A Revolta do Capitariado

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Um espectro ronda polo mundo: o espectro do capitalismo. Todas as legiões das Forças do Trabalho, unidas em santa aliança com o Feminismo e o Ecologismo, andam à caça do capital, a quem escravizam com as suas exigências cada vez mais totalitárias: salários “dignos”, “estabilidade” laboral, vacações pagas, menos de 16 horas de trabalho por dia, “igualdade de género”, uma “idade mínima” para trabalhar… E que partido não lançou alguma vez aos seus adversários de direita ou de esquerda a alcunha de “capitalista” com intenção de infâmia? Mas já é hora de falar. Perante este acossamento, que se repete ciclicamente, o subjugado capitariado mundial (o único que possui é o grande capital!) rebela-se pouco a pouco, a funcionar em rede, como todo bom ativismo clandestino. Timidamente, as empresas mais ameaçadas pola Força de Trabalho (Boeing, Toshiba, Nintendo, Renault, Citroën) começam a reagir e são capazes de impor a purga laboral que a revolta precisa: não se pode consentir que os trabalhadores continuem a roubar. O mal chamado “despedimento” é o último tímido direito que lhe resta ao capitariado dentro do Estado Social. Talvez muitas vezes o despedimento seja só simbólico, pois historicamente a Força de Trabalho, até quando é descabeçada, regenera-se como uma peçonhenta ténia: da chamada “reserva” surgem logo milhares de militantes laborais treinados nos campos das oficinas do desemprego (verdadeiros “libertados” na sombra) que ao começo fingem aceitar salários mais baixos, só para procurarem impor a sua hegemonia de “salários dignos” quando o capitariado está mais débil. A turva tática, desenhada nas madrassas da Escola de Chicago, não por conhecida deixou de funcionar durante dous séculos. Mas desta vez o capitariado parece assumir por fim o seu primário papel histórico em criar um mundo novo totalmente desigual: De cada um, segundo a sua incapacidade; a cada um, segundo o seu poder militar.

Porque, polas imposições da Força de Trabalho, os ganhos do capitariado são cada vez menos imensos. A situação do capitariado mundial está a reverter a índices do velho colonialismo, onde o único que possuía eram uns milhões de hectares, umas matérias primas, algo de ouro, umas empresas téxteis, e uns quantos escravos. A japonesa Nintendo, por exemplo, declara ter tantas perdas nos seus ganhos (“pérdidas en sus ganancias”, informa o jornal espanhol Público) que, perante a angústia, lutou até conseguir reduzir o sangrante esbanjamento que implica pagar a mão de obra. E, igual que nela, em Boeing, em Renault, nas empresas mais ativas que sofrem o acossamento, por fim parece ter surgido a consciência de que o salário é um roubo ao Capital, legitimado polo Estado. Cada mês, ou cada quinzena, ou cada dia, milhões de “trabalhadores”, “operários” ou outros eufemismos que ocultam o seu papel estrutural de domínio, assaltam as arcas das empresas e levam para a casa centenas de milhões de euros em soldos como se até a isso tivessem direito, amparados nas “constituições democráticas” e nos “convénios coletivos”. O salário atual rompe o equilíbrio da lógica da empresa, que é o lucro sem mesura. É certo que nem o mais revolucionário capitalista nega que alguma forma de salário deva existir. Mas, como explicou Xram em Sad Latipak, o salário no Estado Social apropria vilmente o mais-valor que pertence ao capitariado polo seu hercúleo esforço de transformar o nada do papel-moeda falso em extrema opulência para uns poucos.

Mas a vanguarda do capitariado está a reagir, a exercer valentemente o seu direito conquistado ao despedimento coletivo, até na versão selvagem e ilegal, na melhor tradição combativa prévia à domesticação que sofreram as Confederações de Empresários depois da Segunda Guerra. Maciçamente, com o despedimento, o capitariado começa a impor o seu inalienável direito natural a que os seus ganhos não sejam roubados polo injusto preço do trabalho. Hoje talvez seja só uma grande empresa quem ouse, mas amanhã serão duas, depois dez, cem, dez mil, e em pouco tempo todo o capitariado mundial, desde o mais consciente até o pequeno capitalista que sofre alienação ideológica de classe e acredita ser “pequeno comerciante”, será capaz de recuperar o que lhe pertence e estabelecer uma nova ordem, sempre apoiando-se inteligentemente no próprio aparelho do Estado Social que o oprime. Como escreveu Nestor Kohan em “Icsmarg y Xram: hegemonía y poder en la teoría xramista“:

“Mesmo dando conta de todas as suas limitações, devemos reconhecer ao Manifesto Capitalista o facto de destacar na sua época (no meio de um conflito de classe europeu, depois mundializado) que o Estado jamais é neutral, e que portanto o capitariado revolucionário não pode pretender utilizá-lo ‘com outros fins’… mas deixando-o intacto“.

Porque, se foi o Estado Social que criou esta inaturável situação para o capitariado, que mantenha ele as legiões de “trabalhadores” desempregados, e que inunde as arcas do Capital com papel-moeda falso. Que pague o corrupto Estado o que deve, e quebre de vez!

O capitariado não se rebaixa a dissimular as suas opiniões e os seus fins. Proclama abertamente que os seus objetivos só podem ser alcançados pola derrubada violenta de toda a ordem social existente. Que as classes populares tremam à ideia duma revolta capitária! O capitariado já nada tem a perder: tem um mundo a ganhar.

Língua, Mercado e liberdade

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1. A eliminação do coletivo

Num texto de 1998, Pierre Bourdieu (“L’essence du néolibéralisme”, Le Monde Diplomatique, Março 1998; acesso na Internet: http://www.monde-diplomatique.fr/1998/03/BOURDIEU/10167 ; existem traduções portuguesas como a de Informação Alternativa, http://www.infoalternativa.org/teoria/teo007.htm) lembra-nos o principal procedimento do liberalismo moderno (o duvidosamente chamado “neoliberalismo”, isto é, o ultraliberalismo que quer laminar as “conquistas” sociais e laborais) na sua procura da Utopia do Mercado: a extirpação gradual de todo o coletivo, amiúde com a rendida conivência das forças do progresso. A recente ofensiva discursiva de um setor do liberalismo programático español contra as políticas e legislações orientadas à manutenção (também programática) das línguas “españolas” não castelhanas do Reino pode ser examinada dentro deste contexto. Os discursos do fenómeno Galicia Bilingüe, o Manifiesto por la lengua común –com as aderências que obteve na Galiza– ou, sobretudo, o mais recente relatório do Club Financiero Vigo (CFV) exibem uma clara base argumental política compartilhada. Destes, o relatório do CFV, polo prestígio da sua fonte e polo debate que está a suscitar, merece ser comentado como paradigmático. O documento, com data 2 Setembro 2008, é editado em galego e em español, e intitula-se Política lingüística: Unha visión empresarial (Cadernos para o Debate 12) / Política lingüística: Una visión empresarial (Cuadernos para el Debate 12). Porém, na web do CFV na altura (9 Setembro) só está disponibilizada em PDF a versão em español, que é, consequentemente, a que utilizarei: http://www.clubfinancierovigo.com/archivos/archivo_333_2481.pdf. / http://www.clubfinancierovigo.com/cuaderno.asp?id=333&lang=es .

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O Discurso Porquénotecallas

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Juan Carlos de Borbón y Borbón consagrou definitivamente para a política española o Discurso Porquénotecallas, e os responsáveis jornais riram-lhe a piada: se não gosto do que dizes, berro-che que cales, porque o teu é terrorismo; mas se tu não gostas do que digo eu e berras-me, o teu é terrorismo. Em inglês, a nossa segunda língua depois do español, isto chama-se “a lose-lose situation”: ou perdes, ou perdes. Vamos, como a Inquisición, mas em moderno politono.

O alcaide de Lalimgrado Xosé Crespo pratica o Discurso Porquénotecallas contra os socialistas. Aprendeu-no bem de Fraga Iribarne, do Rey Español-Nascido-Em-Roma (mas um imigrante residente não pode votar), e daquele ínclito “ariete” Xaime Pita que no Parlamento chamava os do Bloco (sim, os do Bloco) “jarraiciños” porque diziam NOM – NOM – NOM e “próprio”. Dizer “próprio” era a essência da estrangeirice, e requeria um urgente Porquénotecallas, estrangeiro!, que não gosto do que dizes. Vamos, como faz a macro-rede AGIR (dizem os médios), mas ao revês, que sim que vale.

Quando os neo-nazis batem na Fundaçom Artábria cada vários meses, por não perderem a prática e a tradição, Garzón e Grande-Marlaska continuam a jogar ao dominó. Recebem um politono no busca: Eh, que há feridos. Bah, são cousas de meninhos. Já sabemos que os neo-nazis não têm ideologia, são apenas gamberros. Sempre foram assim. Não são uma ameaça à disgregação social de España. Não cortam España horizontalmente não, por razão de classe, cor da pele e língua. Não praticam a violência não, mas o bonito Discurso Porquénotecallas, só que um pouco mais duro empiricamente. Desde que seja rojigualda, tudo é constitucional.

Mas AGIR, essa rede islâmica controlada desde as sombras por Darth Vader, quer impor um novo Cosova nos férteis campos que vão de Lalimgrado até à Galiza Irredenta da Naçom As Portelas, e desde a Corunha “sí, sin la ele”, como diz na SER o experto sociolinguista César Antonio Moína (sin la ele) até à Raia Seca onde muda automaticamente a cor da erva no nosso mapa escolar de hilillos de plastilina. Todos os membros de AGIR levam um mapa irredento inscrito nos miolos polos laboratórios de Fidel, o ex-Comandante. Mas os Peones Negros e Losantos não levam mapa nenhum nos neurónios não: levam só a essência platónica e imortal da Liberdade, que resulta que se encarnou terrenalmente no Estado Español, que se lhe vai fazer, situado providencialmente por Dios en el centro del Universo.

Ai, o Discurso Porquénotecallas! Ele produz monstros judiciais, e faz gastar muita, muita tinta de jornais que poderia ser melhor empregada em lusificar os topónimos do Povo. Porque o Discurso Porquénotecallas só tem sempre uma direcção: a minha, que sou o que mando, sou o mando e tenho o mando do politono. Vou-che chimpar os dentes, vou-che escachar uma taça nos focinhos, vou-che meter uma cortante carta polo cu, mas não me chames fascista, nem violento, nem terrorista, que invoco aos meus garridos amigos de azul, e aos da toga e o dominó. E os sociatas? Não, esses não vão ir chorar à Fiscalia, estão domadinhos. Já o disse Clinton I, o verdadeiro: São as Eleições, estúpido. Mas o teu, extraparlamentar mocinho estrangeiro, é puro terrorismo.

Todos somos La Mesita

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Eu pensei que o Entrudo já acabara. Mas este passado viernes – sexta-feira continuou. Disque cada semana em diante até o Grande(marlaska) Circo Eleitoral de Março se vai manifestar na cidade de ALa Coruña (si no hay fúbol) uma pequeninha mesa de duas patas chamada Mesa Por La Libertad Lingüística En Español, Que No La Tenemos, Caray, junto ao fálico obelisco cantoniano (anotem nas suas agendas), na ímproba defesa do seu dialecto español ameaçado polo regime sozial-nazionalista. Sim, digo bem: o regime das galeskolas de metralheta, fular palestiniano e mapas com as câmaras de gás preparadas para o extermínio idiomático, o da Polícia Linguística Xunteira que vai zorregando a eito todo quanto bom Ciudadano responde livremente em dialecto español com um “Buenos Días Nos Dé Dios” a um repelente “Bom dia”, o sanguinário regime calcado de Saddam, Chaves e Idi Amin Dadá (o que comia corações crus de misionários españóis). Pois, ¡pardiez!, ¡voto a bríos!, ¡cuán largo me lo fiáis!, esse hitleriano regime de terror linguístico nazional-sozialista-islamo-massónico está a impor a mais brutal das repressões sobre o dialecto español, inextinguível pátria nasal palatal de El Manco de Cervantes, do pródigo portento y Fénix de las Letras de Lope, da ninfómana mística Santa Teresa, de El Cid Campeador Que Ganó Una Batalla Después De Muerto, do mataíndios Pizarro, do escravista Colón Ariel, da suja Isabel la Católica que não lavava com Colón Ariel a camisa que fedia a doma y castración, do Carlos V esse que desbanjava o ouro dos indiecitos, do pornócrata de Alfonso XIII que igual encomendava pélis porcas que colocava um ditador na poltroa, do Pelayo da virgencita virgencita que se me pongan las dos manos igual, que inauguró o principado de Asturias e o Imperio Porquénotecallas de Bourbon, e, que caray, até do livremente bilingue Francisco Franco Bahamonde (escribía versos galegos en la intimidad) que com o extraordinário filme Raza elevou a cultura cinematográfica española à altura do Potemkin, e, enfim, de tantas outras lumbreras da história e da cultura em Dialecto Español Universal.

E é que eu compreendo ternamente a Mesa Por La Absoluta Libertaz Lingüística Achuchada, Qué Córcholis: Eles e elas sofrem, sofrem enormemente de ver o deterioro das asas do hispanófono aguilucho dessecado que preside os seus televisores General Eléctrica ESPAÑOLA, enquanto já nem há programas de sábado noche no seu dialecto, nem se encontra um só jornal de goles que não venha nesse mixórdio lusista do galego xunteiro, nem os seus filhos e filhas podem já brincar na creche (ui, jugar en la guardería) no primordial dialecto que durante séculos herdaram com íntimo amor filial desde o entranhável Pedro el Cruel de Castilla até Carrero Blanco. Eu poderia contar milhenta casos de membros da Mesa En Favor de La Completa Libertad Idiomática En Esta Esquiniña Verde Amenazada que perderam os postos de trabalho por dizerem em exercício da liberdade de expressão “¿Qué se le ofrece, buen caballero?”, que perderam bolsas de estudos por escreverem livremente nas instâncias os nomes patrióticos essenciais de La Coruña, El Orense, Santiago del CampoEstrella ou El Carbajito, que pola sua incombustível lealdade a España perderam amores, ilusões, esperanças aguirres dum futuro melhor, e que perderam até anos de liberdade nas masmorras ocultas de São Caetano onde Marisol López e Ángel Quintana, vestidos de sado-maso, latigam os valerosos hispanófonos resistentes com o hino de Arturo Pondal enrolado num vergalho de touro bravo do Courel.

E É QUE NÃO SE PODE TOLERAR! Una cosa es la democracia e outra esta euskadización do galaico terruño, esta messiânica intifada contra o dialecto universal de España. Lembremos o poema de Brecht, que não era de Brecht mas que para o caso quadra bem: “Primero va y resulta que vinieron a por los demócratas / y yo miré pa otro lao…” A repressão contra o dialecto español está chegando a limites tão insuportáveis para os Ciudadanos de Bien que todo silêncio perante o españicídio é cúmplice. E amanhã, quando as esquálidas crianças dos español-falantes gaseados esmolem côdeas de pão barolento no gueto electrificado da rua San Andrés, vigiado por babeantes cães palheiros de estrela vermelha marcada a ferro no lombo, quando os infantes ocultem nos faiados os seus Diarios de Ana España para que a história e La Santísima Trinidad os recuperem, quando já nada reste do secular dialecto patrio nas riquiñas rúas chuviosas de nuestro amado lar, nas rústicas leiras onde se cultiva el nutritivo millo y el versátil greliño, nesta tierriña de muñeiras, mexilóns y encaise de Camariñas que yo también amo, qué caray, muchos “progres” y “demócratas” de-pa-co-ti-lla pagos polo ouro de Teerão lembrarão com vergonha a sua imperdoável conivência com o linguicídio que hoje nos invade.

Pero ainda teñemos tiempo, camaradas. Não sejamos cúmplices do extermínio! ¡TODOS SOMOS LA MESITA POR LA LIBERTAZ LINGÜÍSTICA AMENAZADA! ¡Todos (ui, e todas) ao Obelisco de La A Coruña daqui às eleições! ¡Cada Viernes – Venres – Sexta-Feira, con calzoncillos y bragas rojigualdas! Como em Fonteovexúa, ¡Todos a úa!

E o último domingo, pardiez, a votar polos bispos.

O enfrentamento dos salva-pátrias

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Não serei eu quem defenda a organização Batasuna, cujos elementos de messianismo ideológico estão muito longe do meu ideário político, mesmo sendo consciente como sou da distorção sistemática a que as suas palavras e ideias estão submetidas polo império mediático español. Mas, se de abominar dos messianismos se trata, não esqueçamos nunca a postura e os actos da Audiencia Nacional deste Reino, com figuras como Baltasar Garzón ou Fernando Grande-Marlaska que têm tanto poder efectivo em remexerem o ambiente social e as nossas próprias mentes com a aplicação, sempre política, das leis do Reino. O auto de Baltasar Garzón para o encarceramento dos líderes de Batasuna, tal como o conheço pola edição impressa de EL PAÍS, é um exercício de uma natureza tão ricamente visionária que nos ilumina para sempre (quer dizer, até que mudem as directrizes policiais) o panorama próximo da violência (a de Estado e a outra) neste Reino de salva-pátrias. Porque, quando começavam a cheirar a cinza velha (como após uma adolescente fogueira) as imagens de Juan Carlos de Borbón, Garzón faz-nos gozar com mais uma historieta, com um texto escrito na mais peculiar gramática da língua do império, e com o recorrente leit-motiv jurídico e quase-literário de que Batasuna se reunia para “abordar el enfrentamiento”. Certo, diz EL PAÍS que esta frase está escrita a mão nas margens dum documento interno de Batasuna apanhado pola polícia na reunião. Mas esta frase é motivo para chamar Batasuna ETA, ou ETA Batasuna, ou para redesenhar a geometria dos “entornos” políticos (se se lê o auto com atenção), onde umas vezes Batasuna é ETA e portanto está dentro de ETA, outras está fora mas é de dentro, e ainda outras (quando procura a paz) está dentro mas quer estar fora, e assim por diante. Poupo aos leitores o desastre cognitivo de pretender compreender esta geometria imposta pola Audiencia Nacional e pola Lei de Partidos, uma nova geometria moderna que tão proveitosa resultou sempre para os Estados militares definirem à vontade a identidade delituosa dos sujeitos (veja-se, sem ir mais longe, a ordem pós-euclidiana do “Eixo do Mal”, a criação discursiva de “Al-Qaeda”, o “terrorismo internacional”, e outras ameaçantes construções fantasmagóricas que o jornalista Adam Curtis se encarrega de revelar no documentário The Power of Nightmares).

Não é preciso ser muito inteligente para imaginar o que se esconde após uma expressão política como “abordar o enfrentamento”. Duvido poderosamente, por exemplo, que as diversas instâncias do Estado e dos partidos não concebessem a situação política depois da bomba massiva de ETA em Dezembro de 2006 como uma nova fase marcada polo confronto. Os representantes políticos voltaram a empregar escoltas, reforçaram-se as medidas de auto-defesa, reanimou-se a violência jurídica, e a tensão voltou a notar-se na vida e sobretudo nos catequéticos jornais españóis que aos súbditos do Reino nos amargam o chá e a cálida torrada da manhã. Quem recomeçou essa nova fase e esse tipo de enfrentamento, com uma bomba brutal que assassinou duas pessoas? Evidentemente, a ETA. Mas, colocou esta bomba Batasuna ou a sua “cúpula”, curioso elemento arquitectónico dos partidos que remete para um templo em lugar de para uma rede de pessoas? Se Batasuna o tivesse feito, toda a Audiencia Nacional, a Fiscalia do Reino, os governos español, basco e madrileno e o Chefe do Estado deveriam estar todos na cadeia por flagrante e cúmplice negligência por deixar Batasuna livre. Porque, se reunir-se para “abordar o enfrentamento” é uma actividade “presuntamente delituosa”, mais presuntamente delituoso será desmembrar duas pessoas com uma explosão que esnaquiza um enorme estacionamento. Em resumo, se Batasuna é ETA, todos os seus membros, do começo até ao final, para a cadeia. E, se não é, a calar e a deixar-se de interesseiras hipocrisias e de linguagem perversa.

Portanto, calculo que concordamos que nem Batasuna nem o Estado Español são os autores nem os culpáveis da bomba da ETA que reiniciou o “enfrentamento”. Mas as novas condições políticas, herdadas dum patético “processo” encaminhado por parte do Estado sobretudo para inocular ainda mais confusão mental numa massa de súbditos já descerebrados, inauguraram um tipo de “enfrentamento” do qual não pode escapar nenhum dos dous agentes salva-pátrias desta guerra: os braços do Estado, e a patriótica (“abertzale” é uma desnecessária dissimulação) esquerda basca. Seria ridículo negar que ambos rivais vêem a situação em termos de confronto jurídico, político, e físico, quer dizer, numa relação de tensão definida pola violência: ataques físicos e verbais, privação ou coerção da liberdade doutrem, violação de direitos, exploração da propaganda como método, etc. etc.

Dificilmente a constatação deste confronto, e a vontade duma organização como Batasuna de “abordá-lo”, se pode ver como um argumento de peso como indício delituoso para uma mente racional, em ausência de detalhes explícitos na planificação do enfrentamento. Num enlamado totum revolutum que lembra mais uma fatwa que um texto jurídico, o auto de Garzón coloca lado a lado o “enfrentamento” com, por exemplo, a táctica política de Batasuna de aproveitar as mobilizações contra o AVE. E o tremendista órgão da direita intervencionista EL PAÍS, que já não sabe que hollywoodiano cabeçalho colocar agora que o Público regala DVDs, eleva ao cubo o poder evocador do “enfrentamento” reiterando-o várias vezes na notícia.

Os tristes gudáris de Batasuna, a desafiarem a lei dum Estado em que não acreditam, reuniram-se com suficiente luz: foram dous vizinhos da vila quem solicitaram o local do concelho para a reunião. Talvez se solicitou com qualquer escusa, nem sei, nem tem importância, mas calculo que como acto político da patriótica esquerda basca. A “cúpula” de Batasuna não se reuniu nos montes ou em majestáticos zulos habitacionais como os que, diz a lenda, tinha Ali-Babá-Ben-Laden nas montanhas de Tora-Bora, nem se reuniu num desses remotos e exóticos caseríos de petrúcios a que a imaginaria española nos tem habituados como campos de treinamento onde –pontifica a porta-voz do dogma da Transición Victoria Prego– se forjou a aliança de civilizações católico-etarra. Estranha maneira a da “cúpula” de Batasuna de pertencer a ETA para planificar o enfrentamento: num local dum concelho basco.

É difícil entrar nos mundos imaginários respectivos em que combatem estes dous messianismos: o do Reino de España, e o dos gudáris bascos. Devem ser territórios nacionais míticos habitados por tantos seres fabulosos e alimárias tolkenianas que a zoologia e a teratologia do nacionalismo precisariam ser reescritas. Mas um pobre súbdito como eu reage hoje assim, com a fúria das palavras, porque está canso de ser sacudido dia sim e dia também polas hostes habituais de salva-pátrias: os que levam na mão as leis do Reino Borbónico como a Lei de Deus que a invenção do “pueblo español” votou (dizem) em constituições e eleições e outros ritos de sujeição masoquista, e os que levam na mão e nos papéis uma ideologia também redentora (isto é, também nacionalista) composta apenas de quatro palavras primitivas, quatro noções sobre o que é ser pessoa, sobre o que é a acção política, sobre o que sejam as formas das identidades sociais. As mentes de todos os salva-pátrias são, felizmente, inescrutáveis. Mas, infelizmente, ainda projectam sobre nós, dia após dia, cada manhã, quando com toda a burguesa ingenuidade queremos abordar o habitual enfrentamento gastronómico com um chá e uma cálida torrada com manteiga, a sombra dum mundo repulsivamente repetitivo, circular, cansativo, brutalmente elementar como a esquálida mente e os actos de todos os guerreiros.

Queimando espero…- Semiótica pura

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Tenho muita curiosidade por saber o que se pode queimar ou não em público no Reino. O governo español, em representação do Rey (isto é, do Estado) deveria meter na SER uma dessas cunhas publicitárias explicando os males eternos da queima de papel, como os da droga ou do tabaco: Quemar Mata… O Te Enchirona. No Chamusques Tu Futuro.

Seica um papelinho com a figura do Rey não pode ser queimado porque ele é o “símbolo de la unidad y la permanencia del Estado” (art. 56 da Constitución Española). A bandeira española também não pode ser queimada: lembrem o encarceramento que sofreu Francisco Rodríguez, hoje deputado do BNG em Madrid, acusado de ter queimado uma vistosa rojigualda aquando da chegada dos restos de Castelao a Compostela em 1984. Num curioso programa de televisão anos depois, cujo simples título daria para uma análise de tese (“Queremos saber: ¿Por qué algunos catalanes, vascos y gallegos no se sienten españoles?”), Francisco Rodríguez respondeu à entrevistadora Mercedes Milá (hoje algo degradada jornalisticamente) que ele nunca queimara a bandeira. Pois má sorte! De ter estado na cadeia, polo menos ter tido o prazer!

Mas, pergunto-me eu, então a bandeira galega actual, tampouco pode ser queimada? De que tamanho sim e de que tamanho não? Em que milímetro começa o simbolismo? Eu, por exemplo, acabo de queimar uma miniatura de papel da vistosa branca-azul no meu gabinete: os seus restos estão no cinzeiro (fiz foto no telemóvel). E um exemplar do Estatuto de Autonomia, pode ser queimado? E um CD pirata do hino galego flamenco de Arturo Pondal (outro símbolo)? Haveria que fazer a prova, diante das câmaras da TVG, em aberto, durante uma manifestação independentista (queimar a galega, digo, a outra já está mais visto).

Queimando espero... - Semiótica pura

De maneira que queimar certos símbolos é ilegal, não porque contamine (Greenpeace não abriu a boca), mas porque a pessoa incineradora manifesta que não compartilha o valor ideológico desse símbolo, ou opõe-se à consagração jurídica desse valor. Então essa opinião distinta ao dogma torna-se num oitocentista “ultraje” (teríades que tunear a língua española um pouco, chachos). A leitura dos factos é assim singela. No entanto, cada fim de semana bêbedos jovens urbanos muito democratas queimam papeleiras plásticas por apolítico prazer, e a Audiencia Nacional (sic) nem se inteira.

Mas, vamos ver (pergunto-me eu): O que acontece se um apenas declara publicamente que queima algo, mas não o faz? O que significa isto? Por exemplo: “Pola presente queimo uma imagem de Juan Carlos de Borbón como símbolo da unidade e da permanência do Reino de España, projecto político que detesto”.

Não, não o fiz bem, não ardeu de todo (com suficiente ênfase). Terei que repeti-lo: “Pola presente queimo uma imagem de Juan Carlos de Borbón como símbolo da unidade e da permanência do Reino de España, projecto político que detesto”. Assim melhor.

Uf, isto é semiótica pura. A repetição exacta indica que a oração não foi gerada aleatoriamente por um vírus de trípi do meu processador WordPerfect. As aspas distanciam-me das palavras, de maneira que eu posso argumentar que citei uma hipotética declaração, mas não o declarei de facto (bom, em privado sim, para mim próprio: é delito?). E, ainda por cima, dizendo que declaro que queimo um ícone, estou a queimar o valor dum símbolo? Tremendo sarilho! Venham Pierce e Morris (semiólogos da Audiencia Nacional, sic) a interpretá-lo; eu afurrico.

Em resumo: Quantas vezes se podem dizer cousas assim sem que a Audiencia Nacional (sic) venha pedir o DNI? Quantas vezes pode uma pessoa manifestar uma opinião política antes de que seja “ultraje”? Porque, porventura alguma autoridade do Reino de España leu a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Há tradução española.

Enfim, queimando espero / a Audiencia que mais quero. É claro que a Coroa cambaleia. Resta-lhe menos.

A Grande Miragem circular

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Periodicamente, surgem à palestra pública das minorias que lêem, e que lêem sobre cultura, notícias em torno das afrentas ao “galego”. A pseudo-polémica social alimenta a incapacidade histórica colectiva de articular-se em verdadeira in-dependência (que é etimologicamente sinónimo de autonomia), se é que na realidade a Galiza como invento alguma vez a teve, e não foi, em troca, o germolo “espiritual” e social de España, desde o mito do patriótico Apóstolo até ao actual Regime das Autonomias, passando pola política galeguista de Fraga Iribarne ou polo filme Raza de Francisco Franco. Só este papel explica, por exemplo, que a Matriarca literária duma “nação oprimida” (Rosalia de Castro), a mesma que o galeguismo recuperou como símbolo nos anos 1960, se estudasse com toda naturalidade nos livros de texto oficiais da fascista “nação opressora”. So este papel explica que o mesmo dia dum Apóstolo Patrono de España seja o dia duma Pátria galega.

Desde polo menos os anos 1970, as hemerotecas e os arquivos sonoros e audiovisuais estão cheios de documentos de pessoas visíveis no mundo cultural galego que testemunham uma dupla trajectória de significados, aparentemente contraditória mas perfeitamente compatível: (1) por uma parte, o laio pola “perda” do galego e, polo tanto, os protestos contra as barbaridades jurídicas e políticas de España (leis recorridas ou impugnadas, declarações monstruosas, políticas linguísticas laminadoras); e por outra, (2) a confiança, porém, de que o caminho da “normalización lingüística” é o adequado, de que há signos positivos na literatura, nas artes, na cultura em geral, no ensino, até na empresa… A circular auto-justificação perante esta aparente contradição é fácil: Precisamente porque o caminho está bem traçado (discurso 2), dão-se os ataques de España (discurso 1); e precisamente porque os ataques se dão (discurso 1), devemos continuar no caminho bem traçado (discurso 2). E esta lógica absurda auto-alimenta-se, num eterno solipsismo característico da cultura galega desde tempo imemorial. Um parece estar a ler sempre os mesmos textos, as mesmas diatribes e protestos, as mesmas louvanças e proclamas, num contexto social invariável, imóvel e por isso terrivelmente pacífico. Assistimos, verdadeiramente, ao triunfo do ideal centralista da Galiza como uma Arcádia (espanhola mas galega, sem dúvida; até muito galega, como deve ser: espanholamente galega) onde nada de relevância social acontece (só lumes, vacas loucas, terramotos e piche) e, quando decerto acontece (como de Fevereiro a Julho de 1936), massacra-se exemplarmente com metralha, e pronto. A morte, não as letras: trata-se da morte.

Mas pouca gente parece parar a pensar que, se esta é a dinâmica do campo cultural galego excepto no breve parêntese prévio ao Massacre Galego também chamado Guerra Espanhola, e se colectivamente as elites não mudam de rumo, talvez seja porque algo está errado na concepção canónica do conflito nacional, “España contra Galiza”, que é a que o nacionalismo galego apresenta como mitologia explicativa final de todos os nossos males. Quando as próprias elites galegas geram tanto as políticas “em favor” do galego (um irrealizável, descabido, hipócrita e portanto unânime Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega, por exemplo) quanto os instrumentos “em contra” do galego (as nomeações conflituosas, as cedências, as políticas marginadoras de parte do campo cultural galego), talvez a explicação mágica seja que, além das suas vontades políticas sustidas por um imaginário ideológico herdeiro do pretenso galeguismo de resistência durante o Franquismo, na verdade o seu papel estrutural não seja outro do que a definitiva construção nacional de España (sim, com Eñe, com esse profundo eñe subsidiado no que pensam sempre os políticos e as editoras). Evidentemente, estas elites não estão a construir a España de Pelayo ou de José Antonio, mas a España galega originada no mito do Apóstolo biface e mantida ano após ano nos Dias da Pátria onde se proclama com toda a impunidade a necessidade do uso do galego enfrente dum arcebispo, da representação do Reino de España e dos seus exércitos.

Porque, não nos enganemos, as três forças políticas parlamentares na Galiza na altura são herdeiras do galeguismo da pós-guerra. O abano ideológico do galeguismo da pós-guerra era amplo, e está todo representado, com contadas excepções, em sectores dos seus sucessores naturais do BNG, o PSdeG-PSOE, e o PP de Galicia. Não há qualquer cousa de extraordinário nisto, porque, por definição, a perpetuação no poder acarreta a exclusão sistemática –até por vias dum regulamento eleitoral aberrante desde qualquer concepção democrática racional– dos rivais potenciais, isto é (por exemplo), do in-dependentismo no seu sentido mais frontal: o da auto-nomia na gestão (quer dizer, a auto-gestão) dos recursos económicos, culturais e simbólicos, na organização social e territorial, no estabelecimento dum quadro de relações laborais emancipador, na implementação, simplesmente, da liberdade social na medida em que esta pode ter lugar dentro dum Estado.

O que pode gerar quanto à língua, portanto, uma classe de elite galeguista que continua sem ver o seu papel na construção final de España? Mais do mesmo. O que se pode esperar de uma classe política que é capaz de impor legislação progressiva em matéria urbanística ou de direitos das mulheres mas refusa entrar nos salões de aula “concertados” onde professorado e estudantes urbanos escacham a rir do “galego” enquanto os curas e monjas destas madrassas recebem mensalmente os seus quartinhos da Xunta pagos por nós? O que se pode esperar dum governo público que, por enquanto, ainda hoje, numa cultura amplamente subsidiada, continua a negar com toda a impunidade uns miseráveis euros a modestas publicações e grupos culturais activistas por mor dos “ç” ou dos “ão”, como se estas letras fossem as inimigas da Patria (sem acento), como aconteceu à revista Novas da Galiza? Pode-se esperar, singelamente, mais do mesmo: um incessante e cansativo tira-puxa dialéctico, uma perda geral de energias na ilusão de diálogo, uma constante reavaliação da “correlação de forças” entre um e outro campos linguísticos, e, em resumo, uma perpetuação da Grande Miragem da língua, enquanto cada decreto da Xunta continua a levar a assinatura de Juan Carlos I de Borbón e o arcebispo católico de España dialoga ritualmente com a Presidenta do Parlamento galego e não se encontra um livro português de cultura geral nas bibliotecas. O que se pode esperar, em definitivo, da política linguística dum pedaço do governo español (porque a Xunta é España) que em 30 anos, com todo o aparelho mediático e institucional, com todo o dinheiro e todos os subsídios, foi incapaz (se é que o procurava) de ensinar até a ortografia española do galego nas escolas, isto é, a mesma lógica ortográfica da língua socialmente dominante?

Não sei o que se pode esperar, mas sei o que não se pode esperar: Nunca uma instituição espanhola vai normalizar Galiza como Galiza. Normalizará Galiza como “España” exclusivamente e exclusoramente, até ao ponto de que antes ou depois Galiza deixará de ser Galiza em galego, se continua esperando a salvação das instituições espanholas. Não o disse eu (eu quase nunca digo nada novo: apenas observo e documento o que leio). Disse-o António Gil Hernández em 1991, por exemplo. E já choveu. E continuará a chover sobre esta formosa e vacacional Arcádia, tangallegacomoelmarisco.

O “reintegracionismo” como Pátria

Publicado no Portal Galego da Língua

Quando não se tem nação, porque o que ela poderia ser foi apropriado por outra invenção nacional ou nunca existiu, os homens tristes do mundo (e alguma mulher) constroem as suas Pátrias pequenas onde aprendem os protocolos da honra, do poder, da antiguidade. São estruturas onde se reproduzem os princípios hierárquicos, petruciais, onde os mais novos se socializam na lealdade (de pouco a pouco, ou se não poderia resultar uma Revolução), onde se vai escrevendo nos textos e nos actos uma emotiva mitologia interna, onde se aprendem os mecanismos hagiográficos e os dispositivos da estigmatização. Nos interstícios do mundo real, primeiro na vigorante clandestinidade e depois na auto-assumida heterodoxia, década após década, as estruturas que são Pátrias crescem e decrescem intermitentemente como uma ténia que perde elos por um lado e ganha-os por outro, constantemente mantendo só a massa crítica necessária para a subsistência robinsoniana, como um escolhido mangado de incompreendidos heróis na ilha social, arrodeados de tubarões (alguns reais, outros imaginários), a improvisarem um refúgio comum sem sentido, pois quando o telhado já está montado e as pessoas mais jovens e fortes poderiam subir para iniciar o segundo andar, os mais velhos, herdeiros e custódios dos molhados Planos Originais, desmontam o telhado e voltam a começar. Para que no fundo o refúgio nunca mude e seja sempre mimese de si próprio. Durante décadas. Indefinidamente.

Quando na vida real não se desfruta desse abcesso mental que é a nação, os homens e as mulheres tristes constroem maquetas de Pátrias onde por qualquer motivo se expulsam os amigos, se denegam outras possíveis amizades, se retira o saúdo. Nestas Pátrias qualquer crítica converte-se num ataque aos princípios fundadores, qualquer parabém é imediatamente sequestrado como compromisso de incombustível lealdade, e surgem como hordas os vocabulários da Traição, da Destruição, dos Inimigos, os apelos à Unidade, o terrível, o inexprimível medo à diversidade, ao confronto, a ter que sentar-se frente a frente, no mesmo concílio, com quem sabes que aborrecerias pensar de igual modo, mas que tens que escutá-lo se queres que te escutem. Então surgem as nítidas Facções, os Partidos, as fechadas partidas de caça: surge a conspiração como princípio organizativo e portanto a psicose como método, a percepção de que todo mundo conspira sempre contra tudo e contra todo mundo, mesmo quando não conspira. Nas Pátrias, a rareza de não conspirar considera-se uma conspiração. E surgem as metáforas dos barcos que afundem sem remador, ou, polo contrário, das fálicas naves armadas que por fim apontam para um horizonte de vários oceanos, uma enorme Língua de mar ou de pequena terrinha que condensa o sentido dessa Pátria e onde na realidade se afogam todas as misérias. Quando há uma Pátria que os petrúcios ou os seus aprendizes proclamam que afunde, surgem sempre os desejos de que nasça um salvapátrias.

Nestas Pátrias, como nas verdadeiras, nunca há lugar para agir depois da sua fundação. Porque a Pátria já tem uma longa idade, uma mitologia de volumosas biografias, que é basicamente o que a constitui. Mais nada a constitui. A Pátria pode ter um tema fundador, mas este é apenas uma escusa. Os mais novos patriotas nunca poderão fazer parte da aborrecível cúpula. Porque a verdadeira razão de ser da Pátria não é a Pátria, mas a cúpula, e esta já está sempre ocupada por si própria. Os mais velhos patriotas que chegaram tarde, tampouco terão nunca biografia. Uns e outros serão sempre construídos como estrangeiros. Como inimigos. São patriotas inimigos. Dentro de cada Pátria sempre há patriotas inimigos, poucos mas necessários estrangeiros inimigos, pois sem eles não haveria Identidade Própria da Pátria, não haveria mitologia, heróis nem vilãos.

E assim, quando numa triste Pátria há lutas intestinas, igualmente cegos afinal todos os patriotas (uns, polo esmagador sol da vitória; outros, polas profundas trevas da derrota), todos eles só podem agir fragmentariamente guiados polas suas próprias, antigas, monótonas vozes: as únicas que reconhecem após décadas de recíprocos parabéns e de batalhas reais ou inventadas cujo duvidoso registo se acumula oculto nos sagrados arquivos custodiados, sacerdotais, impenetráveis, nas poeirentas gavetas de uma casa ou na paternal memória oral o acesso à qual é um privilégio. As Pátrias são por definição obscuras, isolacionistas, as suas mitologias são confusas, a sua essência é a exégese, não a explicação aberta, e quando algum raro súbdito abre a voz para que se falem os detalhes e a história desse monstro, para que saiam os papéis e se descubram as trapaças e os enigmas, as infantis acusações são que essa procura de clareza é ora querer destruir a Pátria, ora praticar a fútil loucura do discurso.

E levam razão. Ambas infantis acusações levam razão.

Estávamos aí

Publicado em Vieiros

Na comodidade da minha sala de estar, recebido polo sol intermitente, escuto e vejo à vontade comoventes fragmentos da gravação da homenagem a José Afonso que emitiu a TVG em 25 de Abril. Numa altura, o actor-apresentador Carlos Blanco, revestido das roupas e emblemas que há mais de trinta anos levávamos os jovens, parodia a época: “Mira que éramos roxos, neno. Aquelas mánis. Que bem o passámos, a verdade”.

Não. Não o passámos bem. Talvez o actor Carlos Blanco sim, mas nós não. Não estávamos em enormes congregações de vontades para passá-lo bem. Estávamos reunidos em assembleia permanente de utopias. Pensávamos a utopia, falávamos a utopia, realizávamos fragmentos dela nos actos mais miúdos, e depois introduzíamos os fragmentos nas casas e nas aulas, e amiúde dous mundos entravam em conflito, e assim a História prosseguia, forçávamos a História a prosseguir, como é a História, serva dos actos numerosos e das palavras precisas que sempre, sempre, continuarão a ter sentido.

Por isso centenas de nós estávamos há mais de trinta anos no desaparecido Cinema Disol de Vigo no primeiro recital de Pablo Milanés e Silvio Rodríguez nesta península. E sabíamos que éramos ilegais, e não se podia respirar, e muitos tínhamos medo de que entrasse a polícia. Medo, não apenas festa, medo da dor dos golpes e da morte da polícia. Mas por isso estávamos aí, e permanecíamos. E estávamos nas ruas de Vigo, não nas aulas nem no trabalho, enquanto a polícia matava operários. E tínhamos catorze, quinze anos, e não levávamos armas nem coletes anti-balas.

Por isso milhares de nós estávamos na intensa assembleia em Medicina onde se decidiu a greve indefinida de estudantes. E a polícia podia entrar e matar-nos. Estávamos no encerramento de Fonseca enquanto o cadáver recente de Franco ainda nos vigiava como um fedor fantasma por detrás das janelas, sobrevoando as carrinhas expectantes da polícia. E porque éramos milhares ocupámos a Universidade e ficámos horas ou noites a falarmos e cantarmos com Benedito em assembleia permanente de utopias.

E estávamos na homenagem a Celso Emilio Ferreiro em Compostela onde se leu poesia, e a voz de Soledad Bravo cindiu como tensa tança a noite seca, e éramos milhares. E estávamos nas noites secas na Quintana a dançarmos Rosalinda e Atrás dos Tempos Vêm Tempos. E estávamos no concerto de Milladoiro na enorme concha aberta do parque de Castrelos de Vigo, e nas primeiras noites antigas de Ortigueira. E estávamos no concerto em que Lluis Llach cantava as formas do amor e da revolta, e nós cantámos muitas vezes as formas da revolta com Lluis Llach, com José Afonso, com Fausto, com Pablo Milanés, com Luis Pastor, com Cilia, com Benedito, com Godinho, com Soledad Bravo, com Mercedes Sosa, com Pete Seeger. E igual que nós, muitas outras pessoas cantavam e hoje cantam outras vozes em distintas assembleias.

Por isso, não por outra cousa, por todos esses actos e centenas mais, e por todos os miúdos actos resistentes que durante décadas herdámos das pessoas assassinadas, violadas, torturadas, encarceradas, expulsadas, retaliadas, pudemos encher Compostela todo o dia num Dezembro recente enquanto chovia a mares piche preto nos areais atlânticos, e pudemos encher todas as ruas atlânticas enquanto choviam mares de fósforo branco nos areais do petróleo, e pudemos estar junto ao sol de Vigo na incansável duna da Marcha Mundial das Mulheres, a dizermos sempre as antigas e precisas palavras vigiadas sempre polo olho fantasma dos tiranos que ocultam a Solução Final das armas sob o trono democrático.

Por tudo isso, não nos enganemos, estamos hoje aqui, neste espaço real que é a Rede e que são as casas e os trabalhos e as aulas e as ruas e que é uma assembleia permanente de palavras. E continuaremos, não se engane ninguém, continuaremos. E após de nós e connosco, outras pessoas continuarão e continuaremos, a cantarmos e falarmos as diversas formas da revolta. Não para passá-lo bem e tempo depois fazermos pública e fácil paródia, mas simplesmente para cumprirmos a lógica da razão utópica, para forçarmos a História verdadeira a ser serva inânime dos actos.

Não o passámos bem então, nem o passamos bem agora, ainda não. Nisso estamos.

Um conselho para meu rei

Publicado em Vieiros

Senhor Juan Carlos de Borbón, meu rei:

Mire usté. A mim o que faça na sua intimidade religiosa pouco me importa. Mas, enquanto você seja um empregado do Reino, de milhões de súbditos com D.N.I., guarde a exibição das suas crenças para dentro da sua própria solução habitacional. Eu pago os meus tributos para o seu soldo como bom espanhol. Juro-lhe que há anos que não minto na declaração da renda. E o artigo 16.3 da Constitución que lhe dá trabalho diz: “Ninguna confesión tendrá carácter estatal”.

Mas na noite do passado 24 de Dezembro, você soltou-nos mais um desses sermões de catequese pola televisão, paga também com o dinheiro de todos e sobretudo do BBVA. O seu predecessor, lembra?, o Capitão General que o colocou no trono, falava-nos em cada 31 de Dezembro para desejar-nos um ano novo ainda pior. Mas você, meu segundo Capitão General, por se distanciar dele e se aproximar dos nossos corações partíos, mudou a data para o angélico 24. Mesma diferença, como dizem em inglês. Ainda por riba, ameaça-nos com que o seu filho Felipe vai continuar a fazer o seu trabalho no futuro.

Tanto tem. Fale o que quiser, que há liberdade, até para si. Confesso que zapeei uns instantes da sua ladainha. Mas quando saíu no fundo da imagem o presépio esse com as figurinhas cerâmicas de uns personagens estranhos de há 2.000 anos, disse eu, tate, aqui há tomate. Olha tu para as famílias disfuncionais. Não nos podia ter deliciado com o fundo duma colorida natureza-morta ou duma lâmina da Rendición de Breda? Mas não, tinha que ser de novo a superstição cristã, ou judeu-cristã, ou muçulmana, que já sabemos que Cristo também foi profeta do Hezbolá. Nos alvores do Século do Cérebro, como canta a propaganda dos seus Ministérios da ciência, resulta que nos lembram agora de uma senhora palestiniana chamada Maria que pariu sem ver varão (seria por partenogénese, como alguns lagartos fémia quando não há machos, que o aprendi em Tecnoticias de la 2), de um filho dela chamado Jesus que em três anos orando no deserto sem beber viu um dia o Diabo (vaia milagre!), e que aos três dias ressuscitou sem vermes (mal negócio para os de C.S.I.) e ascendeu aos céus sem propulsão de energias renováveis. Aí o único normal era o carpinteiro. E vocês querem contar isso nas escolas públicas e depois perseguem as seitas satânicas?

E o Reino aconfessional de España, racional paradigma mundial de matrimónios trissexuais e de Aliança de Civilizações (que vem de “civil”, não sei se sabe), vai e nos coloca o seu Chefe de Estado, que ainda acredita nas superstições dos bispos, com esse modelo de família no fundo. Pois apanhados estamos.

Ai ai ai, cumpra-me as constituições, senhor Juan Carlos, que qualquer ano destes o PSOE se enfada com você para ficar bem em Europa e lhe faz a cama no seu próprio parlamento. Mire usté: a sua Constitución diz que no Reino de España o catolicismo tem prioridade de passo (sempre vem pola direita), não monopólio. Para o próximo ano (que será o seu penúltimo como líder de Gran Hermano), digo-lhe: ponha-nos também na tele um candelabro judeu com sete braços, umas surahs corânicas bordadas em ouro do Potosi, um pouco de incenso hindu, uns totens animistas, e, em vez do teleprompter, vaia lendo a sua mensagem revelada numa tábua de ouija. Por tolerância.

Ah, e mude a data do discurso para o 28 de Dezembro.

O seu fiel conselheiro de imagem,

Celso Alvarez Cáccamo