Publicado em Novas da Galiza 26, Janeiro 2005, p. 2
Confesso-o: há semanas começara a escrever para esta publicação um ordenado texto sobre a nação, sobre as nações, quando uma súbita doença de uma pessoa da família e um confinamento quase diário em hospitais fez-me pensar na dura evidência do corpo. Da fragilidade do corpo. Da sua essencialidade. Da sua inapelável realidade. E agora, poucas horas antes do prazo para este artigo, dias depois de corredores de hospital, de contemplar em quartos carentes infinitas tosses de anciãos, inacabáveis laios nocturnos, rostos decaídos, enormes soidades dentro da casca seca da velhice, compreendim que tudo revolve em torno do corpo, que contém a mente, que contém aquele falido artigo sobre as nações que felizmente nunca existirá. E compreendo que a política é a expressão do corpo, que a clara ligação entre um tsunami assassino e a miséria dum trabalho nos sujos arrabaldes da cidade reside na dimensão incombustível do corpo, a nossa única propriedade: a que nos forçam a oferecer como escravos, a que lanceiam os doutores e modernos druidas, a que é matada nas guerras, a que decai nas minas de carvão, nos prostíbulos onde jovens injectadas de morte são penetradas por armas de carne e depois sangram pequenos corpos clandestinos nas lixeiras. Tudo (o amor, a raiva, o trabalho, o sexo, o fruto que chamam a poesia) é a mesma massa de corpo, a mais elementar matéria que possuímos, a que eu alimento para ela alimentar os meus escritos. A humanidade é a matéria universal que é violada a diário por si própria. O corpo, casa do ser, cárcere e campo simultâneos, o corpo que limita.
Por isso, observar desde a mente do corpo o que acontece hoje no mundo só pode entristecer-nos. Algo está profundamente errado quando a mente se cega à miséria do mundo, que é simplesmente a miséria de milhares de milhões de corpos: quando a mente se nega a ver o roubo de uns corpos por outros, o tráfico de cadáveres em vida em que consiste o mundo. Alguma horrível cegueira nos invade quando não compreendemos em que consiste o espólio da força de trabalho, a soidade da pele da velhice que cheira a leite azedo, a penumbrosa prostituição como método, o brutal assassínio nas cozinhas de azeites requeimados e monótonas sopas amarelas. Dia após dia matando-nos o corpo e a mente da humanidade. Dia após dia renunciando à utopia, ferindo a massa orgânica do mundo. Eis a doença inacabável, eis o terror. E nós, cegos, silenciosos.
O Capital, fera imortal como todos os tumores, compra em grandes saldos os corpos, devora-os, devolve-os com outras formas no fumegante caldeiro das usinas, dos talheres clandestinos de lâmpadas poeirentas, no patamar de pensões esfregadas de joelhos com ressessa lixívia. O Capital compra corpos de escravos nas filas do desemprego, nas sonoras praças públicas, nas canteiras onde meninhos de raças magras batem pedras por centavos, nos gabinetes povoados de máquinas plásticas, nos campos arados por antiquíssimo ferro, nos bous que soçobram pálidos cadáveres de olhos muito abertos entre um mar de água e outro de ar. O Capital abre-nos diariamente a mente do corpo e inocula vírus como ideias. E pouco a pouco vamos pensando como Ele. E julgamos que sobrevivermos décadas assim é suficiente para chegarmos vivos até à morte. E assim ao longo da vida o corpo que nos contém vai supurando imperceptivelmente a sua dignidade, e vamos arrojando membros em cada trabalho provisório, e a nossa mente vai ficando em esqueleto de si própria. E o Capital cresce e impõe com a nossa conivência novas cirurgias. E um dia inesperado somos velhos, e nenhum humano lembra já que esse frágil resíduo de nós também faz parte do seu corpo, do corpo e da mente histórica da humanidade.
Por tudo isso, e por muito mais, é obsceno e cínico falar política sem pensarmos no corpo. Sem repararmos no diário latrocínio. Mas não resta muito tempo para ressuscitarmos. Estão a envelhecer todas as utopias. Se não resgatamos o valor do corpo e da mente que contém, se o mundo não reclama com unhas essa mínima dignidade de habitarmo-nos a nós próprios, então por favor não pidamos contas a ninguém, a nenhum dos nossos profetas de artifício. Não protestemos qualquer política, não nos sintamos legitimados a qualquer combate. Pois, se continuarmos assim, com tal docilidade, estaremos comendo-nos a nós próprios mas engrossando apenas a monstruosa anatomia do Capital. A nossa força de trabalho vive só no corpo e na mente que temos, que é um só, que é unicamente uma: provavelmente seja mais digno morrer que malvendê-los. Por isso sempre contra Espanha. Contra a ávida Europa que já espreita. E sempre contra esta forma de Galiza.