dous dos seus países” (o Iraque e Afeganistão) ocupados por “tropas ocidentais”, lembrando o sangue histórico deitado polo dogmatismo da religião cristã, também com citações escolhidas de textos religiosos cristãos. Muito longe da análise social crítica, temo-me que a réplica de Tariq Ali também reforça a ideia de que os conflitos económicos mundiais podem ser discutidos em termos pseudo-teológicos, além de um par de frases de manual de corte social.

Mas eu leio o texto de Ratzinger mais bem como um interesseiro meta-texto sobre o papel do catolicismo num mundo crescentemente invadido por outras e novas denominações de origem religiosas. Ratzinger simula convidar ao “diálogo genuíno” com uma nova controvérsia (dialéxis) sobre os escopos respectivos da ciência e da razão, da ética e da religião. Para mim, o texto está desenhado para o consumo interno do “mundo cristão”, dado o retrocesso sofrido polo catolicismo perante a mercadotecnia do evangelismo. É um intuito de apropriar a racionalidade, ao equiparar ciência e razão por uma parte, e religião e ética, por outra. Assim, para Ratzinger a ética religiosa deveria derivar de um alargamento do escopo da “ciência” para incluir a filosofia e, noutro sentido, a teologia, isto é, a (bizantina, em mais de um sentido) racionalização da fé. Diz Ratzinger:

“Este é um perigoso estado de cousas para a humanidade, como vemos polas perturbadoras patologias da religião e da razão que irrompem necessariamente quando a razão fica tão reduzida que as questões da religião e da ética já não lhe concernem. As tentativas de construir uma ética a partir das regras da evolução ou da psicologia e da sociologia terminam por ser simplesmente inadequadas”.

Ou

“Só assim [pola racionalização da fé] somos capazes desse genuíno diálogo das culturas e religiões que hoje se precisa tão urgentemente. No mundo ocidental é visão geral que só a razão positivista e as formas de filosofia baseadas nela são universalmente válidas. Porém as culturas profundamente religiosas do mundo vêem esta exclusão do divino fora da universalidade da razão como um ataque contra as suas convicções mais profundas. Uma razão que é surda ao divino e que relega a religião ao âmbito das subculturas é incapaz de entrar no diálogo das culturas”.

O gambito, como nas controvérsias, seria teoricamente implicar outras religiões num “diálogo” racional “genuíno”, mas obviamente, desde a vantagem da racionalidade helenística, ocidental e eurocêntrica, incorporada por naturalização no cristianismo. Mas mais preocupante do que esta apropriação é a deslegitimação que se faz do pensamento científico (as “regras da evolução”, a “psicologia” e a “sociologia”) para o ordenamento da ética, absorvida por Ratzinger na ideologia cristã como expressão da essência humana.

É certo que o messianismo destas palavras –com a sua clara reverência ao criacionismo ao assumir que a ética humana não é um resultado evolutivo da espécie, mas então platonicamente (divinamente) prévia– assinala uma aliança táctica com o que já se tem chamado o teo-conservadorismo norte-americano. Nestes termos poderia caminhar uma crítica sociologicamente orientada do discurso de Ratzinger. O que me surpreende, porém, é que um texto sem dúvida bem polido mas articulado em torno de uma ideia muito simples levante críticas (como a de Tariq Ali) que só reforçam o enquadramento do desastre mundial actual em termos do “islão”, o “ocidente” ou outras totalizações. Isto não é só inquietante, mas representa um fraco serviço à compreensão das causas do desastre. Desta perspectiva redutiva compartilhada por uns e outros, o “islão” tem produzido grandes atrocidades históricas, como o “cristianismo”, o “judaísmo” ou o “hinduísmo”. Mas o “islão” no seu conjunto não é atacado porque qualquer discurso interesseiro indique que passagens do Corão são susceptíveis de serem interpretadas como convocatórias a uma “guerra santa” que (outros exégetas dizem) inexistem como tais nesse livro (jihad traduz-se por combate: um combate “pequeno” para a conversão dos infiéis, e um combate interior “grande” que não deixa de lembrar a “revolução interna”). Da mesma maneira, a “cristandade” no seu conjunto não sofre polas menções de Tariq Ali às Cruzadas, nem o “judaísmo” sofre polas críticas a um projecto sionista de expansão estatal que não é compartilhado nem pola resistência cívica israelita nem pola ortodoxia judeia. Se a “fé” existe, deveria ser impermeável aos erros históricos. Este recurso dialéctico às atrocidades históricas do adversário ideológico é, se se me permite, meridianamente ridículo.

O que denigra o islão, o cristianismo, o judaísmo ou qualquer outra ideologia religiosa são as exégeses essencialistas dos seus respectivos textos fundacionais, solenemente exercidas por esquadras de maduros varões (sempre varões) desde o privilégio material das suas palestras reais, virtuais ou mediáticas, num exercício de elite que já perdeu todo o contacto humano com a realidade. A ideologia religiosa é igualmente denegrida polo acrítico submetimento de legiões de homens e mulheres crentes a estes solenes varões, como se apenas estes pudessem ser a voz da fé individual (seja isto da “fé” o que for), numa sorte de estranho deslocamento que sem dúvida desafia a “racionalidade da fé” que Ratzinger procura se apropriar.

A totalização das palavras “islão”, “cristianismo”, “judaísmo” ou qualquer outra ideologia religiosa cria monstros. O paralelo especular da queima de livros polos Nazis é a idolatria de um só Livro, tenha o título que tiver. E estas totalizações são extremamente úteis para que outros construtos, também totalizadores (os Poderes Ocidentais, os Neo-Conservadores, os Teo-Conservadores, o Complexo Industrial-Militar, o Sionismo, Al-Qaeda) se apoderem dos nossos actos a meio de uma apropriação mediática, simulada, das nossas mentes.

Eu compreendo que os média corporativos precisam de inflar estes assuntos descabidamente, visto que a realidade já não é tão real como soía ser (a realidade é tremendamente aborrecida para os índices de audiência). Mas eu pergunto-me por quê certa crítica é incapaz de retirar das suas análises a palavra “islão”, que por definição só pode incidir no discurso dominante das emoções. Já sabemos que as razões principais para a presença ou a ameaça de exércitos ocidentais ao Iraque, Afeganistão, o Irão, Síria, Líbano não é que estes sejam “países muçulmanos”. Porque não o são. São países de gente, e de classes sociais. Os exércitos cristãos espanhóis massacraram nativos americanos durante séculos e ninguém cabal chamaria isso uma guerra de religiões. O que se precisa é uma resistência decisiva em favor do laicismo dos estados (já que estes existem, mantenham os deuses e outros seres pavorosos fora do meu dormitório e das minhas escolas), não análises que, ao nomearem os mesmos objectos que os conservadores religiosos nomeiam, reforçam alianças semântico-militares incomprovadas como “islamismo/Al-Qaeda” (uma organização armada religiosa com um nome laico???) ou o também inexistente “choque de civilizações”.

Realmente aborrece escutar este discurso das emoções religiosas todo o tempo. Nunca desde os tempos de Franco a religião esteve tão presente nos média e no pseudo-debate público desta mutação histórica que é o Estado Espanhol. Numa táctica evidente, a classe política, os média e todo tipo de comentaristas brandem o “islamismo” como a fonte de todos os males, ou defendem-no como se o petróleo fosse muçulmano, quando do que se está a falar realmente é do outro Inomeado (como todos os deuses verdadeiros) como fonte de todos os bens: o cristianismo, o judaísmo, o judeo-cristianismo. Assim, a situação actual, onde a imigração, o multiculturalismo, o “terrorismo” e as religiões “alheias” se reúnem num totum revolutum no discurso público, excede todo sentido de normalidade.

Mas estou começando a pensar que tudo isto é o resultado da vitória global do pensamento religioso institucionalizado sob o disfarce doutrinário de um Nazismo que na verdade nunca perdeu a guerra. Quando se acredita num princípio dogmático último além da racionalidade de senso comum e da experiência (o Estado, a Raça, a Pátria, Deus: um Aleph nunca visto mas igualmente existente que resumiria e explicaria tudo), o resultado também final da lealdade incondicional só pode ser a Morte, esse sacrifical suicídio explosivo eficazmente inventado polo Império japonês, não por Mohammed Atta. A finais dos anos 1990, os militantes salafistas começaram a matar-se entre eles e a extinguir-se (um suicídio em massa) em lugar de matarem os infiéis ocidentais, pois já não tinha sentido salvar aquele mundo corrupto se Deus não podia achar nem um homem puro entre os seus próprios seguidores. Curiosamente, foi então, quando o islamismo armado estava mais débil, que apareceu a insígnia “Al-Qaeda”. Mas já muito antes também Hitler quis suicidar a impura raça germana quando se suicidou, pois Ele (isto é, Hitler) falhara-lhes. E talvez Hitler fracassou porque também era “judeu”. Os horríveis crimes dos alemães nazis contra os alemães judeus (e europeus judeus em geral) só se podem entender em termos da purificação de uma parte do que era visto como o próprio Corpo Ário. Os alemães judeus não eram “o Outro”, mas a parte do Um-Próprio, inscrito no sangue e nos nomes alemães (o nono apelido de Hitler era “judeu”). Para o Nazismo, matar os judeus significava amputar um membro importante do próprio corpo, que, por certo, criara significativo pensamento científico, filosófico e político para a Germânia, incluindo o Marxismo. Afinal, a operação racista Nazi teve sucesso, e por isso o anti-semitismo europeu tomou firmes raízes na criação do Estado de Israel, primeiro pola superação numérica dos judeus semitas da Palestina por parte dos judeus europeus, e depois polo deslocamento e assassínio dos semitas muçulmanos e cristãos. A actual situação mundial deve mais do que sabemos ao triunfo do Nazismo, talvez a máxima expressão histórica conhecida da totalização da Identidade.

Cristo, Hitler, os kamikazes, Atta, os homens-bomba, Lavapiés, Jamestown, o United-93, os mártires e heróis da cultura da guerra de Hollywood… A religião é a épica do suicídio. O argumento subjacente sem provar é que o Grupo humano é materialmente um supra-organismo, uma enorme estrela de mar que às vezes precisa de sacrificar um dos seus membros polo bem comum. E a “globalização”, assim, não é mais do que uma consequência internamente lógica, a longa construção dum corpo monstruoso: o vasto corpo de Deus. Neste sentido, assim como ontem alemães nazis mataram centenas de milhares de alemães judeus nas aras da pureza orgânica, hoje as matanças mútuas de iraquianos também não constituem uma guerra civil, mas uma cura, e portanto o sangrado terapêutico deve continuar, vigiado polos exércitos de deus: o massacre iraquiano é puro suicídio, é a auto-limpeza necessária, a necessária auto-purga de uma parte impura do corpo global. O Iraque é uma maciça apoptose. Porque o infantil deus cristão do Capital genuinamente acredita que o mundo é o Seu corpo, e tem que lutar contra outros deuses igualmente infantis que também desejam ter um corpo.

A racionalidade da fé? Eu nem sei. A mim o que me diz a racionalidade é que a Teologia é pura Teratologia. E que, polo que sei, essa terrível pulsão suicida inexiste no Marxismo.

A retórica da Propaganda

Publicado no Portal Galego da Língua

1.

Escreve nalgures a linguista Ruth Wodak que a Propaganda é “discurso desenhado para impedir pensar”. A Propaganda é omnipresente na vida diária. Mas, como se constrói linguisticamente, discursivamente, a Propaganda? Que recursos fornecem as línguas para a Propaganda?

Quisera focar-me num fenómeno pragmático (comunicativo) muito frequente na vida diária e susceptível de uso propagandístico com muita produtividade: a pressuposição. A pressuposição consiste em dar por entendido algum significado, mas “escamoteado” dentro de um enunciado mais amplo. Por exemplo, se eu afirmo “O filme A é mais interessante do que o B”, estou a pressupor que o filme A é, polo menos, algo interessante, que tem a qualidade de ‘interessante’ nalguma medida. Por isso os vendedores nos dizem sempre que um produto caro é “menos económico do que o outro” (tem o atributo de ‘económico’, quer dizer, ‘barato’, nalguma medida), nunca “mais caro do que o outro”.

Um tipo de pressuposição muito frequente é a chamada pressuposição existencial. Com uma pressuposição existencial, dá-se a entender (dá-se por inquestionável) a existência de algo, de uma dada entidade, seja isto assim no mundo real ou não. Por exemplo, se eu afirmo “O meu cão chama-se Trósqui” pressuponho que existe um cão específico e que é da minha propriedade. Reparemos que se nego o dito (“O meu cão não se chama Trósqui”) continuo a pressupor o mesmo: a existência de um cão que é meu. De facto, “O meu cão chama-se Trósqui, mas não tenho cão” é uma contradição, porque eu dei a entender, com outras palavras, que o tinha.

As pressuposições existenciais são activadas polo que se chama uma expressão definida. Uma expressão definida é, por exemplo, a que começa com o artigo “o/a/os/as” (“O meu cão está doente”), ou a que consiste num nome próprio (“Trósqui está doente”).

Portanto, as pressuposições existenciais contribuem para a representação de um mundo… ou para a sua construção. A questão crucial para o receptor de uma pressuposição existencial (o ouvinte) é o que se chama a determinação do referente, quer dizer, o problema da identificação de uma dada entidade do mundo real que se possa corresponder com a entidade pressuposta. A questão é se no mundo real a pressuposição se satisfaz ou não, quer dizer, se na realidade existe ou não essa entidade pressuposta. Eis o que discutirei a seguir.

2.

A propaganda política faz uso do recurso da pressuposição existencial de maneira profusa. De facto, grande parte da construção de uma ideologia consiste na construção de um “mundo” de objectos e realidades pressupostas. Por exemplo, “A política económica do governo” pressupõe que o governo tem política económica (e não um conjunto de actos improvisados). “Os direitos dos trabalhadores” pressupõe que existem tais ‘direitos’, e assim por diante.

De maneira que as pressuposições existenciais contribuem para construir um mundo, polo menos das ideias. Alguns ultraliberais, por exemplo, fazem existir o nazismo na Galiza a referir-se em certos textos jornalísticos ao actual governo bipartido da Galiza BNG-PSOE como “el poder nacional-socialista gallego” como se o governo fosse um todo unitário comparável ao partido alemão NSDAP e como se tivesse a mesma ideologia. A manipulação baseia-se no seguinte: O receptor sabe que existe a Xunta; sabe que está composta por um partido “nacionalista” e por um partido “socialista”; portanto, só pode fazer corresponder a expressão “el poder nacional-socialista gallego” com esta aliança de partidos do mundo real. O poder galego actual não é nazi; mas a Propaganda quer fazê-lo existir, nomeando-o e, assim, condicionar a visão do mundo dos receptores.

Dissemos que um outro tipo de expressão definida que acarreta uma pressuposição existencial é o nome próprio. O jornalista Adam Curtis revela no seu excelente documentário The Power of Nightmares (O Poder dos Pesadelos, BBC, 2004) como “Al-Qaeda” começou a existir em Janeiro de 2001, durante o juízo em EUA contra quatro homens polos bombas colocadas em duas embaixadas EUA em África do Leste em 1998. O governo EUA queria estender também a acusação a Ben Laden, como pretenso líder de um (inexistente) movimento armado internacional. Na realidade, Ben Laden era apenas seguido por um pequeno grupo de fanáticos dentre os milhares de grupúsculos armados que pululavam por Afeganistão. Mas, sob a legislação estadounidense, a acusação a Ben Laden só podia ter lugar se existisse prova de uma vinculação orgânica, quer dizer, de uma organização, como a máfia. Então, uma testemunha protegida do processo, um muçulmano, declarou que ele próprio conhecera Ben Laden e que “Al-Qaeda” era o nome que ele dera à sua organização. Polo poder pressuposicional de nomear, “Al-Qaeda” começou a existir na mente do público. Foi só mais tarde desse mesmo ano, após o massacre do 11 de Setembro, que Ben Laden soube que no nome “Al-Qaeda” representava para os neo-conservadores estadounidenses uma suposta organização da qual ele seria o líder. Na realidade, os ataques do 11-S foram obra de um pequeno grupo, desmantelado e desaparecido, que acudira ao adinheirado Ben Laden para financiamento. Em resumo, precisamente por o nome “Al-Qaeda” ser cunhado, o mundo real passou a se ajustar às palavras, com a criação de um poderoso inimigo, algo que politicamente era necessário para o neo-conservadurismo ocidental após a queda do “império do Mal” soviético. Assim, a palavra dos representantes do povo elegido (EUA) criou, pressuposicionalmente, “Al-Qaeda”. Na verdade, não longe disto está o poder performativo (criativo) da palavra de Deus na cosmogonia cristã: “E Deus disse: Faça-se a Luz; e a Luz fez-se”.

3.

É polo mesmo procedimento que se fazem existir também realidades como “O terrorismo islamista”. Com efeito, um tipo muito frequente de expressão que contém uma pressuposição existencial propagandística é ARTIGO + NOME + ADJECTIVO, do tipo “O terror-ismo islam-ista”, “O separat-ismo comun-ista”, etc., onde duas práticas ou ideologias políticas convergem numa. Reparemos, por exemplo, em

“O terrorismo islamista”.

A expressão, à margem do enunciado onde estiver contida (p. ex. “O ataque foi obra do terrorismo islamista”, ou “O ataque não foi obra do terrorismo islamista”) dá a entender a existência de uma prática política de terror que, além, é ‘islamista’, seja isto o que for. De facto, aqui há duas informações contidas numa: ‘(1) Existe o terrorismo; e (2) um atributo deste terrorismo que existe é ser islamista’.

Este procedimento retórico liga fortemente o islamismo em geral ao terrorismo. Como é assim? Porque, por uma parte, sabemos que no mundo existe também o não-terrorismo; mas a expressão não deixa a porta aberta a que existam islamistas que não sejam terroristas. O terrorismo é o conjunto maior.

Por contraste, a expressão alternativa

“O islamismo terrorista”

pressupõe algo notavelmente distinto: por uma parte, pressupõe que existe um tipo de islamismo que é terrorista; mas, a utilizar um adjectivo restritivo, deixa margem para pensar que não todo o islamismo é terrorista.

Destas duas expressões, a que melhor se ajusta ao estado do mundo actual é, obviamente, a segunda, pois não todas as pessoas “islamistas” são “terroristas”. Porém, parece claro que a propaganda política utiliza quase exclusivamente a primeira: ela faz existir antes o terrorismo do que o islamismo. Da mesma maneira, fala-se de “O terrorismo independentista” (‘um tipo de terrorismo que é independentista’), não tanto de “O independentismo terrorista” (‘um tipo de independentismo que é terrorista’, frente a outro que não é).

Ora bem, à hora de interpretar a expressão “O terrorismo islamista” e de lhe destinar um referente, a questão que o público receptor deve resolver é: Quem compõe esse grupo de terroristas que são islamistas? A evidência da experiência é que existe ‘o terror’. Outra evidência é que os islamistas são conhecidos no mundo cristão apenas quando existe o terror que alguns deles levam a cabo, e sempre em referência a ele. Portanto, a inferência a que convida esta manipulação de sentidos e de referentes é que ‘Todos os islamistas (que são os indivíduos que conhecemos quando há terror) são terroristas’, de maneira que “islamista” (como “independentista”) é um subconjunto do superconjunto que define tudo: “O Terrorismo”. Em resumo, emitir “O terrorismo islamista” implicita que ser islamista é apenas uma das possíveis manifestações de praticar o Terrorismo.

4.

Imaginemos, para continuar com a explicação do funcionamento da Propaganda, que na Galiza alguém utilizasse por escrito a expressão

“O fundamentalismo lusista”

A pressuposição aí contida dá por feita a existência de alguma (pretensa) realidade nossa. De novo, não nos interessa a oração completa em que se emitisse: tanto “O fundamentalismo lusista está a crescer” quanto “O fundamentalismo lusista não está a crescer” dariam por suposta a existência, no mundo real, (1) de uma posição ou prática social etiquetada como ‘o fundamentalismo’, e (2) de que uma manifestação desta posição social tem o atributo de ‘lusista’. (Evidentemente, ainda não sabemos o que significa “fundamentalismo” e, menos ainda, “lusista”; mas disso ocuparemo-nos depois).

Como no exemplo anterior, o subconjunto “lusista” fica portanto ligado a outros tipos dentro do superconjunto “Fundamentalismo”, tais como “O fundamentalismo islamista”, “O fundamentalismo nacionalista” ou o “O fundamentalismo independentista”. De novo, também, o elemento definidor é o substantivo: a expressão pressuposicional faz existir primeiramente o fundamentalismo, que apenas se manifesta em variantes ideológicas como ‘islamista, nacionalista, independentista, lusista’, etc. Como no caso de “O terrorismo islamista/independentista”, etc., a ideologia específica (política ou linguística) fica subordinada à construção abstracta de uma prática social, que organizaria a realidade.

De novo, como na discussão anterior, contrastemos o exemplo com a hipotética expressão também pressuposicional

“O lusismo fundamentalista”

Esta expressão pressupõe algo sem dúvida diferente: que, dentro do lusismo, existe uma tendência ou prática fundamentalista. Dá-se por suposta a existência de polo menos alguma manifestação “fundamentalista” dentro do lusismo; mas sugere-se, por contraste, a existência de um lusismo “não fundamentalista” (se eu afirmo A, estou a implicitar que existe um não-A, que posso chamar B; só um Pan-Deus escaparia a esta hidráulica).

Mas ocupemo-nos só do efeito propagandístico da expressão primeira, “O fundamentalismo lusista”. A questão, mais uma vez, é, como se adeqúa esta representação ao mundo real? Que faz o leitor da Galiza perante uma pressuposição assim?

Deixo de parte, evidentemente, o que possa significar “fundamentalismo” para alguém que utilizasse tais palavras. Nem sei, nem saberia, se esse significado não se fizesse explícito. Mas sim que sei que, na fala comum, o fundamentalismo ou integrismo está sem dúvida associado a valores negativos como fanatismo, intransigência, dogmatismo, e, por extensão, agressividade verbal e física. De facto, na discurso político propagandístico contemporâneo a ligação entre “fundamentalismo” e “terrorismo” é muito forte. Um fundamentalista é aquela pessoa que não vê sentido em discutir o significado imanente de um texto de autoridade (um código religioso, um ideário político, uma proposta normativa), pois a Palavra está por cima de qualquer debate. Um fundamentalista islamista nunca debateria, por exemplo, o próprio alvo do Islã ou o sentido do Corão. Portanto, para a consecução da sua causa, dada a inutilidade do debate, a violência pode chegar a ser um meio legítimo e até necessário. (O documentário O Poder dos Pesadelos relata como na década de 1900 o fundamentalismo fanático de alguns grupos armados islamistas foi tal que começaram a matar-se entre eles por ‘infiéis’ e traidores ao Corão: assim, o objectivo deixou de ser a salvação do mundo islâmico da corrupção ocidental, e o próprio movimento debilitou-se. Curiosamente, é precisamente aí quando uma outra Palavra, a dos ideólogos neoconservadores estadounidenses, fez nascer “Al-Qaeda”).

Em resumo: a expressão “O fundamentalismo lusista” nega a existência do lusismo fora da prática fanática fundamentalista. Por essência, o lusismo é representado apenas como um tipo de fanatismo agressivo. Como no caso anterior, diz-se sem dizer que ser lusista é apenas das manifestações de praticar o Fundamentalismo.

5.

Mas, o que acontece com a determinação do referente? Que universo de sujeitos pode constituir, no mundo real, aquele pressuposto em “O fundamentalismo lusista”? Quer dizer: que facção possível dentro do Fundamentalismo, como categoria superior, é do tipo ‘lusista’?

Consideremos, primeiro, a evidência de que existem na Galiza numerosas pessoas que, de alguma maneira ou outra, se identificam, ou identificam outras, com o ‘lusismo’ ou como ‘lusistas’. Não é a minha intenção caracterizar aqui o lusismo: a identificação ou auto-identificação pode ter a base da prática linguística (padrão escrito e/ou oral português), da aproximação cultural e linguística a Portugal ou ao resto do mundo lusófono em geral, das duas cousas, ou de outros elementos. O facto é que esta identificação de pessoas com o ‘lusismo’ existe, em clara oposição ao ‘isolacionismo’, e, às vezes, ao ‘reintegracionismo’.

A experiência é um poderoso recurso que qualquer humano tem para entender os signos. Portanto, se uma pessoa se auto-identifica como lusista, ou identifica outras como lusistas, ou entende que ela própria ou outras possam ser identificadas desde fora como “lusistas” (embora ela mesma se defina, por exemplo, como “reintegracionista”), e se ao mesmo tempo não acha por qualquer parte essas práticas próprias ou alheias “fundamentalistas” dentro do lusismo, ou mesmo se, na sua própria percepção, considera que a etiqueta “fundamentalista” só poderia ser aplicada, por metaforização, a certas palavras ou textos de toda uma história de lusismo neste país, então talvez esta pessoa só possa interpretar a expressão “O fundamentalismo lusista” como uma tentativa de Propaganda manipuladora (discurso desenhado para impedir pensar), e até como uma tentativa de insulto a todo um colectivo.

Além, igual que com “O terrorismo islamista”, esta propaganda tem a intenção de polarizar (“nós” frente a “eles”), numa visão dicotómica do mundo que só contribui para a manutenção da tensão. Por definição, a propaganda simplifica e generaliza as identidades “própria” e “alheia” para causar polarização e conflito. E amiúde, os sujeitos-alvo da propaganda política (os muçulmanos, por exemplo) sentem-se insultados não porque acreditem que os propagandistas cristãos tenham poder real para insultá-los, mas porque os cristãos, a procurarem inocular uma representação errada do mundo, estão a manifestar uma flagrante arrogância. Da mesma maneira, classificar todo o colectivo do “lusismo” como “fundamentalista” é sintoma de arrogância polo que tem de tentativa de imposição de uma dada representação do mundo.

Com efeito, para aqueles galegos que carecem de experiência mais directa com pessoas lusógrafas ou que defendem a unidade linguística, a manipuladora expressão convida a conceber toda a prática lusógrafa (‘escrever em português na Galiza’) como “fundamentalista”. A manipulação retórica consiste na construção de uma pretensa realidade, cuja existência é, precisamente, a que está em questão, mas que não se explica nem explicita a meio do debate. (Como também acontece com o ubíquo lema, sempre inexplicado, do que constitui “O terrorismo islamista”, de quem são esses terroristas, onde estão, e como agem: na campanha contra o financiamento ilegal do “terrorismo islamista” em Espanha depois da tragédia de 11 de Março de 2004, os serviços policiais espanhóis só foram capazes de intervir uns 80 euros destinados a este financiamento).

Mas a manipulação propagandística de “O fundamentalismo lusista” não fica aí. Para muitos galegos, “lusista” é termo geral para o que outros chamam “reintegracionista”, quer dizer: ‘Tudo quanto não seja a visão da RAG do galego; os da AGAL; umas pessoas que escrevem raro e dizem -çom’. Para estes galegos, toda a prática da AGAL, do MDL, da AAG-P e de outras associações, colectivos e pessoas é o mesmo: é não-galego. Na Galiza, só existiria o “galego oficial” e o “lusismo”. Portanto, para estas pessoas é possível que o lema “O fundamentalismo lusista” signifique simplesmente ‘Todos quantos não concordarem com a norma actual para o galego, isto é, desde os que escrevem cousas raras como -çom até os que escrevem em português padrão, são uma minoria fundamentalista, fanática e agressiva’.

Por isso, não andarei descaminhado se digo que o lema “O fundamentalismo lusista” encaixa perfeitamente, por exemplo, com a associação que a propaganda mediática e política faz entre o reintegracionismo e a violência (pseudo)-política que esporadicamente experimenta este país (a não policial, refiro-me). Porque todos sabemos que os que cometem esses actos violentos são “lusistas”. Nesse sentido, o lema “O fundamentalismo lusista”, por associação de significados, inclusive reforça o papel da propaganda de Estado sobre as íntimas ligações entre reintegracionismo (=”lusismo”) e “terrorismo separatista” na Galiza: é fundamentalista, fanático, dogmático, e esconde-se nas covas de Tora Bora dos locais sociais, das organizações minúsculas e sectárias, das publicações minoritárias, dos actos culturais desérticos, da palavra arcana. O “fundamentalismo lusista” tem os seus líderes clandestinos, organizados numa detalhada hierarquia militar, e cada vez mais massas ignorantes são educadas nesse fanatismo nos campos de treinamento consentidos dos foros do PGL ou de Vieiros, o novo Afeganistão.

6.

Em conclusão, estes são só alguns dos significados ideológicos da expressão “O fundamentalismo lusista”. No fundo e na forma, a expressão, se utilizada num texto público, é um ataque directo ao projecto reintegracionista de unidade da língua da Galiza, Portugal, o Brasil e outros países. A expressão é um ataque não só aos “lusistas” (sejam estes quem forem), mas ao pensamento e ao debate sério sobre a unidade linguística. É um ataque ao que representa ou deveria representar, por exemplo, este Portal Galego da Língua. Dificilmente uma expressão tal poderá ser nunca interpretada como um fragmento de diálogo sobre a questão da língua na Galiza.

Por fim, se se me permite uma metáfora inevitavelmente derivada do próprio contexto discursivo donde surge o ideologema que discuto, escrever “O fundamentalismo lusista” num contexto público formal é apenas uma explosiva manobra discursiva de fragmentação. É uma tentativa de fragmentação de um campo que, sem dúvida, manifesta dissensões internas, mas que também está unido socialmente por práticas e experiências comuns frente a outro campo social. Dizer “O fundamentalismo lusista” é uma tentativa de fragmentação de um campo social onde a gente se define de maneiras diversas, até variáveis, raramente imanentes, e onde os significados das etiquetas fundantes “lusista” e “reintegracionista”, ou de “luso-reintegracionista” ou “lusógrafo”, continuam sujeitos a negociação após muitos anos. O uso da expressão, a tentativa de fazer existir uma indefinida realidade tal na sociedade galega, é também uma tentativa de forçar o auto-posicionamento dentro do campo pretensamente representado (de “interpelação”, que diria Althusser), de divisão, de construção de minorias e facções dentro das minorias e facções: é uma tentativa de forçar a internalização de dicotomias classificatórias (“fundamentalista/não fundamentalista”, “lusista/não lusista”), num processo ad infinitum comparável em procedimento à exaustiva classificação que os discursos totalitários impõem sobre os sujeitos inferiores (a detalhada racialização da população no nazismo, por exemplo).

Evidentemente, não é desejo meu que tudo isto seja assim: nenhuma pessoa interessada em compreender a situação da língua na Galiza deveria utilizar nunca uma expressão como “O fundamentalismo lusista” para argumentar qualquer cousa séria sobre o “lusismo” ou contra ele. Mas tudo o exposto é o que o meu (limitado) conhecimento dos recursos pragmáticos da língua me diz sobre como se constrói retoricamente a Propaganda e até o insulto.

Guerra Civil, Franquismo e língua

Publicado em Pensa Galiza • O texto faz parte dum comentário longo no Foro aberto do Portal Galego da Língua

Penso que há dous argumentos comummente aceites sobre as razões para a Galiza carecer na altura de elites galegófonas poderosas comparáveis às de outros países do Estado Espanhol: 1) A penetração “de acima para abaixo” do espanhol nas classes sociais galegas desde (agharra-te!) a Idade Média: aristocracia, burguesia, classes trabalhadoras (o processo é conhecido). E 2) os efeitos mais recentes da “repressão Franquista” sobre os usos públicos das línguas-não-Espanhol do estado.

Continue reading “Guerra Civil, Franquismo e língua”

Um diálogo francamente real

Publicado em Novas da Galiza 44, 15 Julho – 15 Agosto 2006, p. 20

“Francamente vivimos mal”. “Pues realmente viviremos peor”
Da revista La Codorniz, nalgum momento dos 1970’s

-Não entendo por que sempre criticas o Rey. Estás por uma República galega?

-Pola Monarquia espanhola não estou.

-Mas à gente não lhe importa o Rey.

-A mim, sim. Eu sou gente.

-A gente tem outros problemas.

-Com Franco também.

-A gente quer o Rey.

-Também queria a Franco.

-Mas o Rey foi votado num referendo.

-Num referendo de Franco.

-Franco era um militar.

-O Rey também.

-E Franco não fora eleito polo povo.

-O Rey tampouco.

-Como? A gente votou na Constitución.

-E, antes, nas Leyes Fundamentales.

-Franco era Chefe de Estado vitalício!

-O Rey também.

-E Franco impôs o seu sucessor.

-O Rey também.

-Com Franco, todos os partidos eram ilegais.

-Com o Rey, alguns.

-E que me dizes da Ley de Represión de la Masonería y del Comunismo?

-E que me dizes da Ley de Partidos?

-Com Franco não havia autonomia.

-Com o Rey não há autodeterminação.

-Antes todos eram separatistas.

-Agora todos são terroristas.

-E a Unidad de la Patria? E os desfiles das Fuerzas Armadas?

-Pois isso, pois isso.

-E o Alzamiento?

-E a Transición?

-E o Día de la Raza franquista?

-E o Día de la Hispanidad monárquico?

-E o 18 de Julio?

-E o Día de la Constitución?

-E o discursinho de Franco em fim de ano?

-E o discursinho do Rey no Natal?

-Durante o Franquismo a emigração galega era terrível.

-Durante a Monarquia, também.

-No Franquismo, usar o galego não era um direito.

-Na Monarquia, saber o espanhol é um dever.

-Mas antes a língua própria estava reprimida!

-Agora, a escrita própria também.

-Já avonda!: De Franco não se podia falar livremente.

-Do Rey tampouco.

-Ias ao Julgado. Ao Tribunal de Orden Público.

-Agora também. À Audiencia Nacional.

-Então! Vás me dizer que são iguais??

-E tu, que são distintos?

-O de Franco era uma ditadura!

-Pois isso.

-Francamente, não te entendo…

-Eu realmente a ti sim.

Vítimas do terror

Publicado em Vieiros

O terror não consiste apenas em encontrar-se de súbito rodeado duma floresta obscena de carne humana ensanguentada e metralha. Não consiste apenas em sentir o frio do metal na caluga e aguardar, aguardar a bala eternamente. Não consiste apenas na escuridão do calabouço, esse zulo democrático, esse anti-útero do Estado. Nem na ignomínia do fato laranja, da tortura com cães, das mãos infantis talhadas com machete, das praias bombardeadas, do corredor da morte. O terror começa na mente masculina, na quotidianeidade das cozinhas, na primeira labaçada, no primeiro insulto, na violação diária da dignidade. O terror é a mais poderosa fantasia sexual dos varões que levam mísseis entre as pernas e grandes facas erectas para matar, sempre para matar, para roubar, possuir e depois matar a carne usada que já não serve.

Todo o terror é político, como a mente. A mesma mente que agora faz reconstruir o cenário do assassínio é a mente que o concebe antes, como um plano estratégico de conquista. Desde há milhares de anos, o exército mundial dos varões planifica o lento genocídio. Seduzir, induzir, enganar, atrair com palavras ou com gestos, e depois possuir, violentar, utilizar, exterminar. O corpo da mulher está em usufruto do terror. Cada vez que o terror mata uma mulher, a mesma vesânia histórica reproduz-se. O terror mata-as na casa, na rua, num deserto em guerra, num prédio desabitado, com luz, às escuras. Mata-as com gasolina, com facas, com metralha, com as mãos. O varão mata-as protegido pola lei, legitimado pola propaganda, justificado pola exaltação universal do corpo que ele não tem. A mente do varão sofre o corpo que não tem. Porque, no fundo, a mente do varão terrorista só se vê a si próprio como corpo. Todo o mundo é carne para o terror do varão.

Mas as vítimas do terror não se organizam. Não saem em brigadas de voz a encurralar o terror. Não exercem a sua força, a da metade da humanidade, em armas contra o varão, contra o terror. O terror inflecte nas suas possíveis vítimas indignação e ira, mas não induz à revolta. Porque a revolta, a revolta verdadeira, consistiria numa insurreição de classe muito mais poderosa do que todas as que a História contemplou. E a mente masculina do terror que rege o mundo não pode permiti-lo. Assim, cada poucos dias, surge a notícia do assassínio. Lemos os jornais, sentimos a náusea, a ânsia de vingança. Mas o tempo passa, o tempo fundado por um deus atroz continua a passar, enganoso, enganando a memória. O varão dosifica o terror como um preparado homeopático contra-natura. E as vítimas suportam a regulada barbárie do terror como se fosse esporádica, não um fiel produto da mente masculina.

Todo o terror é politico, como a mente. A política do terror mora nos actos mais miúdos, no sagrado seio triangular da Família, no sagrado seio dos Partidos, no seio do Trabalho e da miséria. Hostes de mulheres levam dentro corpos futuros para o prazer do terror, nova carne para o longo genocídio. Varões desenham em mapas militares, jogos eléctricos e hormonadas conversas os seus planos de conquista. De novo no Verão os números sexuais soam sem controlo. Nos televisores refulgem líquidos limpadores de corpos, de cozinhas. Mulheres continuam a esmolar trabalhos provisórios, nutrir o corpo do varão, coser o uniforme do varão, cuidar o filho do varão, sempre lavar os fluídos espessos do varão. Lustrosos generais ejectam enormes pénis de metal que sobrevoam os desertos. Estoura o sémen. E no calabouço dum prédio desabitado aparece uma outra vítima do terror.

Para o Terror, todo o mundo é carne feminina.