Publicado em Vieiros
Reproduzido, com ficha técnica, em Poesiagalega.org
Nunca esquecerei este verso de Álvaro Pombo, que me amartela inesperadamente igual que me amartela “and what remains is just the sense of getting older”, dum para mim incógnito John Koethe, ou “como enxotar a morte / esse animal sonâmbulo dos pátios da memória”, do nosso Eugénio de Andrade. Esqueci mais, sim, a poesia de Félix de Azúa, e não tanto a sintaxe precisa do primeiro Vargas Llosa, a quem devorei com outros sudamericanos (Cortázar, Borges, Lezama) desde a adolescência até aos anos 1978-80 em Barcelona. Eram os anos em que acabei Filologia Hispânica nas aulas da então chamada Universitat Central. Lembro uma inteligente Pilar Rahola de boina escorada que destacava já pola sua palavra veloz, uma outra Pilar aragonesa que adivinhou que eu nunca seria um bom escritor, e o entranhável burgalês Javier López com quem trocava escritos e que provavelmente nunca saiba que hoje falo dele. Eram os anos em que publiquei o meu único texto em español na minha vida, um continho na efémera revista diletante Delta, de estudantes de Filologia de Barcelona.
Sou venturoso prisioneiro do verso de Álvaro Pombo porque durante décadas fora educado só em español, excepto nas calorosas aulas de tarde de Maite Caramés no liceu Santa Irene de Vigo, provavelmente polo ano em que o poeta Carlos Oroza fora convidado por Ferrín a dar um inigualável recital em língua española que também nunca esquecerei. Sou prisioneiro da formosura dessa literatura em língua española porque eu era filho estético da sua normalidade, como o foram escritores e escritoras galegas que me antecederam e me sucederam. Foi a língua española que ofereceu o modelo de rigor estilístico e formal e grande parte da imaginaria de que tantos e tantas escritoras galegas atuais se nutriram e se nutrem, para agora publicarem em galego nas editoras monolíticas e ganharem muitos prémios. Eles podem sabê-lo, ignorá-lo ou negá-lo, mas a sua dívida com a língua española é essa, e é grande.
Felizmente, o meu périplo cultural particular levou-me a compreender quanto tempo, também, perdera no meu interesse pola língua española. Há vinte e cinco anos, nos Estados Unidos, em contato constante com pessoas que sim que possuíam língua (brasileiros, colombianos, estadounidenses), percebi fortemente o que é uma língua, e quanto nos faltava na Galiza. Por saber español e ler as suas literaturas, deixara de saber e de ler muitíssimas cousas da língua portuguesa e das suas literaturas, como a nossa. Amiúde lamentei não ter tido a oportunidade de sentir na adolescência, quando se formam tantos critérios, a mesma pulsão pola literatura em língua portuguesa, em língua galega. E ainda não temos várias vidas. Por isso, por razões políticas, vitais e estéticas, que são as mesmas, nos EUA comecei a abandonar o español como Língua, e ré-conheci a língua que agora pratico e a que, dizem, é a do meu país e de outros. E soube que devia procurar recuperar o tempo perdido. Agora não leio praticamente nada de literatura em español: não tenho tempo para ignorar ainda mais a literatura própria. Isto não significa que conheça muita literatura galega, portuguesa ou brasileira, em absoluto. Mas o preço de não ter sido educado literariamente durante décadas na minha língua atual é que nunca chegarei a ser um bom escritor, se é que alguma vez tive a possibilidade de o ser.
Não compreendo como nenhum inteletual com um mínimo sentido estético pode confundir essa Língua literária, rigorosa e portanto tirânica de que estamos a falar (a española, a portuguesa e galega, a inglesa) com essoutros pobres dialetos oficiais ou para-oficiais que se utilizam nas administrações (todas), na política (a que for), e noutras burocracias. Mas resulta que são estes códigos, e não a língua literária, que parece que sublimam de maneiras monstrosas as essências humanas e nacionais, e parece que é em torno deles, e não em torno da língua literária, que se argalham Manifiestos cavernícolas. Não compreendo como, nas aras desses códigos utilitários e quotidianos (no pior sentido da palavra) cuja obrigatoriedade de conhecimento até se defende, se quer negar a possibilidade de que uma geração inteira se possa inundar da tirânica língua literária do seu próprio país para que daí saiam as poetas e os poetas, como corresponde, para que nalgumas pessoas polo menos surja o assombro da palavra e anos mais tarde elas possam lembrar, inesperadamente, sem mais meta que o fascínio, um verso aberto e inapreensível.
Por isso, o Manifiesto da pretensa língua comum do Reino exibe uma vulgaridade tal que faz duvidar que tenha sido assinado verdadeiramente, por exemplo, polo mesmo poeta que foi capaz de escrever o verso que abriu este escrito. O Manifiesto de inteletuais españóis quer negar que cada um dos países do Estado que dizem querer ser países imponha a necessária intensidade social de onde surge a Língua e portanto a boa literatura. Um feixe de escritores españóis já conhecidos, num exercício de triste solipsismo quase prevaricador, quer negar a literatura própria nos seus idiomas a milhões de jovens que a sentem ou nalguma altura a sentirão assim, como própria e como literatura.
Mas enganam-se os manifestistas españóis se pensam que com isso a sua língua literária vai recobrar o fulgor estético dominante que nos impôs a uniformidade do Fascismo. Já não é possível, nem mesmo conveniente para eles. O único que o regresso ao passado conseguiria é que os jovens continuassem a aprender a cultivar as suas línguas atravês do rigor do español, como há décadas. Nunca desapareceríamos. Por isso, deixem os manifestistas españóis que os seus filhos hispanofalantes polos quais dizem levantar-se em armas de papel, se é que não moram no Centro monolingue, possam mergulhar plenamente numa outra língua imposta contra eles, como mergulhámos nós, e que assim, polo menos, possam ter literatura. Nenhum inteletual manifestista español quisera que desaparecessem as literaturas galega, basca ou catalã: no seu comércio, é precisa também esta concorrência. Mas, como querem que se cultivem outras literaturas se não é a golpe de imersão nas suas línguas, até como impostas línguas estrangeiras, igual que gerações inteiras sentimos durante décadas o español nos nossos próprios países? Deixem os manifestistas aos jovens escolares o prazer de descobrirem o verso perfeito da Galiza, e que, anos mais tarde, o citem por acaso, ainda sem compreenderem de todo o seu sentido poético (precisamente por não compreenderem de todo o seu sentido), e até se rebelem contra ele, contra o monolitismo da distinta língua única. Deixem os amargurados manifestistas españóis que cada um dos países agora engolidos no Reino gere os seus poetas, as suas proezas, os seus monstros e as suas misérias, porque só se podem produzir bons monstros e boas misérias quando a Língua (a língua literária, não os tristes códigos burocráticos) nos arrodeia dia após dia e nos mata, por toda parte, em centenas de livros. É esta Língua que nos une, não a sua forma.
Fiquem os literatos españóis com o seu país de letras, que já é grande, e aí poderão fazer cousas que eles estimem também grandes como o ouro. E nós, a gente de aqui, não façamos nem caso aos seus manifestos de sereia, que vão contra a própria estética da sua língua española. Porque, isso sim: que formoso e intraduzível será sempre o verso de Álvaro Pombo, “Yo lo dispuse todo imagen tras imagen”. Em matéria de língua, não de formulário, isso é o que deveria importar: ser intraduzível.