O Mito das Portas Singulares

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Para os mestres da escrita e da política

No primeiro dia de escola, a estudante foi levada pelo mestre perante duas portas paralelas rotuladas “G” e “E” que davam para um jardim exterior. Primeiro o mestre deu-lhe uma grande chave antiga em forma de E, com elementos modernos. “Toma”, disse ele. “Com ela aprenderás a abrir a porta E.  Não é fácil: há que dar certos giros na ordem precisa”. “Por que tenho que aprender?”, perguntou ela. “Assim está ordenado. O teu dever é saber abri-la”. O mestre continuou: “Fora encontrarás um espaço imediato, cercado pela direita com amplas portas de cristal, que dão para um mundo muito mais amplo. Também poderás chegar ali”.  “E como abrirei as portas grandes?”. “Com a mesma chave. O fecho é o mesmo”.

A seguir o mestre tirou uma outra chave em forma de G, também antiga e moderna simultaneamente: “Com esta aprenderás a abrir a porta da esquerda. Também dá para o recinto exterior. Bom, não te enganes: O jardim imediato é praticamente o mesmo que o primeiro. Assim vivemos aqui”. “Também tenho o dever de saber abrir esta porta?”. “Não exatamente”, explicou o mestre: “Eu sim que tenho a obrigação de ensinar-te. Depois tu terás apenas o direito de abri-la”. E continuou: “Além deste jardim, para a esquerda, há outras grandes portas transparentes com um fecho. Verás um outro mundo mais amplo. No futuro também poderás ir aí”. “Claro, com a mesma chave”, antecipou-se a aluna. “Mmm, não exatamente”, respondeu o mestre, começando a estar nervoso. “O fecho é quase igual, e a chave correspondente quase idêntica. Mas será outra. Bom, na sua altura aprenderás, talvez. E aprenderás as razões”.

A rapariga surpreendeu-se: “Por favor, senhor mestre, explique-me uma cousa”, ousou. “Se os fechos da porta G e o da porta de vidro da esquerda são quase iguais, por que não me dá já as duas chaves muito semelhantes e me ensina a utilizá-las à vez? Ou, melhor ainda!”, entusiasmou-se: “Por que não fazem vocês uma única chave mestra para a porta G e a sua de cristal, e me ensinam os giros diferentes?”.

O mestre ficou muito sério. Calou uns segundos, fitou-a, e sentenciou: “Não começamos bem, rapariga. Tu deves aprender a abrir as portas que eu che diga, não a ser insolente”.

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As Portas da Lusofonia, ou da Galegolusofonia (aceito o vocábulo), são um desses nossos mitos culturais com longa presença e inigualável força. Dizem que existem nalgures, pois estão registadas em textos muito antigos. O explorador Castelao afirmou tê-las visto, quando declarou em famoso discurso no parlamento da Espanha que a Galiza tem a chave.

Mas, pelo que eu observo, as Portas da Galegolusofonia possuem propriedades tão singulares que fazem duvidar da sua função. As Portas abrem-se, por exemplo, quando um dignatário desse mundo exterior (digamos, Portugal)  visita a Galiza. Então os políticos lembram-nos a sua existência. Mas fecham-se logo se um jornalista, por exemplo, quer escrever com as letras-chave da própria Lusofonia uma crónica dessa visita. As Portas da Lusofonia abrem-se em palavras dos nossos literatos quando viajam a Portugal ou ao Brasil, mas fecham-se quando os literatos desse Mundo Externo querem enviar-nos os seus livros. As Portas da Galegolusofonia mencionam-se como mito nos atuais livros de defesa da língua que produzem editoras nossas, as mesmas que pedem subsistir com o dinheiro do Governo que está a matar a língua. Mas esses mesmos livros fecham-se fortemente a qualquer texto que defenda a língua e combata esse Governo com as próprias letras-chave da Galegolusofonia.

Em resumo, as Portas abrem-se nas palavras voadoras dos políticos, escritores e editores, mas fecham-se nos atos reais dos políticos, editores e escritores.

Por isso, verdadeiramente, um não sabe se as Portas como mito estão desenhadas para abrir-nos a outros mundos ou para confinar-nos neste. Já sei que o tamanho não é importante (o da língua, o do território, o da chave). O importante é não enganar as crianças com a existência de passagens transparentes que não permitem abrir, enquanto as outras portas, as do Leste, as da direita, só requerem uma chave comum, e de uso obrigatório.

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Durante meses, eu observei secretamente a escola que descrevo ao começo. Um dia, num laboratório, a estudante examinou em detalhe a chave G e foi capaz de alterá-la habilmente: eliminou alguns elementos antigos ou modernos, e soldou outros elementos modernos e antigos. Agora a nova forma podia ser lida igualmente como um G ou como um P, pois era ambas cousas; não é complexo imaginá-lo.

Eu contemplei como, na pausa, com cautela, a meninha utilizava a chave para abrir facilmente a porta G com alguns giros especiais. No jardim, encaminhou-se às grandes Portas de cristal da esquerda de fecho diferente, que abriu também com a mesma chave e uns poucos movimentos particulares.

Vi como, durante uns minutos, a estudante esteve a visitar o outro mundo. Ao voltar, deixou as Portas totalmente abertas, falando em alto:

“Mh! Curioso!”, exclamou. “Se todo o mundo tivesse esta chave e aprendesse a utilizá-la, para que quereríamos as portas?”.

Talvez, felizmente, a meninha tivesse aprendido o  incomparável poder da insolência. O jardim encheu-se de gentes felizmente diversas que provinham do mundo exterior esquerdo. Pela zona direita do jardim alguns mestres tinham medo.

Regressei à casa e decidi compreender, definitivamente: Quando uma porta está sempre aberta, não existe. Alguém, há séculos, colocou umas lâminas  falsas, as Portas de cristal da Lusofonia, não para que contemplássemos um mundo exterior amplo, mas para impedir-nos viver a continuidade entre o grande e o pequeno. Alguém as instalou não para que aprendêssemos a abri-las, mas para conter-nos no jardim numa constante e inútil procura da chave precisa, que já temos. Por este tédio circular, muita gente prefere viajar do jardim para o mundo exterior da direita, onde nada lhes dá medo. É isto o que aprendem as crianças como estudantes e repetem como mestres, geração após geração, combate após aparente combate: perpetuarem o Mito que dá sentido e alimento aos poderosos.  Mas eu, sinceramente, julgaria muito mais honesto que acabassem de vez com o Mito, essa cansativa miragem. E só vejo duas maneiras.