A quadratura da língua

Publicado em Xornal • Em Carta Xeométrica

     A polémica atual a raiz do documento de IGEA propondo o “bilinguismo restitutivo” como eixo duma política planificadora tem duas dimensões interrelacionadas: O confronto ideológico intrapartidário e as suas ramificações interpartidárias em termos de alianças tácticas, e as suas bases técnicas e sociolinguísticas, que são cruciais para qualquer proposta galeguizadora que se mantenha.  Tanto o documento original quanto as suas defesas mais elaboradas polo próprio autor principal, Henrique Monteagudo, carecem na minha opinião da fundamentação suficiente que sustenha o seguinte: que, para a necessária galeguização das condutas linguísticas do país, o mais apropriado é focar-se também na competência em castelhano (“bilinguismo”).  Esta ênfase nas duas línguas e a concorrente confusão entre o estado de cousas (“bilinguismo social desigual”, sem dúvida) e a meta a alcançar não é trivial: é a mesma contida na Lei de Normalización Lingüística, a implementada na filosofia de introdução do galego no sistema educativo como matéria instrumental, e a de todas as políticas de subsídio e “defesa” (não de promoção) dos usos do galego que tiveram um efeito tão negativo nestas décadas.

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Mais uma crítica ao texto do IGEA sobre a situação da língua

Em Facebook

     Afirmei nalgum lugar que o documento do IGEA sobre a língua (“Por un proxecto de futuro para o idioma galego. Unha reflexión estratéxica”, http://igea.eu.com/fileadmin/publicaciones/igea_informe_00_def2_02.pdf ) não podia produzir nada novo para o debate. A mesma crítica me faz o autor desse texto, Henrique Monteagudo, no seu Mural de Facebook, a respeito dum texto meu que anda por aí, (“Monolinguismo, bilinguismo, hegemonia: Não são só palavras” http://celso.blogaliza.org/2010/12/05/monolinguismo-bilinguismo-hegemonia-nao-sao-so-palavras/ ): que não digo quase nada novo ;-).  Quisera reiterar por que sim penso que em “Monolinguismo…” se diz algo, com muita clareza, nomeadamente: (a) Que nem o documento do IGEA nem a planificação nem o ativismo linguístico consideram nem compreendem as complexas bases sociais reais das condutas linguísticas, e sem esse trabalho é impossível “normalizar” nada; e (b) que o único que faz o texto do IGEA é querer introduzir uma etiqueta muito problemática, “bilinguismo restitutivo”, como se nisso só consistisse o debate e o discurso.  O resto do documento do IGEA contém ora outras ideias velhas, questionáveis, ora contradições. As minhas críticas continuam a ser bastantes, além da discordância com o enquadramento geral do acontecido com a planificação linguística nestas décadas.  Há sérias questões de fundo que dificultam que esse documento em si possa ser tomado, se lido com atenção, como um texto sociolinguístico útil para a promoção da língua.  Portanto, declaradamente, procuro argumentar que não é 😉 e sugiro, em qualquer caso, que se o ativismo linguístico (não as liortas partidárias) quer propor estratégias “novas” efetivas, deveria considerar começar por algum outro documento-base, não precozinhado.   Tentarei resumir as minhas críticas ao texto do IGEA:

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Monolinguismo, bilinguismo, hegemonia: Não são só palavras

No Portal Galego da Língua • Em MundoGaliza • Em Diário Liberdade • Em Encontro Irmandiño • Em  Carta Xeométrica

     Despersonalizar é provavelmente a melhor disposição para compreendermos um problema tão complexo como a atual crise da língua na Galiza. A troca de textos e mensagens recentes nas publicações periódicas do país e na Internet a respeito dum recente texto de opinião do IGEA (Instituto Galego de Estudos Europeos e Autonómicos) sobre o futuro do idioma insiste amiúde em questões muito marginais, incluindo um questionamento recíproco, multilateral, do saber e das capacidades de análise dos participantes. Contrariamente a esta atitude, vou assumir que qualquer pessoa que se debruça sobre uma questão social mas também técnica e perde parte do seu valioso tempo em ler textos longos (ou longuíssimos, como este) possui suficiente conhecimento e raciocínio  para não deixar-se enguedelhar no trivial questionamento do conhecimento e do raciocínio doutrem.

     Três são as dimensões que eu destacaria duma polémica — antes que debate de fundo — que corre o risco de produzir vazia inflação discursiva.  Mas, antes, um posicionamento: O meu objetivo não é contribuir para debater polo miúdo os argumentos de fundo do documento do IGEA, pois na minha opinião não inaugura qualquer discurso novo, e apenas introduz uma expressão que pretende central (“bilinguismo restitutivo”), traduzível de muitas maneiras a outras expressões. O meu objetivo é, precisamente, contribuir para que a expressão não se centralize nem no debate público nem no ativismo sobre a língua, polo seu potencial negativo para o futuro da língua, que não começa nesse texto. E para isto, evidentemente, procurarei razoar desde o meu limitado conhecimento e desde a minha posição ideológica.  Os três aspetos que quisera comentar são: 1. A “despolitização” e “desnacionalização” da questão da língua.  2. A dinâmica “monolinguismo / bilinguismo / hegemonia social do galego”.    3. A articulação entre propostas de intervenção linguística e usos reais. Para isto, remito-me em ocasiões a documentos, manifestos e debates anteriores. Mas, confiando no bom funciomento do Google, escuso colar aqui por enquanto tantas referências a tantos textos. E, por mor da despersonalização dum claro sarilho de textos (não por mor da invisibilização de ninguém, nocivo protocolo habitual neste mundo), prefiro não citar qualquer pessoa, nem para bem, nem para regular, nem para mal.

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Por um Galego Normativo do século XXI

“Eu tamén sou lusista, Celso, pero entre nós; o pobo necesita unha grafía!”
(Um indignado Francisco Fernández del Riego, em memorável encontro, década de 1990)

Categorias sobre a escrita

Verdadeiramente, as categorias sobre a língua formal escritas que os discursos hegemónicos utilizam são do mais falacioso, e amiúde não só contradizem a realidade, mas as próprias categorias comuns (“nativas”) em que dizem se sustentar. No variado bestiário da escrita (e da fala) galega atual, contrapõem-se bichos como “galego oficial”, “galego da Xunta”, “galego normativo” ou “galego do ilga”, a bichos como “galego reintegrado”, “galego reintegracionista”, “galego lusista”, “galego-português” ou “português” (curiosamente, “galego da rag” é pouco comum, o qual indica bastante; o mesmo se pode dizer de “galego da agal”).

Talvez as etiquetas mais populares das primeiras sejam “galego oficial” e “galego normativo”, e, entre as segundas, “galego lusista”. Não há qualquer noção clara de que a norma atual da Associaçom Galega da Língua, por exemplo, seja diferente do “lusismo”. A realidade é que a teoria de base, comum, sobre a língua, continua uma tendência a polarizar a experiência da língua formal entre dous tipos de galego: o de “dentro e abaixo”, e um de “fora e acima”. Ainda que o galego-RAG também surgiu desde acima (como todas as normas), a propaganda (a criação de sentidos afetivos coletivos a partir da repetição incansável de lemas simplicíssimos) chegou a calhar numa certa identificação popular: o “galego oficial” ou “normativo”, sim, seria inventado por esses senhores intelectuais e políticos, mas é “nosso” porque a Comunidade Autónoma de Galicia é “nossa” também. Uma consequência desta ideologia é que, votemos em quem votemos, mesmo nos pijos que nos desfazem a economia, a terra, a língua e a vida, não por isto deixamos de votar nos “nossos”, e, a seguir, de ter os “nossos” conselheiros que decidem sobre as “nossas” escolas públicas e sobre a “nossa” língua dentro delas. O “galego oficial/normativo” é, portanto, a máxima encarnação da articulação produtiva de “Galicia” dentro da “España”, topónimos ambos linguisticamente bivalentes (são formas galegas porque são espanholas).

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Cuidadinho com o triunfalismo

Em MundoGaliza • Em Diário Liberdade • Em Galiza Livre

O problema do triunfalismo é que, quando não triunfa, a queda é mais dura. Refiro-me à denegação, por parte do Tribunal Superior de Justiça da Galiza, da “suspensão cautelar” do Decreto do Plurilingüismo do PP solicitada no recurso interposto pola Mesa pola Normalización Lingüística. E é que, verdadeiramente, quando o que separa as concepções da língua dos recorrentes  e dos recorridos é apenas uma letra (poderia escrever-se Mesa po(r)la Normalización Lingüística e lê-lo de duas maneiras), esta lógica judicial não admira. Raios, que fácil demagogia a minha. Por que ignoro deliberadamente que por detrás da MNL há muito mais, muitíssimo mais?: Há uma longa trajetória de propaganda. Há uma defesa incondicional da totémica palavra “normalización”, nos dous idiomas, a mesma que Lorenzo se encarregou de substituir por “dinamización”, nos dous idiomas. Há uma aceitação do quadro jurídico da linguicida Lei de Normalización Lingüística. Há uma falta de projeto de língua nacional. E há uma secular política de exclusão duma dada visão desse projeto de língua (língua) nacional (nacional). Na MNL, e por detrás, há um caduco discurso sobre direitos, identidades, pátrias, imanências e vitimismos em que, à luz do totum revolutum atual, até pretendem introduzir os discursos da RAG e do CCG. Mas não há um projeto de língua nacional. Não admira que o TSJG reafirme que é tão legal meio-promover o galego, como fez o Bipartido, quanto meio-eliminá-lo, como faz o Unipartido.

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A tentativa de nos reenquadrarem a língua

No Portal Galego da Língua • Em Diário Liberdade

     Recentemente assiste-se a um certa tentativa de reenquadramento dos conflitos linguísticos no Estado Español em várias espécies.  Desde o “progressismo” centrista faz-se, por exemplo, em termos do apelo a uma “diversidade” semelhante à exuberância da flora tropical. É um discurso velho e novo ao mesmo tempo. Velho, porque se recolhe também nessa pretensa proteção da “riqueza das modalidades linguísticas” que está na Constitución Española e em tanto discurso, também progressista, que não compreende ou não quer compreender o que é um projeto de construção de língua nacional. E novo porque, em lugar de atacar frontalmente os projetos de intervenção (pouca gente ousa dizer, por exemplo, que o galego “não serve para nada”), estes são reduzidos à necessidade de medidas locais, parciais, sempre estimadas em termos de necessidades específicas, numa paródia da auto-gestão dessa diversidade. Em poucas palavras: a recuperação das línguas não-espanholas continua a ser folclorizada porque, no fundo, se concebe sempre um quadro linguístico mais amplo (o da Lengua dominante que não precisa de tal intervenção). Mas resulta que nem a Galiza, nem Catalunha, nem o País Basco, nem o País Valenciano, etc., são sociedades tribais com o que se chamam heritage languages (“línguas de herança”) que um feixe de índios conscientizados ensinam em locais provisórios como puro “património simbólico”.

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Contrastes de línguas e nações

Regressando da Catalunha depois duns dias de lazer compreendo mais uma vez os contrastes constitutivos entre duas nações, aquela e esta, tão diferentes mas unidas numa questionável aliança contra um estado central que, entre outras formas de miragem, foi capaz de produzir até o pretenso antídoto Galeusca. Na Catalunha, não apenas as pequenas lojas fazem rotulagem na língua do país: também as grandes companhias (aéreas, por exemplo) convocam e convidam a cidadania em catalão. Na Catalunha, não apenas jovens com consciência linguística patente utilizam o idioma: grupos de raparigas pré-adolescentes brincam na rua na língua antiga.

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A crise da língua e um futuro possível

Publicado em Novas da Galiza 90, 15 de maio – 15 de junho de 2010, p. 20

Na crise sociolinguística atual da Galiza convergem desde há aproximadamente ano e meio vários processos: (1) A evidente perda de falantes e de usos do idioma, refletida, por exemplo nos dados mais recentes do Instituto Galego de Estatística; uma estimativa própria sugere que, a este ritmo, os usos do galego passariam a ser minoritários nuns três ou quatro anos. (2) A legislação regressiva em Política Linguística, com a supressão fulgurante das Galescolas, a eliminação da prova escrita obrigatória em galego para o acesso à função pública, a redução de ajudas à tradução e, de maneira singular, o chamado Decreto de Plurilingüismo no sistema educativo não universitário. E (3) um debate público sobre a língua no qual, apesar das aparências de resistência, se pode detectar a cedência do galeguismo perante as formulações minoritárias do españolismo, nomeadamente com a relevância crescente (mesmo para criticá-la) da fantasmagórica noção de “imposición del gallego”.

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Corrupção, consenso e política linguística

Publicado no Portal Galego da Língua • Em Vieiros

     Em textos anteriores (“Língua, Mercado e liberdade”, “O conflito linguístico só tem uma saída”, “Contra a utilização dos ‘direitos linguísticos'”, “Bilinguismo zumbi e crise sociolinguística”) tenho apontado que a história da política linguística na Galiza se deve examinar como a articulação de três dicotomias entrecruzadas: o âmbito público frente ao privado; a dimensão individual frente à coletiva; e os direitos frente aos deveres. Hoje, a máxima expressão desta dialética múltipla na crise sociolinguística é o conflito entre deveres públicos coletivos a respeito da língua e direitos privados individuais, por exemplo os “direitos” dos e das estudantes do nosso sistema educativo.

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O Mito das Portas Singulares

Em Facebook

Para os mestres da escrita e da política

No primeiro dia de escola, a estudante foi levada pelo mestre perante duas portas paralelas rotuladas “G” e “E” que davam para um jardim exterior. Primeiro o mestre deu-lhe uma grande chave antiga em forma de E, com elementos modernos. “Toma”, disse ele. “Com ela aprenderás a abrir a porta E.  Não é fácil: há que dar certos giros na ordem precisa”. “Por que tenho que aprender?”, perguntou ela. “Assim está ordenado. O teu dever é saber abri-la”. O mestre continuou: “Fora encontrarás um espaço imediato, cercado pela direita com amplas portas de cristal, que dão para um mundo muito mais amplo. Também poderás chegar ali”.  “E como abrirei as portas grandes?”. “Com a mesma chave. O fecho é o mesmo”.

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